Vaticano: "Sexo no casamento é mais do que ter filhos, fortalece a união dos cônjuges"

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26 Novembro 2025

O ex-Santo Ofício publica uma nota doutrinal sobre o valor da monogamia, após alguns bispos africanos terem justificado a poligamia de alguns fiéis. O debate no Concílio Vaticano II, a encíclica de Paulo VI contra a pílula anticoncepcional e o espectro do "processo de Galileu".

A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Repubblica, 25-11-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.

A Santa Sé reafirma o valor da monogamia em uma nota doutrinal do antigo Santo Ofício que, nascida na sequência do debate sobre a poligamia praticada por alguns fiéis africanos, que emergiu durante o Sínodo Mundial, retoma a linha do Concílio Vaticano II e, enriquecendo o raciocínio com citações de poetas como Pablo Neruda e Eugenio Montale, chega a afirmar que "a união sexual, como modalidade de expressão da caridade conjugal, deve naturalmente permanecer aberta à comunicação da vida, mesmo que isso não signifique que deva ser um propósito explícito de todo ato sexual". O documento, um "elogio à monogamia", intitula-se "una caro", uma só carne, "a forma como a Bíblia expressa a unidade matrimonial".

Poligamia africana e poliamor ocidental

Na origem desse texto, explicam o Cardeal Victor Manuel Fernandez e Monsenhor Armando Matteo, Prefeito e Secretário do Dicastério para a Doutrina da Fé, na sua introdução, “estão, por um lado, os vários diálogos com os bispos de África e de outros continentes sobre a questão da poligamia, no contexto das suas visitas ad limina, e, do outro, a constatação de que várias formas públicas de união não monogâmica — por vezes chamadas de “poliamor” — estão crescendo no Ocidente, além daquelas mais reservadas ou secretas que foram comuns ao longo da história”.

Durante o duplo sínodo mundial sobre a sinodalidade, presidido pelo Papa Francisco em 2023-2024, alguns participantes do Norte da Europa notaram que os bispos africanos, que contestam as aberturas pastorais aos homossexuais, defendem, pelo contrário, a prática da poligamia no seu continente. Para esse fim, foi criado um grupo de estudos teológicos, presidido pelo Cardeal Fridolin Ambongo Besungu, Arcebispo de Kinshasa, que concluirá os trabalhos no final do ano. Nesse meio tempo, o ex-Santo Ofício publicou sua nota doutrinal para abordar a questão em viés positivo — não contra a poligamia, ou o "poliamor" ocidental, mas a favor da monogamia — ainda assim indo à raiz do debate, que se intensificou durante o Concílio Vaticano II (1962-1965).

Não se trata de um documento sobre a indissolubilidade. Como afirma o próprio Código de Direito Canônico, "as propriedades essenciais do matrimônio são a unidade e a indissolubilidade", recorda a nota doutrinal. Contudo, embora exista "uma vasta bibliografia" sobre a indissolubilidade matrimonial, e "esse tema tenha recebido muito mais atenção no Magistério, particularmente no recente ensinamento de muitos bispos em função da legalização do divórcio em diversos países, em relação à unidade do casamento — isto é, o casamento entendido como união única e exclusiva entre um homem e uma mulher —- ao contrário, existe uma menor reflexão do que sobre o tema da indissolubilidade, tanto no Magistério como nos manuais dedicados ao assunto. Por essa razão, neste texto optamos por nos concentrar sobre a propriedade da unidade e sua reflexão existencial: a comunhão íntima e totalizante entre os cônjuges." A nota, portanto, não aborda a "indissolubilidade conjugal — uma união que perdura até que a morte separe os cônjuges cristãos — nem o propósito da procriação: ambos os temas são amplamente tratados na teologia e no Magistério", mas se concentra "apenas na primeira propriedade essencial do casamento, a unidade, que pode ser definida como a união única e exclusiva entre uma mulher e um homem ou, em outras palavras, como a pertença mútua dos dois, que não pode ser compartilhada com outros".

Papas, teólogos, poetas

Uma ampla seção da nota revisa as diversas passagens sobre o tema encontradas no Antigo e no Novo Testamento, as intervenções dos Papas, de Inocêncio III a Leão XIV, dos Padres da Igreja, de teólogos, mas também de poetas: diferentemente de outros textos análogos, de fato, o documento do antigo Santo Ofício faz extensas citações de Pablo Neruda, Eugenio Montale, Paul Éluard ("Nós Dois", que era o título inicial da nota doutrinal), Rabindranath Tagore e Emily Dickinson.

A "caridade conjugal"

O Dicastério para a Doutrina da Fé, que sob a direção de Fernández autorizou a bênção de casais homossexuais e publicou recentemente uma nota doutrinal sobre a Virgem Maria, conclui seu raciocínio valorizando dois aspectos da "unidade" matrimonial: "o pertencimento mútuo e a caridade conjugal". "O pertencimento mútuo próprio do amor mútuo exclusivo", adverte o ex-Santo Ofício, "implica um cuidado delicado, um sagrado receio que profanemos a liberdade do outro, que tem a mesma dignidade e, portanto, os mesmos direitos. Quem ama sabe que o outro não pode ser um meio para resolver a sua própria insatisfação; sabe que o seu próprio vazio deve ser preenchido de outras maneiras, nunca pela dominação do outro. É isso que não acontece em muitas formas de desejo doentio que resultam em várias manifestações de violência explícita ou sutil, opressão, pressão psicológica, controle e, por fim, asfixia.” Por outro lado, “a união afetiva, fiel e total, configura-se no casamento como uma amizade, porque, em última análise, a caridade é uma forma de amizade.”

Não apenas procriação

“Uma visão integral da caridade conjugal”, escreve o ex-Santo Ofício, “não nega a sua fecundidade, a possibilidade de gerar uma nova vida, porque ‘essa totalidade, exigida pelo amor conjugal, corresponde também às exigências de uma fecundidade responsável’. A união sexual, como modalidade de expressão da caridade conjugal, deve naturalmente permanecer aberta à comunicação da vida, mesmo que isso não signifique que deva ser um fim explícito de todo ato sexual.” Após formular essa afirmação, o dicastério responsável pela ortodoxia católica cita três exemplos dados por Karol Wojtyla: o caso de um casal que não pode ter filhos, o de um casal que “não busca conscientemente um determinado ato sexual como meio de procriação” e o de “um casal que respeita os tempos naturais da infertilidade”.

O Concílio e o processo de Galileu

É precisamente este último exemplo – que a nota doutrinal não menciona explicitamente – que Paulo VI usou para contestar, na histórica encíclica Humane Vitae de 1968, o recurso dos fiéis à pílula (os chamados métodos contraceptivos artificiais). Recuando, assim, um pouco em relação às aberturas do Concílio Vaticano II que, como recorda a nota, “apresenta o casamento primeiramente como uma obra de Deus, que consiste numa comunhão de amor e de vida que os dois cônjuges compartilham, uma comunhão que não é orientada apenas para a procriação, mas também para o bem integral de ambos”. Durante o Concílio, Paulo VI também criou uma comissão de especialistas em controle da natalidade, e o Cardeal Josef Leo Suenens, Arcebispo de Bruxelas e líder dos progressistas, se questionou a Igreja não teria enfatizado tanto as palavras bíblicas “crescei e multiplicai-vos”, a ponto de subestimar o “serão dois em uma só carne” – título da nota publicada hoje – concluindo seu discurso com um pedido: “Imploro-vos, irmãos: evitemos um novo ‘processo Galileu’. Um é suficiente para a Igreja.”

Superar o debate entre as finalidades

A nota doutrinal prossegue retomando Pio XI, que, podemos ler, “ajuda a superar o debate sobre a relação entre as finalidades ou significados do casamento (procriativo e unitivo) e a ordem que existe entre eles, colocando a caridade conjugal acima dessa dialética das finalidades e dos bens como questão central da vida matrimonial, o que, por sua vez, lhe confere uma fecundidade multiforme. Os cônjuges, mesmo nos momentos mais difíceis, podem dizer: “Somos amigos, amamo-nos, valorizamo-nos, decidimos compartilhar toda a nossa vida, pertencemos um ao outro e escolhemos livremente essa união que o próprio Deus abençoou e consolidou. Se acontecer em um determinado momento não ter filhos, permanecemos unidos e somos fecundos de outras maneiras; se acontecer em determinado momento não ter relações sexuais, continuamos a viver essa amizade única, exclusiva e totalizante, que é também o nosso melhor caminho para o amadurecimento e a santificação”.

"Pode parecer estranho"

Na introdução, além disso, o ex-Santo Ofício expressa a esperança de que "essa Nota sobre o Valor da Monogamia, destinada principalmente aos Bispos e abordando um tema tão importante e, ao mesmo tempo muito belo, possa ser útil a casais, noivos e jovens que pensam numa futura união, para melhor compreender a riqueza da proposta cristã sobre o casamento. É verdade”, admitem os líderes do dicastério doutrinal, “que, para muitos, tal mensagem poderá até soar estranha ou contracorrente, mas podemos aplicar a eles as seguintes palavras de Santo Agostinho: 'Dai-me um coração que ame, e ele compreenderá o que eu digo'”. A nota foi aprovada pelo Papa Leão XIV em 21 de novembro.

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