12 Novembro 2008
Para o sociólogo Bernardo Sorj, no próximo ano viveremos uma profunda crise econômica na América Latina, principalmente aqueles países cuja renda depende dos commodities. “Acredito que esses governos, com a crise econômica mundial, não necessariamente entrarão em colapso, mas sim numa crise muito forte, cujos desdobramentos são dificilmente avaliáveis. Certamente, estaremos vivendo crises políticas importantes na América Latina, inclusive na Argentina”, afirma Sorj nesta entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Ele falou sobre o atual momento da América Latina e o que significa, por exemplo, a eleição de Obama e a crise econômica mundial para os acontecimentos políticos do continente.
Bernardo Sorj é graduado em História e Sociologia, pela Universidade de Haifa, em Israel, onde também cursou o mestrado em Sociologia. Na mesma área, realizou o doutorado na Manchester University, na Inglaterra, e o pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Atualmente, é membro do Institut des Amériques, coordenador da Ong Viva Rio e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o senhor define o momento atual da América Latina?
Bernardo Sorj – Precisamos compreender que a América Latina hoje está sofrendo a crise econômica mundial. Essa crise já está implicando numa queda enorme do valor das matérias-primas, o que geralmente se chama commodities. Inclui-se aí o petróleo, o gás, a soja etc. Na verdade, os governos de Chávez, Morales e Correa, apesar de um discurso mais de esquerda anticapitalista, se beneficiaram enormemente do aumento dos preços dessas commodities, porque são países em que o principal ingresso provém das rendas da exportação dessas matérias-primas. Ou seja, o Estado tem como base de financiamento, fundamentalmente, rendas extraordinárias de matérias-primas que são exportadas. Esses países têm economias pouco diversificadas, com baixa industrialização.
Acontece que, no momento em que essas matérias-primas estiverem caindo enormemente de preço, esses governos perdem parte importante do seu principal ingresso e de suas políticas sociais, que são financiadas por esses ingressos. Então, acredito que o momento que teremos a partir de 2009 será o de uma forte desestabilização de todos os países da região, mas em particular daqueles que dependem de ingressos de matérias-primas vendidas no exterior. Nesse sentido, acredito que esses governos, com a crise econômica mundial, não necessariamente entrarão em colapso, mas sim numa crise muito forte, cujos desdobramentos são dificilmente avaliáveis. Certamente, estaremos vivendo crises políticas importantes na América Latina, inclusive na Argentina, que tem ingresso do imposto para exportação de produtos agrícolas, em particular a soja, que é uma fonte de financiamento do Estado.
Então, eu diria que, em primeiro lugar, viveremos, no ano que vem, uma crise importante na América Latina em geral, em particular nos países que têm um ingresso dependente fundamentalmente da exportação de matérias-primas. Talvez a única exceção seja o Chile, pois para ele a exportação de minério é fundamental, embora sua economia tenha se diversificado bastante. A outra coisa que eles fizeram é o seguinte: o Chile tem um fundo de reservas separado para momentos de crise, algo que nem a Venezuela, nem Equador, nem a Bolívia fizeram. Eu diria que isso é o mais importante para o cenário que temos pela frente. Não estou fazendo essa reflexão em termos ideológicos, mas, sim, constatando que enfrentaremos uma situação de crise na América Latina, em particular nesses países.
IHU On-Line – A crise financeira muda perspectivas e paradigmas da economia e da política latino-americana?
Bernardo Sorj – Eu acredito que os governos que tiveram uma base política de mobilização de apoio popular sustentada fundamentalmente em políticas redistributivas usando o ingresso de matérias-primas hipervalorizadas certamente entrarão em crise. Quais deles entrarão realmente em colapso? É difícil realmente prever. Mas podemos prever, pelo menos, situações muito difíceis nesses países, inclusive na Argentina.
IHU On-Line – A eleição de Obama significa algum tipo de mudança para a América Latina?
Bernardo Sorj – Do ponto de vista estritamente econômico, eu não acredito. Em geral, o Partido Republicano sempre foi mais pelo livre comércio, pela abertura comercial. McCain propôs explicitamente não taxar a exportação brasileira do etanol, enquanto Obama é mais protecionista. Então, do ponto de vista econômico, eu acredito que a vitória de Obama não representa um beneficio direto para a América Latina. O que provavelmente influenciará a sua eleição é no nível político, pois a vitória do Obama representa um avanço de uma visão mais aberta nas relações sociais. Certamente, ele terá uma política mais aberta em relação a Cuba; esse é um tema que sempre dói na América Latina. O embargo estadunidense a Cuba, que é, sem dúvida, injusto, não se justifica uma razão para ser mantido. Neste sentido, Obama fará um avanço, que será razoavelmente simbólico.
IHU On-Line – Como o senhor vê a presença do neoliberalismo na América Latina a partir dessa crise financeira?
Bernardo Sorj – Obviamente que o chamado neoliberalismo entrou em colapso. Ele deixou de ser atual inclusive para aqueles que o defendiam. Dito isto, eu acho que seria um pouco simplista pensar que os problemas da América Latina se resolvem em termos de neoliberalismo ou anti-neoliberalismo. Porque existem governos, como o chileno, o uruguaio e o brasileiro, que basicamente continuaram promovendo as políticas econômicas de abertura do comércio mundial e as privatizações, ao mesmo tempo em que têm políticas sociais distributivas. Eu diria que na América Latina, a não ser em casos extremos, como foi o governo Carlos Menem, na Argentina, dificilmente podemos falar de governos neoliberais, no sentido ideológico forte.
O que houve foram políticas de liberalização muito fortes. No entanto, governos ideologicamente neoliberais, na América Latina, houve muito poucos. Tivemos aqueles que procuraram fortalecer o mercado, fizeram privatizações e fortaleceram a capacidade de exportação das suas economias, mantendo, em maior ou menor medida, políticas sociais. Eu não vejo os governos chileno, uruguaio e brasileiro passando por uma grande crise em função da crise econômica. Eu diria que na América Latina houve uma sobreideologização do debate do que vem a ser neoliberalismo. Então, eu diria que na América Latina esse colapso do neoliberalismo até vai mostrar que os problemas da região são um pouquinho mais complexos do que simplesmente sermos anti-neoliberais. Há problemas de regulação das economias de mercado. Em muitos países, a regulação foi insuficiente, mas isso nos ajuda a pensar todos os problemas que enfrentamos.
IHU On-Line – Será preciso repensar um projeto econômico e social para a América Latina em função da crise?
Bernardo Sorj – Não. O capitalismo sempre funcionou em crises. Nós precisamos nos acostumar com anos de extremo crescimento econômico e crises. No entanto, nos acostumamos que as crises são sempre inesperadas. As crises surgem e vão produzir alguma mudança. O que acontecerá? Os países desenvolvidos por alguns anos terão um crescimento baixo, o que afeta a América Latina, mas não irá se modificar muito o quadro político, partidário ou econômico. A crise está mostrando a importância dos grandes países emergentes, de serem parceiros das grandes decisões internacionais, o que irá favorecer o Brasil, certamente. Mas eu não acredito em nenhuma mudança radical. Nunca houve um projeto político-econômico latino americano e nem haverá com a crise. Pelo contrário, é muito possível que essa crise gere um maior protecionismo de cada governo, o que fragilizará os processos de integração econômica da região.
IHU On-Line – Para o senhor, qual o significado das lutas políticas na Bolívia de Evo Morales?
Bernardo Sorj – A meu ver, as lutas políticas na Bolívia têm significados para a Bolívia. Eu acredito que pensar que o que acontece lá implica uma certa mitologia de uma América Latina que caminha unida. A distância econômica entre a Bolívia, Argentina e o Chile é maior do que a distância entre Chile, Argentina e Estados Unidos, em termos de ingresso per capita. O que acontece na Bolívia é importante pelo processo de democratização vivido lá, pela liberdade que grupos que antes eram oprimidos conquistaram e que hoje procuram ter maior participação na vida política nacional e na distribuição de renda. Ao mesmo tempo, como são sociedades politicamente frágeis, a capacidade de absorver essas mudanças democratizantes são baixas, o que pode levar também a desequilíbrios importantes e, eventualmente, à fragilização da democracia.
IHU On-Line – Chávez mudou a forma de pensarmos a América Latina?
Bernardo Sorj – Sinceramente, não. O Chávez, se mudou alguma coisa, foi no interior da Venezuela. Isto é uma retórica que não diz muito respeito se você está no Brasil, no Chile, no Uruguai ou em outro lugar da América Latina. O bolivarianismo, que é a ideologia dele, não é conhecido por 99,9% dos brasileiros. Por isso, eu acho que o Chávez é mais um projeto político para a Venezuela com uma retórica latino- americana. Nós, da América Latina, temos um forte respeito pela soberania nacional e por isso Chávez não pode interferir. Além disso, com a seu descontrole verbal, acaba gerando, na verdade, uma grande oposição.
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Os impactos da crise financeira na América Latina. Entrevista especial com Bernardo Sorj - Instituto Humanitas Unisinos - IHU