13 Outubro 2010
“Eu não sou a favor do aborto, e, teoricamente, creio que ninguém é a favor disso. Mas precisamos discutir isso porque aborto ainda é uma questão de pobre nesse país. Os ricos continuam abortando e não morrem, porque fazem em clínicas bem aparelhadas”, ressalta o sociólogo e presbítero da Igreja Assembleia de Deus, Gedeon Freire de Alencar, durante a entrevista que concedeu por telefone à IHU On-Line. Ele discute a importância do voto evangélico para definição do primeiro turno e analisa seus caminhos para o segundo. Gedeon vibra ao apontar que, finalmente, a política esteja na pauta das igrejas e instituições religiosas, mas afirma que o “tiro pode sair pela culatra” dos conservadores que estão levantando essas questões: “se a nova geração se acostuma a discutir isso, vai também querer discutir outras coisas”.
Gedeon Freire de Alencar é presbítero da Igreja Assembleia de Deus Betesda em São Paulo, mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista, diretor pedagógico do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos (ICEC). É membro da Associação Brasileira de História da Religião. É autor de Protestantismo Tupiniquim: Hipóteses Sobre a (não) Contribuição Evangélica à Cultura Brasileira (Arte Editorial).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Dilma ganhou nas regiões onde o Bolsa Família tem mais abrangência. Conforme uma entrevista que o senhor nos deu, nas regiões mais pobres da sociedade aonde o pentecostalismo chegou, houve uma melhora na questão da alfabetização. Como o senhor vê a relação que se dará entre Dilma e os evangélicos neste segundo turno?
Gedeon Freire de Alencar – Uma coisa que tenho dito nessas últimas semanas é que, ironicamente, nós nos tornamos atores políticos no Brasil. Os evangélicos sempre viveram na marginalidade em quase todos os aspectos. Entramos quase pela porta dos fundos na política e agora, plagiando uma expressão, “nunca na história desse país” se falou tanto em religião na época de eleição. Segundo as pesquisas e analistas, a questão religiosa foi fundamental, principalmente, em função de o pleito ter chegado ao segundo turno. Agora, eu queria que fosse realizada uma pesquisa mais específica sobre essa questão do voto dos pobres e da religião, porque não estou muito convencido de que obrigatoriamente o pessoal vota ou não vota naquele candidato por alguma razão religiosa.
Sei que, quanto mais escolarizadas, as pessoas têm mais informação e o voto se torna mais complexo. Eu presumo que nas classes mais baixas, o voto se dá de forma muito instrumental e pelo meu interesse imediato. Nesse caso, a votação da Dilma na periferia se deu basicamente em função das necessidades imediatas que estavam sendo alcançadas, inclusive pelo Bolsa Família. Bom, aí você tem o recorte de evangélicos nessa região. Eu vi uma senhora de uma região muito pobre do nordeste sendo entrevistada e a repórter pergunta: “Você não vai votar na Marina que é evangélica?” E ela responde: “Pois é, na minha igreja todo mundo está falando nisso, mas eu vou votar no Lula porque tenho Bolsa Família”. Ou seja, para além das questões mais religiosas, as pessoas votam de fato em função de suas questões imediatas que estão sendo respondidas.
Nesse caso, como vai continuar a questão da eleição? A questão do aborto, ou do moralismo do aborto, esteve muito presente nessas eleições e isso pesou muito na decisão dos evangélicos. Porém, segundo tenho visto nos jornais, foi um fenômeno de internet. E poucas pessoas das classes C e D têm acesso à internet. As classes A e B do Brasil já têm acesso 100% à internet. Eu tenho minhas dúvidas em relação ao fato de as classes C e D estarem formando suas opiniões em função da discussão de internet. Tem algumas coisas que precisam ficar mais claras em relação a isso.
IHU On-Line – Teoricamente, vivemos num Estado laico. Como o senhor vê a dimensão que a religião está tomando nesse debate para o segundo turno?
Gedeon Freire de Alencar – Apesar de todos os males e problemas do “talismã gospel” que existe por aí, eu acho muito interessante porque, antes, exercitávamos o nosso evangelho dentro de quatro paredes e as questões do mundo não diziam respeito a nossa espiritualidade. Os pessimistas diziam que estava sendo algo muito confuso, muito ridículo essa relação entre religião e política, mas acho muito válido. Isso porque mal ou bem as igrejas começaram a discutir a eleição, mal ou bem os pastores se envolveram e as novas gerações começam a discutir esse negócio. Quem sabe as pessoas, com isso, se entusiasmam e começam a discutir esse negócio? Por mais que seja uma discussão moralista, conservadora, truncada, cheia de ressalvas e mentiras, eu vejo como algo muito interessante essa nova geração evangélica se inserindo na sociedade dessa forma.
Claro, há dois tipos de interesses envolvidos: uma coisa é pastor-deputado, senador-deputado, entre outros, que entram na discussão de disputa de poder. Estes não estão se esforçando para que a figura da Dilma ou do Serra seja digerida. Está se "cacifando" para que, quando um deles for eleito, se leve a nota promissória do que ele ganhou com isso. O povão está se entusiasmando com a discussão. E o tiro pode sair pela culatra das lideranças conservadoras, porque grandes pastores conservadores desse país (e é quase redundante falar em pastor conservador) têm trazido a questão do aborto e da homossexualidade para o debate das eleições e, se a nova geração se acostuma a discutir isso, vai também querer discutir outras coisas. Se entrar na moda, isto é, discutir todas as questões nacionais, isso vai ser muito bom, mas vai fazer com que as lideranças conversadoras percam o trem da história. Talvez eu esteja sendo ingênuo por achar isso maravilhoso, mas prefiro assim a ser pessimista em absoluto.
IHU On-Line – As diferentes igrejas deveriam, então, se posicionar em relação a um ou outro candidato?
Gedeon Freire de Alencar – Ao candidato não, porque fica muito corporativista. As igrejas e instituições deveriam se posicionar propositivamente. Alguém vai dizer que isso é muito ingênuo e idealista. Mas quantas eleições passaram e se discutiram essas questões e nós não tomamos partido algum. Transposição do São Francisco, privatização dos meios de comunicação entre outras questões foram debatidas e a igreja não se envolveu. Mas agora, a igreja está tendo a ver e tem uma resposta para dar. Portanto, as igrejas deveriam, de fato, se posicionar de forma prepositiva sobre, por exemplo, saneamento básico, remédios nos postos de saúde. Nós somos cidadãos desse país e do mundo, então podemos e devemos nos posicionar.
IHU On-Line – O que diferencia o posicionamento de Dilma e Serra em relação ao aborto e ao casamento gay?
Gedeon Freire de Alencar – Eu troco um pelo outro e não quero volta. Deixo bem claro que vou anular meu voto no segundo turno. Votei na Marina não achando que ela seria solução da lavoura e a salvação para o país, mas eu não opto por Dilma ou Serra porque eles são, para mim, absolutamente iguais e ambos estão fazendo uma política interesseira. Estão fazendo agora todo um discurso religioso, cristão, de quem teme a Deus, a favor da vida, quando ambos são a favor da descriminalização do aborto. O problema é que nessa discussão há uma mistura do que vem a ser descriminalização do aborto e legalização. São duas coisas completamente diferentes, mas é pedir muito que no debate político essas questões fiquem claras.
IHU On-Line – Os evangélicos podem mesmo ser os responsáveis pela definição deste segundo turno?
Gedeon Freire de Alencar – Pois não é. Não sei se a resposta é sim ou não. É lamentável que nem o Datafolha e nem o Ibope, nas últimas pesquisas, tenham colocado a questão religiosa na pergunta. Não dá para saber de fato se a maioria evangélica aderiu mesmo à Marina que teve toda essa simpatia dentro do universo religioso. Agora, afirmar que o universo evangélico será o grande diferencial, não é algo que tenho tanta certeza assim.
IHU On-Line – Então, que motivos vão conduzir os votos dos evangélicos?
Gedeon Freire de Alencar – O voto do evangélico, na média, é conservador. Nessa altura do campeonato, portanto, o PT está sofrendo do mal do veneno que plantou. O PT expulsou deputado que é contra o aborto e colocou isso no projeto de governo, o que é uma bobagem porque poderia ter deixado a questão para ser discutida depois. Isso não é projeto de governo. O mais lastimável em toda essa campanha é que o aborto virou a grande questão a ser discutida e esqueceu-se de debater o problema da Receita, da Casa Civil e corrupções gravíssimas. Está sendo muito conveniente para o governo Lula e para o próprio Serra que a discussão do aborto se torne fundamental e, com isso, se esqueça das questões econômicas e corrupção que estão por aí.
IHU On-Line – O possível apoio de Marina pode mudar esse cenário atual?
Gedeon Freire de Alencar – Espero que ela não apoie qualquer um dos dois. Se fizesse isso seria incoerente. Espero que ela permaneça neutra, continue fazendo o discurso da economia sustentável, levantando questões que Dilma e Serra não discutiram e se mantenha íntegra no seu posicionamento de questionamento. Eu acredito que ela não fará isso, embora a estrutura do PV possa se posicionar para ganhar alguns carguinhos.
IHU On-Line – Qual a importância dos valores religiosos na sociedade de hoje?
Gedeon Freire de Alencar – São muito importantes. Mas, para além disso, é preciso que pensemos no que são esses valores, quem está estabelecendo-os e quem está lucrando com isso. Ser visceralmente contra o aborto, em quaisquer circunstâncias, é também não pensar na vida da mulher, da família e da própria criança depois que é vítima ou fruto de, por exemplo, um estupro. Ou seja, que valor é esse que é tão absurdamente a favor de uma vida que nem existe ainda e é tão contra outras vidas que já estão existindo ou, no futuro, da vida que será problematizada? Eu não sou a favor do aborto, e, teoricamente, creio que ninguém é a favor disso. Mas precisamos discutir isso porque aborto ainda é uma questão de pobre nesse país. Os ricos continuam abortando e não morrem, porque fazem em clínicas bem aparelhadas. Meninas da periferia abusadas e mulheres pobres vão fazer aborto em clínicas que estão mais para açougues e morrem, mas morte de pobre em periferia não importa. Nesse momento, estão deturpando essa questão fazendo um “samba do teólogo doido” em cima de um assunto muito sério.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Aborto. assunto sério, virou um "samba do teólogo doido". Entrevista especial com Gedeon Freire de Alencar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU