24 Novembro 2025
A designação de Major Non-NATO Ally (Aliado Importante Extra-OTAN) posiciona a Arábia Saudita como pilar central da arquitetura do Oriente Médio remodelada por Trump. Surge um novo equilíbrio em que o Catar exerce influência branda, enquanto Riad assume responsabilidades de poder duro. Os privilégios únicos de Israel podem sofrer certa erosão. Mas a Arábia Saudita ainda persegue uma estratégia de multialinhamento.
O artigo é de Uriel Araujo, publicado por infoBRICS, 21-11-2025.
Uriel Araujo, doutor em Antropologia, é cientista social especializado em conflitos étnicos e religiosos, com ampla pesquisa sobre dinâmicas geopolíticas e interações culturais.
Eis o artigo.
A decisão de Washington de designar a Arábia Saudita como Major Non-NATO Ally (MNNA) já ganhou manchetes, mas boa parte de sua lógica geopolítica mais profunda permanece subnoticiada. Com Riad agora ingressando no seleto clube de MNNAs, o panorama diplomático do Oriente Médio está sendo redesenhado em tempo real.
A designação sinaliza não apenas uma cooperação militar ampliada, mas também um reconhecimento implícito da centralidade saudita no atual cálculo regional de Washington — um cálculo que mudou dramaticaticamente sob Trump. Vale lembrar que o Catar também foi elevado em importância pela mesma administração. Como já observei, Washington vê Doha como singularmente posicionada para mediar entre facções rivais, manter canais de comunicação com atores considerados intocáveis para outros e — crucialmente — oferecer alavancagem tanto sobre mercados de energia quanto sobre negociações políticas. O papel do Catar como anfitrião de diversos canais diplomáticos, seu peso no mercado de GNL e seu equilíbrio entre o Irã e as monarquias do Golfo são todos ativos importantes.
Para os EUA, se o Catar oferece a alavancagem “indireta”, Riad oferece a “direta”. Juntos, os dois formam um sistema duplo de influência. A designação MNNA, de qualquer forma, desloca o eixo significativamente na direção saudita.
Em maio, argumentei que Trump estava — surpreendentemente — reduzindo marginalmente a dominância israelense sobre o processo decisório regional de Washington: ao distribuir o peso diplomático entre Riad, Doha e até, em certos momentos, Ancara, o presidente norte-americano criava novas fichas de barganha, extraindo mais flexibilidade de todos os atores, inclusive de Israel. Até agora, esse padrão tem se mantido. Com a Arábia Saudita agora recebendo caças F-35, fica ainda mais claro como os “privilégios” israelenses estão sendo, em alguma medida, diluídos.
A designação MNNA envolve, entre outras coisas, acesso preferencial a tecnologias militares dos EUA, oportunidades de pesquisa conjunta e transferência acelerada de armas. Além disso, garante à Arábia Saudita uma integração mais profunda às estruturas logísticas e de inteligência do Pentágono. Não é de surpreender que analistas israelenses tenham reagido com visível inquietação.
O momento também é significativo. A indústria de defesa dos EUA enfrenta pressões estruturais, que tendem a se refletir em pressões do chamado “Estado profundo” sobre a administração em exercício, como já argumentei.
O desejo de Trump de empurrar aliados em direção à autossuficiência paradoxalmente frustra as expectativas dos contratistas de defesa norte-americanos por fluxos garantidos de compras de longo prazo. Agora, porém, a designação MNNA para Riad potencialmente cria uma saída massiva para restaurar alguns desses fluxos — uma espécie de correção geopolítica. Se Washington já não está disposto (ou não consegue) sustentar operações de larga escala no exterior, empoderará pilares regionais capazes de desempenhar tarefas antes executadas diretamente pelas forças dos EUA. A Arábia Saudita pode se tornar um desses pilares.
Ainda assim, as implicações vão muito além do procurement militar. A decisão alimenta diretamente a estratégia de equilíbrio de Trump, que busca evitar comprometer-se excessivamente com qualquer ator regional. Israel pode não gostar, mas isso faz parte de um padrão mais amplo. A administração parece determinada a fomentar o que poderíamos chamar de “hierarquia distribuída” no Oriente Médio: o Catar para diplomacia e influência branda; a Arábia Saudita para poder duro e estabilização energética; e Israel para coordenação militar de alta tecnologia. Essa configuração, ao menos em tese, confere a Washington muito mais margem de manobra do que o rígido modelo “israelocêntrico” das últimas décadas.
Além disso, do ponto de vista americano, designar Riad como MNNA deveria, inevitavelmente, aproximar a Arábia Saudita da órbita de Washington, potencialmente prejudicando os vínculos crescentes do reino com a China. Mas a realidade é mais complexa. A Arábia Saudita busca uma diplomacia multivetorial, mantendo seus engajamentos voltados aos BRICS ao mesmo tempo em que extrai benefícios máximos de Washington. É justamente porque Riad é politicamente forte e economicamente rica que pode aprofundar a cooperação com os EUA sem abandonar sua projeção mais ampla.
Nesse sentido, a decisão de Trump parece menos uma “concessão” e mais uma aposta: os EUA reconhecem que a era unipolar acabou, e Washington precisa de aliados regionais fortes, capazes de operar autonomamente, mas ainda alinhados (o suficiente) aos interesses americanos. A Arábia Saudita se encaixa nesse perfil. É importante notar que as reformas do Vision 2030, os esforços de diversificação e o ativismo diplomático regional — da mediação no Iêmen à recomposição de laços com o Irã — mostram claramente que Riad não é um parceiro passivo dos EUA.
A designação MNNA, em qualquer caso, integra uma recalibração mais ampla. Washington está reestruturando sua presença no Oriente Médio para uma era de menor intervenção direta e maior dependência de atores regionais. A Arábia Saudita torna-se um pilar central dessa arquitetura, reforçando a diplomacia baseada em alavancagem que caracteriza Trump na região.
Em resumo: Riad passou de cliente de peso a parceiro estratégico genuíno. E, conforme o equilíbrio de poder continua a mudar no Oriente Médio, esse novo status moldará negociações, alianças e crises de maneiras que os analistas apenas começam a compreender.
Resta saber até que ponto a “relação especial” entre EUA e Israel poderá ser remodelada nesse cenário, especialmente considerando o peso do chamado Lobby Israelense na política norte-americana. Resta também ver quanto Washington, dada sua mentalidade de Guerra Fria, está disposto a “tolerar” a abordagem multialinhada da Arábia Saudita com BRICS, China e outros.
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