14 Fevereiro 2011
“O Brasil viveu durante 60 anos com o sonho de ter um salário mínimo justo e jamais conseguiu. Neste exato momento, o país tem a possibilidade de, ao final da década, conquistar essa situação”, defende o economista Cláudio Dedecca, em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone. Na opinião dele, preservar a política de reajuste progressivo do salário mínimo com base no crescimento econômico do país é a alternativa mais eficaz para garantir, a longo prazo, um salário condizente com as necessidades dos trabalhadores.
Manter a regra acordada entre sindicatos, trabalhadores, empresas e governo garante, segundo o economista, que o salário mínimo “tenha uma recuperação que independe da vontade dos atores e do jogo político que, historicamente, marcou a decisão de reajuste do valor”. Se for possível reajustar o valor de R$ 545,00 para R$ 560,00 ou até mesmo R$ 580,00, “valeria a pena pensar que um possível aumento adicional deveria ser descontado do reajuste do próximo ano”, sugere
Para Dedecca, a posição do governo de manter o reajuste em R$ 545,00, mesmo com a possibilidade de elevar o valor, não deve ser considerada conservadora e, sim “democrática”, pois leva em consideração um aumento progressivo para o final desta década.
Na entrevista a seguir, o economista explica que o recente crescimento da economia brasileira “permitiu recompor a renda, a estrutura produtiva, mas o país ainda não conheceu uma transformação positiva nem do mercado de trabalho, nem das condições sociais”. Para atingir os objetivos sociais, “é preciso abandonar a postura de pensar o Brasil a curto prazo”, dispara.
A votação do salário mínimo está marcada para amanhã, na Câmara.
Cláudio Dedecca é professor do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o valor do salário mínimo é importante numa economia nacional?
Cláudio Dedecca – Independentemente do grau de desenvolvimento dos países, constata-se, cada vez mais, que essa é uma política relevante para organizar o mercado de trabalho. O salário mínimo é um instrumento importante para defender a remuneração dos trabalhadores com menor poder de barganha, que vivem em condições mais desfavoráveis de inserção no mercado de trabalho e, normalmente, aqueles que têm pouca proteção dos sindicatos. Como ocorre um recuo da proteção ao emprego dada pelos sindicatos, essa política mantém grande relevância na organização do salário de base da economia, seja para as empresas, seja para os trabalhadores, no sentido de garantir uma proteção no estabelecimento de uma referência relevante para que os atores possam se posicionar e se inserir nos locais de mercado de trabalho nacional.
IHU On-Line – O governo tem margem para aumentar o salário mínimo no valor pedido pelas centrais ou há, de fato, restrições econômicas que impedem?
Cláudio Dedecca – Há uma questão que antecede a essa preocupação e que tem sido realçada pela presidente Dilma e pelo ex-presidente Lula, na festa de 31 anos do Partido dos Trabalhadores (PT). A trajetória histórica do salário mínimo é errática. Ele teve momentos de auge nos anos 1950, foi reduzido ao longo da Ditadura Militar e, no período de democratização, apesar de muito falado, pouco se conseguiu em termos de aumento do salário mínimo.
Em 2007, se estabeleceu uma regra de longo prazo para o reajuste do salário mínimo, que vincula o valor com os aumentos anuais ao PIB. Essa regra não é perfeita, mas tem se mostrado eficiente porque garante que o salário mínimo tenha uma recuperação que independe da vontade dos atores e do jogo político, o qual marcou historicamente a decisão de reajuste do valor. Se esse ano o reajuste pode ser um pouco mais baixo e a perspectiva de crescimento é favorável, a posição do governo de preservar a norma, do meu ponto de vista, está correta. Mesmo que haja a possibilidade de um aumento maior do salário mínimo para além de R$ 545,00, sou da opinião de que valeria a pena pensar que um possível aumento adicional deveria ser descontado do reajuste do próximo ano, que deverá provavelmente situar em torno de 11%.
O aspecto mais relevante é preservar o instrumento que viabilize o aumento do salário mínimo a longo prazo ao invés de tentar ganhos de curto prazo, os quais podem comprometer uma solução exitosa que o país, depois de 60 anos de existência do salário mínimo, conseguiu estabelecer.
IHU On-Line – Então, o argumento do governo de manter a política de reajuste do salário mínimo levando em conta a inflação e o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores é um argumento forte?
Cláudio Dedecca – Não só é forte como é corretíssimo. Essa é uma regra que preserva e viabiliza o salário mínimo. As sugestões de aumentos para R$ 560,00, R$ 580,00, por exemplo, são negativas e podem colocar em risco uma solução que tem sido eficaz. A regra que está em vigência foi acordada entre trabalhadores, empresários e governo e tem sido eficaz. Por que não mantê-la?
IHU On-Line – Porém, se a economia sinaliza a possibilidade de um reajuste maior, essa posição de cumprir a regra não lhe parece conservadora, ainda mais se tratando de um partido com o histórico do PT?
Cláudio Dedecca – Diria que não é conservadora; é uma medida democrática e, além do mais, leva em consideração o valor do salário mínimo não em 2011, mas para essa década.
O crescimento recente da economia brasileira permitiu recompor a renda, a estrutura produtiva. Mas o país ainda não conheceu uma transformação positiva nem do mercado de trabalho, nem das condições sociais. É fundamental que as mudanças sociais se transformem com movimento, com políticas de médio e longo prazo, que permitam transformar econômica e socialmente o país. Desse modo, é preciso abandonar a postura de pensar o Brasil a curto prazo. A política do salário mínimo já é uma política aprovada e elaborada nessa perspectiva.
Para os interesses do país e, inclusive, dos trabalhadores – no que se refere à transformação social –, prefiro que essa regra se mantenha a médio e longo prazo e garanta que, no fim dessa década que se inicia, tenhamos um salário mínimo de valor expressivo, do que ter um ganho significativo neste momento.
IHU On-Line – O governo alega que não pode elevar mais o salário mínimo em função do déficit que o aumento causará nas contas públicas. Seria possível elevar o salário e fazer ajustes em outros setores?
Cláudio Dedecca – Existe essa possibilidade, mesmo porque a perspectiva para 2011 é de crescimento da economia, com prováveis impactos positivos em termos de receita das contas públicas, seja por aumento da atividade econômica, seja por aumento do nível de emprego, que garantirá claramente um bom comportamento da renda da Previdência Social.
O governo teria condições de acomodar esse aumento para a Previdência. Entretanto, caso o optem por um salário mínimo em torno de R$ 580,00, defendo que o reajuste atual deveria ser descontado do aumento previsto para o próximo ano. A decisão não pode pôr em risco a manutenção da regra ao longo da década. O que me preocupa é que, ao longo de janeiro, se discutiu o aumento para além de R$ 545,00, sem debater como preservar a regra.
IHU On-Line – Como o senhor interpreta a postura do governo nas negociações, particularmente dos principais negociadores, os ministros Gilberto Carvalho, Guido Mantega e Carlos Lupi. Há unidade entre eles, ou se percebe concepções diferenciadas?
Cláudio Dedecca – Tenho dificuldade de fazer essa avaliação porque acompanhei a discussão do salário mínimo do exterior. Parece que há uma convergência no governo em relação ao tema. Penso que os três ministros são favoráveis à preservação da regra, preocupados também com as contas públicas.
O que me preocupa um pouco – apesar de considerar legítima – é a postura das centrais sindicais em relação ao salário mínimo. Elas poderiam apresentar uma posição mais clara sobre como avançar no valor do salário mínimo em 2011 e, ao mesmo tempo, preservar a regra.
O governo tem tido a postura mais consistente a respeito do salário mínimo porque defende a preservação, não coloca em questão a tendência de comportamento desfavorável do salário mínimo nos próximos anos. Há a perspectiva de crescimento de 5% da economia nos próximos anos, o que significa que o salário mínimo irá crescer na mesma velocidade até 2015.
IHU On-Line – As centrais têm negociado o salário mínimo e outras reivindicações de forma unitária. Trata-se de uma novidade no movimento sindical brasileiro?
Cláudio Dedecca – As centrais sindicais, desde meados da década passada, vêm atuando progressivamente de um modo mais unificado. Isso é extremamente positivo. Diria que há um fator que favorece enormemente esse processo: o crescimento da economia a partir da segunda metade da década passada. A geração de empregos facilita uma posição mais unificada entre as centrais. Por outro lado, por apoiarem o governo, elas acabam sendo induzidas a conseguirem acordos de forma convergente. A agenda, em um contexto de crescimento, fica mais simplificada. Além disso, em uma tendência de crescimento, as três centrais tendem a ganhar, então, a disputa entre elas se reduz. Há fatores políticos e econômicos que favorecem essa convergência de interesses na estratégia de unidade entre elas.
IHU On-Line – Por que nos anos 1950 era possível ter um salário mínimo mais elevado, com maior poder de compra e, hoje, é mais difícil?
Cláudio Dedecca – A incidência do salário mínimo no Brasil dos anos 1940, 1950, era muito baixa. A informalidade existente no mercado de trabalho brasileiro e a predominância do trabalho agrícola faziam com que o salário mínimo fosse muito mais uma referência para o mercado de trabalho do que um valor efetivo. Uma parcela muito grande dos trabalhadores ganhava abaixo do salário mínimo e havia uma aderência muito pequena a ele. De tal modo que o governo podia estabelecer um valor de salário mínimo alto, ao mesmo tempo em que o mercado de trabalho desconhecia a referência legal. Naquela época, o Brasil ainda não tinha um grau de desenvolvimento do capitalismo e o mercado de trabalho era bastante restrito.
Atualmente, a situação é bastante distinta. Praticamente metade do mercado de trabalho brasileiro ganha entre um e dois salários mínimos e há uma parcela muito pequena de trabalhadores que ganham menos. De tal modo que o governo, ao estipular o valor do salário mínimo, acerta na remuneração de base do mercado de trabalho. Além disso, há os benefícios da Previdência Social associados ao salário mínimo. Assim, a sua aderência ao mercado é extensa. Não podemos esquecer que qualquer aumento do salário mínimo gera encargos para as contas públicas, para o mercado de trabalho.
O salário mínimo hoje é uma referência real do mercado de trabalho. Por esse motivo também, a política atual do salário mínimo é eficaz ao propor um aumento produtivo, garantido e sustentado. Desse modo, ela também permite que empresas, governo e trabalhadores absorvam os efeitos do aumento do salário mínimo, seja do ponto de vista das empresas, seja do ponto de vista das negociações salariais.
IHU On-Line – A atual política do salário mínimo tem alguma preocupação com o futuro da Previdência Social?
Cláudio Dedecca – Essa questão é extremamente relevante. A atual política do salário mínimo explicita uma vantagem: o aumento do salário mínimo tem gerado um duplo efeito virtuoso, pois aumenta o poder de compra dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, gera aumento da atividade produtiva, fortalecendo o mercado interno da economia. Ou seja, há mais emprego e arrecadação para a Previdência. Se o salário mínimo aumenta as despesas da Previdência com benefícios sociais, ele também tem gerado financiamento adequado para esses gastos através da elevação no nível da atividade econômica do país.
A preocupação do governo em preservar a regra é pertinente porque ela tem compatibilizado o aumento de gasto da previdência e aumento adequado de financiamento desse gasto. De tal modo que o governo mantém a regra por que ela compatibiliza um dos principais calcanhares de Aquiles da política social em relação ao salário mínimo.
IHU On-Line – Como avalia o salário mínimo brasileiro em comparação com outros países emergentes?
Cláudio Dedecca – A China tem um salário mínimo mais desfavorável que o brasileiro, e é a segunda economia do mundo. Comparando na América Latina, o salário mínimo brasileiro ainda tem um valor relativamente mais baixo do que, por exemplo, o da Argentina e do Chile. Entretanto, é preciso esclarecer que o Brasil é o único país que tem o salário mínimo com implicações extensas para a economia e para a política social. Todos os benefícios da Previdência encontram-se associados ao salário mínimo. Essa é uma experiência única no mundo.
Ao mesmo tempo em que o salário mínimo brasileiro se encontra em situação desfavorável se comparado a outros países da América Latina, ele conta um papel mais relevante na sociedade brasileira do que nas outras sociedades. Mantida a regra, não tenho dúvidas de que, ao final desta década, o Brasil terá o maior salário mínimo da região.
Não sei indicar outra solução mais eficaz do que o cumprimento da regra. Qualquer projeção indica, analisando o comportamento do salário mínimo em outros países emergentes, que o comportamento do salário mínimo brasileiro é o mais adequado dentre as diversas economias.
IHU On-Line – O que o corte de R$ 50 bilhões no orçamento da União representa? Há uma gravidade da situação fiscal ou de fato representa uma seriedade do governo com as contas públicas?
Cláudio Dedecca – Esse corte é uma prática corrente do governo. Existe, no Brasil e em outros países, um Congresso que gera despesas sem maiores preocupações com a fonte de receita. Então, o governo é constrangido a negociar orçamento, aprová-lo e, no início do ano, é obrigado a impor um corte de cautela, considerando metas econômicas desejadas.
Normalmente esse corte é feito, de modo extenso, no primeiro ano de mandato do governo.
Diria que o corte adotado pelo governo visa alcançar a meta e, ao mesmo tempo, analisar como fazer a gestão do orçamento em uma nova configuração política. O orçamento foi aprovado em parâmetros considerados pelos governos anteriores. Ocorre que hoje há novo Congresso, um novo governo federal e novos governos estaduais. Isto é, as condições políticas de execução do orçamento de 2011 mudaram considerando as condições que permitiram a sua elaboração. É normal que o governo faça um corte anual e, mais tarde, mexa nessa retenção. A minha expectativa é que esse corte seja atenuado no decorrer do ano à medida que governo consiga novos instrumentos para alcançar a meta do superávit, considerando o desempenho efetivo da economia.
IHU On-Line – Que valor de salário mínimo seria adequado para que as pessoas consigam viver com dignidade?
Cláudio Dedecca – R$ 1.200,00 seria, minimamente, um salário mínimo compatível com o grau de desenvolvimento do país e abriria a possibilidade de as pessoas terem condições de vida com dignidade. Entretanto, não vejo nenhuma possibilidade de o salário mínimo ser reajustado prontamente para esse valor. Essa é a razão pela qual considero que a política atual do salário mínimo, de aumento progressivo, é adequada por que viabiliza o salário mínimo no longo prazo e garante que a situação de justiça social seja conquistada num prazo razoável de tempo. Prefiro que essa seja uma perspectiva real do que apenas um sonho. O Brasil viveu, durante 60 anos, com o sonho de ter um salário mínimo justo e jamais conseguiu. Neste exato momento, o país tem a possibilidade de, ao final da década, conquistar essa situação. Prefiro ter um salário mínimo que progrida lentamente para um patamar justo, mas que seja garantido e sustentado pela nação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Salário mínimo: "É preciso abandonar a postura de pensar o Brasil a curto prazo". Entrevista especial com Cláudio Dedecca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU