31 Outubro 2007
As possibilidades e os limites da capacidade de integração competitiva, tecnológica, organizacional e social de empresas autogestionárias no tecido industrial brasileiro passa por um grande debate hoje no País. A Economia Solidária aponta para uma "outra economia".
Autogestão e competitividade. Estudo de caso em cooperativas industriais e bascas/espanholas é o tema da tese de doutorado de Alessandra Bandeira Antunes de Azevedo. Alessandra fez um estudo comparativo entre algumas empresas autogestionárias brasileiras e espanholas, como a Mondragón Corporación Cooperativa - MCC.
“A autogestão e os valores do cooperativismo permitiram que os empreendimentos bascos vencessem as crises econômicas, se reestruturassem e ampliassem o número de postos de trabalho. Nas cooperativas brasileiras, a combinação desses elementos possibilitou que em cinco anos empreendimentos considerados fracassados reconquistassem a credibilidade no mercado”, relatou Alessandra em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Alessandra Bandeira Antunes de Azevedo é graduada em Administração, pela Universidade Federal da Bahia. Realizou mestrado em Política Científica e Tecnicológica na Unicamp. Seu doutorado foi apresentado na Faculdade de Ciências Empresariais da Espanha - Mondragón Unibertsitatea.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as possibilidades e limites da capacidade de integração, de competição e tecnologia social e organizacional das empresas autogestionárias brasileiras?
Alessandra Azevedo – Esse foi exatamente meu objetivo com essa tese. Para isso, realizei um estudo comparativo entre empresas autogestionárias brasileiras - oriundas de massa falida - e espanholas/bascas – no caso a Mondragón Corporación Cooperativa (1) -, buscando identificar e compreender as formas de gestão e as estratégias de inovação e de concorrência utilizadas por estas empresas. Dado que a experiência brasileira é recente e a das empresas de Mondragón já tem mais de cinqüenta anos, apresentando um caso virtuoso que alia inovação, competitividade e autogestão, a comparação que fiz teve como objetivo não só entender a dinâmica deste tipo de empreendimento, como também verificar em que medida essa experiência pode apontar caminhos para os empreendimentos brasileiros.
A partir da experiência da Mondragón, entendo que, para as empresas autogestionárias brasileiras, a lógica de articular solidariedade e competitividade e a importância dada ao conhecimento tecnológico e à formação dos trabalhadores permitirão a construção de características organizacionais próprias, que serão fatores importantes para que o projeto tenha seu êxito e continuidade.
IHU On-Line – Quais são as principais diferenças e semelhanças entre as empresas autogestionárias brasileiras e espanholas/bascas?
Alessandra Azevedo – Nas cooperativas bascas, o estímulo à participação dos trabalhadores no cotidiano da gestão é uma preocupação constante. Na Fagor Ederlan (2), por exemplo, nenhum projeto pode ser desenvolvido sem a participação de alguém do chão de fábrica, e na Irizar (3) o trabalho é organizado em equipes multidisciplinares, e cada trabalhador participa de diversas equipes. Essas práticas têm o objetivo de estimular participação em todos os níveis, mobilizando o conhecimento tácito dos trabalhadores para promover a inovação e a melhoria contínua das cooperativas. É interessante observar que a idéia das equipes multidisciplinares de Irizar é similar à dos comitês da GeralCoop (localizada em Guaíba, no Rio Grande do Sul).
Nas cooperativas bascas da MCC, a formação sempre foi tida como fundamental para a independência econômica e tecnológica. A primeira cooperativa nasce articulada com a Escola Técnica. Atualmente, existem na corporação três faculdades, um centro de treinamento empresarial, além de diversas cooperativas de ensino e onze centros tecnológicos. O papel que os centros tecnológicos, a universidade e os inúmeros tipos de parceria que as cooperativas desenvolvem no momento presente, tanto com o poder público como com instituições privadas, permitem a intensificação do desenvolvimento de novos produtos. A inovação tecnológica é considerada estratégica para a corporação.
Nas três cooperativas brasileiras que eu estudei, a formação do trabalhador e a capacidade de inovação tecnológica são consideradas fundamentais. Vale destacar o convênio estabelecido em 2004, entre a GeralCoop e a Faculdade de Engenharia de Produção da Universidade do Rio Grande do Sul, com recursos do Ministério da Ciência e Tecnologia para o desenvolvimento de um aquecedor a gás com tecnologia 100% brasileira, previsto para finalizar no segundo semestre de 2007.
A autogestão e os valores do cooperativismo permitiram que os empreendimentos bascos vencessem as crises econômicas, se reestruturassem e ampliassem o número de postos de trabalho. Nas cooperativas brasileiras, a combinação desses elementos possibilitou que em cinco anos empreendimentos considerados fracassados reconquistassem a credibilidade no mercado diante de clientes e fornecedores, superassem os desafios do desfalque profissional do médio e alto escalão, da antiguidade do maquinário e da falta de crédito. A autogestão e a responsabilidade pelo empreendimento desencadeiam na maioria dos trabalhadores um maior comprometimento e eleva sua auto-estima.
IHU On-Line – Que caminhos as empresas de Mondragón podem apontar para os empreendimentos brasileiros, visto que a experiência espanhola já tem mais de 50 anos?
Alessandra Azevedo – A solidariedade presente desde o primeiro momento da experiência em Mondragón se materializa de várias maneiras, seja nos fundos inter-cooperativos, na distribuição do excedente ou na retirada dos trabalhadores. Solidariedade que viabilizou a construção de formas organizacionais, que permitem atuar em conjunto respeitando a autonomia das cooperativas de base. A estratégia de inter-cooperação se manifestou na criação de uma estrutura organizacional inter-cooperativa e de instituições de suporte (banco, previdência, escola técnica e posteriormente universidade e centros tecnológicos), que foram, ao longo do tempo, mostrando-se fundamentais para a sobrevivência e manutenção da independência econômica e tecnológica das cooperativas. Essas instituições permitiram o enfrentamento de duas crises econômicas no decorrer da sua história e a manutenção dos valores e princípios orientadores da experiência: solidariedade, inter-cooperação, criação e manutenção do emprego, auto-gestão e democracia. Em 2005, a MCC reunia 108 cooperativas, com 78.455 trabalhadores e um faturamento de 11.859 milhões de euros.
As cooperativas industriais autogestionárias brasileiras surgem no interior de um fenômeno caracterizado como Economia Solidária, que reúne uma enorme diversidade de iniciativas econômicas geridas pelos trabalhadores, que buscam combinar eficiência e viabilidade econômica com princípios cooperativos e democráticos. Essas iniciativas emergem no Brasil, de forma esparsa na década de 1980, crescendo a partir da segunda metade dos anos 1990, como uma reação de diversos movimentos sociais à crise de desemprego em massa. Esta se iniciou em 1981 e foi agravada com a abertura do mercado interno às importações a partir de 1990. Vale destacar que a década de 1980, no Brasil, se caracterizou pelo processo de redemocratização do país tanto pelo crescimento de diversos movimentos sociais rurais e urbanos quanto pelo fortalecimento do sindicalismo. O cooperativismo industrial autogestionário se inicia como parte da luta contra o desemprego e a precarização do trabalho associados à reestruturação produtiva travada pelos sindicatos de trabalhadores.
Nesse processo, se destacam os sindicatos vinculados à CUT, especialmente os metalúrgicos do Rio Grande do Sul e do ABC paulista, regiões onde surge esse tipo de cooperativismo industrial durante a década de 1990. Entre as ações de enfrentamento da crise industrial e do desemprego, o sindicato dos metalúrgicos do ABC, a partir de 1996, passa a apoiar a criação de cooperativas autogestionárias e a admitir os cooperados como sócios do sindicato. A partir de 2000, se inicia a criação de instituições promovendo a inter-cooperação por iniciativa dos sindicatos ligados à CUT. Em 2004, a transformação da Unisol (4) cooperativas em Unisol Brasil, possibilitou o aumento de sua atuação tanto do ponto de vista geográfico, como em termos de áreas de atuação e foi criada a Ecosol (5) para aglutinar as cooperativas de crédito. Atualmente, a Unisol Brasil conta com 180 empreendimentos filiados, reunindo um total de 8470 trabalhadores, dos quais vinte e um são cooperativas industriais autogestionárias pertencentes aos setores metalúrgico, têxtil e químico.
IHU On-Line – Em sua opinião, em que medida o movimento do cooperativismo industrial brasileiro vai conseguir criar e desenvolver estruturas imponentes para fortalecer a inter-cooperação?
Alessandra Azevedo – As cooperativas brasileiras estudadas são extremamente recentes: de dez (UNIFORJA) a seis anos (GeralCoop e CTMC), com um número de trabalhadores que varia de 145 (Geralcoop) e 513 (UNIFORJA) - localizada em Diadema, em São Paulo -, todas são empresas recuperadas oriundas de empresas tradicionais. Duas delas atuam no setor de bens de capital sob encomenda, um dos setores mais tradicionais da indústria, intensivo de mão-de- obra especializada, onde a escala não é atributo fundamental. As três cooperativas conseguiram recuperar seus antigos clientes e ampliar seu mercado de atuação. Elas vêm superando a cada dia o desafio da recuperação das empresas que estavam falidas ou em via de falência e tiveram que enfrentar muitas dificuldades, pois herdaram parques fabris obsoletos comprometidos pela falta de manutenção. Tanto a CTMC (6) como a Uniforja, em 2004, tinham começado o processo de atualização da fábrica e aquisição de certificações.
Nas cooperativas brasileiras, a participação é vista como muito importante para a recuperação dos empreendimentos. Os espaços institucionalizados de participação de uma cooperativa (assembléia, conselho administrativo e conselho fiscal) para os entrevistados são espaços democráticos, onde se materializam a democracia e a solidariedade. O processo de reestruturação do parque fabril tem contado com melhorias realizadas pelos próprios trabalhadores, tanto nas máquinas como no processo. Todas têm algum mecanismo de gestão para promover a descentralização do processo decisório e estimular a participação dos trabalhadores no cotidiano das empresas, estimulando inovações incrementais e elevando sua auto-estima. O exemplo da GeralCoop é interessante: todas as coordenações são apoiadas por comitês compostos por trabalhadores de diversas áreas com mandato de um ano, que se reúnem mensalmente para auxiliar na resolução de problemas e pensar nas estratégias da área.
O objetivo desse tipo de empresa precisa ser provocar a participação dos cooperados na gestão cotidiana da cooperativa, estimulando o seu envolvimento em diversas esferas de atividades, o que tem proporcionado uma maior coesão da cooperativa, além de uma visão global do negócio entre os trabalhadores de chão de fábrica. Os comitês também contribuem para a difusão das informações, e sua composição permite que outros olhares possam contribuir de maneira criativa para a resolução de problemas. Quanto maior a participação e o comprometimento do trabalhador em criar e manter estruturas democráticas dentro das cooperativas que contribuam com a difusão da informação, maiores são os efeitos positivos da autogestão. Em empresas que operavam no modelo fordista, os trabalhadores incorporaram elementos da especialização flexível. O trabalhador foi valorizado, e passou a se estabelecer redes de cooperação, dando condições a ele de acompanhar o cotidiano da empresa, aumentando seu engajamento e investindo na sua qualidade, na melhoria dos processos e na atenção ao cliente.
IHU On-Line – Quais são as dificuldades que essas empresas encontram hoje, vivendo nesse modelo organizacional?
Alessandra Azevedo – Atualmente, as dificuldades encontradas pelo cooperativismo industrial basco e brasileiro são distintas. Os desafios atuais da MCC estão relacionados com a internacionalização e sua relação com os princípios norteadores do cooperativismo. Ela se deu através da criação de filiais e permanece como uma possibilidade a criação do que Arizmendiarrieta (6) chamou, em 1974, de cooperativismo articulado, ou seja, a cooperativa transnacional como resultado de acordos democráticos entre organizações cooperativas em diversos países. Trata-se repensar os valores e princípios que orientaram a experiência no nível local para o global, ou seja, para a solidariedade global.
Já para as cooperativas brasileiras, o foco da discussão está em consolidar, juntamente com as instituições de apoio, ferramentas de inter-cooperação que visem à independência econômica e tecnológica das cooperativas, proporcionando a criação e manutenção de postos de trabalho. Para isso, é necessário ampliar e adequar as linhas de financiamento para que sejam acessíveis a um número maior de empreendimentos, criar arranjos criativos que ampliem a cooperação com universidades e centros de pesquisa, e que promovam a inovação, o desenvolvimento tecnológico e a atuação conjunta para a ampliação de seus mercados de atuação. Ainda que extremamente recente, a Unisol Brasil vem caminhando nessa direção.
IHU On-Line – É possível verificar algo da experiência da Mondragón na experiência brasileira?
Alessandra Azevedo – Os elementos básicos da experiência de Mondragón estão presentes no cooperativismo industrial brasileiro. Fica em aberto saber em que medida o movimento vai conseguir criar e desenvolver estruturas mais robustas para apoiar os empreendimentos, fortalecendo a inter-cooperação. É importante que as iniciativas criem economias de rede entre empresas dessa natureza, revitalizando o conceito de cooperação, o que pode constituir uma vantagem comparativa contemporânea. O caminho próprio das empresas autogestionárias é a busca da eficiência pela cooperação e não pelas formas de controle típicas das empresas capitalistas brasileiras. É necessário combinar a disponibilidade de recursos financeiros para investimentos com ações institucionais e políticas, a fim de se criar um ambiente propício a esses empreendimentos.
A história da Economia Solidária no Brasil, ainda que recente, tem demonstrado sua capacidade de governança, ao mobilizar atores públicos e privados e desde seu surgimento tem atuado em redes. É possível verificar que a rede dos empreendimentos da Economia Solidária vem crescendo e avançando no sentido de conseguir apoio para o fortalecimento do movimento.
Notas:
(1) Criada em 1956, a Mondragón Corporación Cooperativa é um grupo de cooperativas e empresas originárias do País Basco e, atualmente, pode ser encontrada por toda a Espanha e outros países, como Índia e Rússia. É considerada o primeiro grupo empresarial basco e o sétimo espanhol, assim como o maior grupo cooperativo do mundo. Foi fundada pelo sacerdote José María Arizmendiarrieta e sua sede fica na vila Mondragón, na zona industrial do Valle de Léns. Entre os projetos que estuda, hoje, está a criação de um polígono industrial na China.
(2) A Fagon Ederlan é a união de duas empresas: a Fundição Brasileira e a Fagor Ederlan S. Coop. Feita a união, em 2001, definiu-se a instalação de outra empresa do grupo na mesma planta de trabalho. Surgia então a Fagor Ederlan do Brasil, uma planta de usinagem voltada para a usinagem das "mangas de eixo". Em dezembro de 2003, a Fagor Fundição Brasileira passou a ser 100% de capital espanhol, representante no Brasil da Divisão Automotiva do Grupo Industrial da Mondragón Corporación Cooperativa. Possui certificação tanto na TS16949, quanto na ISO14001, gera mais de 400 empregos, produz cerca de 30.000 toneladas ao ano e conta com um parque industrial de aproximadamente 170.000 m², além de um aterro industrial destinado ao recebimento de areia de fundição. Está localizada em Ponte Alta - Extrema, Minas Gerais.
(3) A encarroçadora de ônibus rodoviários IRIZAR, cuja matriz está sediada em Ormaiztegi, país Vasco localizado no norte da Espanha, iniciou suas atividades no Brasil em julho de 1998, estando situada em Botucatu, no Estado de São Paulo. No Brasil, além da fábrica em Botucatu, a Irizar tem representantes em Teresina, para atender os Estados do Piauí e Ceará; Maranhão para atender os Estados do Tocantins, Goiás, Pará, Maranhão e Distrito Federal; Recife, que atende Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas; Salvador, atendendo toda a Bahia e Sergipe; Rio de Janeiro, cobrindo todo o Estado do Rio de Janeiro e do Espírito Santo; São Paulo, para atender ao Estado de São Paulo; Belo Horizonte, cobrindo Minas Gerais; Florianópolis, que cobre os mercados do Paraná e Santa Catarina; e Porto Alegre que atende a todo Rio Grande do Sul.
(4) A Unisol Brasil - União e Solidariedade das Cooperativas Empreendimentos de Economia Social do Brasil - consiste em associação civil sem fins lucrativos, de âmbito nacional, de natureza democrática, cujos fundamentos são o compromisso com a defesa dos interesses reais da classe trabalhadora, a melhoria das condições de vida e de trabalho das pessoas e o engajamento no processo de transformação da sociedade brasileira em direção à democracia e a uma sociedade mais justa. Está localizada em São Bernanrdo do Campo, em São Paulo.
(5) O Ecosol é um sistema de apoio à cooperativas de crédito solidário, como uma forma de promover o fortalecimento da economia solidária e do desenvolvimento sustentável. Nos pontos abaixo, é possível encontrar informações sobre a criação e o desenvolvimento do Sistema Ecosol. Está localizada em São Paulo (SP).
(6) A CTMC é uma empresa de metalurgia, constituída por trabalhadores empenhados em ultrapassar cada um dos limites que existem entre as idéias e os projetos, entre os projetos e a realidade. Atuando no ramo metal-mecânico, projeta, fabrica e monta equipamentos industriais sob encomenda em aço carbono, aço inoxidável e aço-liga. Está localizada em Canoas, no Rio Grande do Sul.
(7) José María Arizmendiarrieta Madariaga foi o fundador do movimento cooperativo basco que deu origem ao Grupo Mondragón Cooperación Cooperativa. Sacerdote, intelectual e pragmático, Arizmendiarrieta é considerado um dos homens que teve brilhantes estratégias econômicas e forte sensibilidade social. Teorizou sobre a MCC e sua reforma, baseado na Teoria Social da Igreja, com o objetivo de conscientizar sobre a necessidade de participação das pessoas nas organizações.
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Autogestão e competitividade. Mondragón e a Economia Solidária. Entrevista especial com Alessandra Bandeira Antunes de Azevedo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU