Professora da UFPA avalia que a exclusão de vozes da Amazônia nos debates da COP30 revela contradições do sistema ONU e aprofunda a injustiça climática.
Para ela, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em novembro em Belém, está prestes a reproduzir desigualdades do sistema internacional da ONU Formado pelas instituições, programas e organismos ligados a ONU, como a Assembleia Geral, a Organização Mundial da Sáude e o Fundo das Nações Unidas para a Infância., ignorando inclusive o Acordo de Paris, assinado há 10 anos. Ela aponta que o preâmbulo do documento já reconhecia a centralidade dos direitos humanos, da equidade de gênero e da proteção de povos indígenas e comunidades locais no enfrentamento à crise climática.
“Reconhecendo que a mudança do clima é uma preocupação comum da humanidade, as Partes deverão, ao adotar medidas para enfrentar a mudança do clima, respeitar, promover e considerar suas respectivas obrigações em matéria de direitos humanos, direito à saúde, direitos dos povos indígenas, comunidades locais, migrantes, crianças, pessoas com deficiência e pessoas em situação de vulnerabilidade e o direito ao desenvolvimento, bem como a igualdade de gênero, o empoderamento das mulheres e a equidade intergeracional”, diz trecho do Acordo de Paris.
Assim, Vecchione defende que a sociedade civil e as comunidades são atores necessários para qualquer tomada de decisão — o que ela avalia não estar acontecendo: “a maior causa do colapso climático e das injustiças climáticas é separar sociedade [estrutura e organização social] e natureza e pessoas de natureza [comunidades]”, diz. Para ela, diminuir as distâncias entre negociadores e operadores e as vozes dos territórios exige da sociedade civil um trabalho persistente de mobilização.
Com a realização da COP30 no Brasil e na Amazônia, a pesquisadora acredita que o encontro pode representar um marco de pluralidade global, com a presença de lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas — algo ausente nas últimas edições, pós-pandemia, sediadas no Egito, Emirados Árabes Unidos e Azerbaijão, países de perfil autoritário que não permitiram a manifestação maciça dessas comunidades.
Marcela Vecchione Gonçalves. (Foto: Manuela André/Sialat)
Nesta entrevista à InfoAmazonia, a pesquisadora analisa os entraves para unificar demandas sociais no Acordo de Paris, avalia os caminhos da sociedade civil e aponta o que ainda falta para chegar a um texto final mais inclusivo nos acordos internacionais sobre o clima.
Marcela Vecchione Gonçalves, doutora em Relações Internacionais e professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), pesquisa, há 16 anos, o financiamento para mitigação e adaptação às mudanças climáticas — em particular sobre como isso impacta a sociedade civil na Amazônia.
A entrevista é de Jullie Pereira, publicada por InfoAmazonia, 25-09-2025.
InfoAmazonia — Podemos dizer que ignorar aquele preâmbulo do Acordo de Paris, desconsiderando comunidades locais das medidas, mudanças e propostas feitas, é agir com injustiça climática?
Marcela Vecchione Gonçalves — Sim, podemos dizer que é uma forma de injustiça climática.
É importante lembrar que o Acordo de Paris é uma parte do regime internacional de direitos humanos, que, desde 1945, está consagrado ali no sistema ONU. Desde a década de 1990, talvez até um pouco antes, desde o relatório Brundtland de 1997, que gerou o entendimento que o problema ambiental não era apenas global, mas também era uma questão além do âmbito ambiental. Ele tratava da forma como a natureza é socializada, dos aspectos econômicos e sociais que geram conflitos de distribuição, de acesso à água, de acesso a ar de qualidade, de acesso a meios e condições de trabalho adequadas e às condições de vida adequadas.
Enfim, tudo isso compõe a maneira como a própria Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima foi criada em 1992. Todo esse regime climático global é também o regime internacional de proteção de direitos humanos. Isso porque lidar com as desigualdades, a pobreza, as violências, a vedação de acesso a recursos, enfim, com as más condições de vida ocasionadas por esses conflitos distributivos que se agravaram com as mudanças climáticas, nos leva a falar de como esse regime climático global, no que se refere à sua norma principal — o Acordo de Paris —, se insere no regime internacional de proteção dos direitos humanos. É por isso que esses princípios aparecem lá no preâmbulo, pois, de certa forma, todo acordo que compõe o sistema da ONU vai ter essa conexão.
Isso leva em consideração não apenas a questão climática em si, mas também que os efeitos negativos dessas mudanças se relacionam a um determinado modo de produção e a uma estrutura internacional de distribuição que reforça esse modo de produção. Ou seja, o problema é sistêmico.
Nesse sentido, o que consta no preâmbulo do acordo? Os princípios, entre os quais estão as responsabilidades históricas comuns, porém diferenciadas. Isso reconhece, novamente, esses conflitos e os aspectos desiguais de distribuição.
Desde o momento em que se começa a negociar o acordo, até o momento em que se tem a negociação, reconhecemos que para lidar com o problema global é preciso pensar em história, em desigualdade, em pobreza, e que nem todos são atingidos da mesma forma pelas mudanças climáticas. Além disso, nem todos os estados nacionais signatários possuem as mesmas capacidades e também são atingidos da mesma maneira.
Quando se pensa no acordo, ele pode ter todas as tecnicalidades, mas o que se busca é lidar com essas desigualdades históricas, com estes conflitos distributivos e históricos, e com suas consequências. Por isso, no acordo, está lá a “promoção da justiça social”, que no contexto climático se traduz em justiça climática.
Se o que está ali — o reconhecimento desses sujeitos coletivos diferentes, dessas histórias diferentes, dessas afetações diferentes ao longo do tempo — não for tratado de maneira diferenciada e não tiver espaços adequados para a participação, levando em consideração essas diferenças, em vez de se caminhar para uma solução com a promoção da justiça social, ambiental e climática, o caminho será na direção oposta: a produção e a reprodução de injustiças climáticas.
InfoAmazonia - Marcela, estamos interessados em entender por que quando falamos sobre a conferência, existe uma separação entre o que se negocia e as vozes das populações mais vulneráveis aos efeitos do clima. Por que separamos isso?
Marcela Vecchione Gonçalves - O acordo, como qualquer outro do sistema da ONU [Organização das Nações Unidas], mas o de clima deixa isso bem evidente, vai trazer as diferenças já existentes no sistema internacional: a diferença de poder, a diferença de recursos, de negociação, e do ponto de vista do poder político mesmo, que é muito distinto.
Nós vivemos em um sistema internacional que é desigual. Por mais que o sistema ONU tenha como princípio a promoção da igualdade entre os estados nacionais e tudo mais, na própria Assembleia [Semana do Clima, em Nova York], que está ocorrendo, cada país tem um voto, como se todos fossem iguais. Mas, na verdade, não é isso. Existe muita diferença e muita diferença de poder.
E isso faz com que, obviamente, os princípios que aparecem lá no preâmbulo do acordo — a garantia da igualdade, dos direitos dos povos indígenas e das populações mais vulneráveis — fiquem apenas no princípio. Isso acontece exatamente por causa das diferenças de poder, que refletem, em grande medida, os interesses nacionais. Estes, por sua vez, são compostos por uma dinâmica de relação intersetorial dentro dos países e uma dinâmica intersetorial que dialoga com cadeias globais de valor, com corporações transnacionais. Ainda que estas não tenham voto na negociação para construir as resoluções que implementam o Acordo de Paris, elas têm muita influência para que isso aconteça.
InfoAmazonia - Nessa desigualdade estamos falando da diferença de entendimento sobre o que é território para esses dois grupos, certo?
Marcela Vecchione Gonçalves - Claro. As atividades desses setores, como a agricultura de grande escala, a mineração, a indústria do petróleo, gás e carvão, tudo isso precisa de espaço para acontecer. Quando falo de espaço, estou falando de território: é a terra, o mar, o rio, são todas essas coisas que, para esses setores, são recursos naturais e espaço geopolítico. Mas que, para os povos, são território.
Marcela Vecchione estuda dinâmicas do uso da terra, políticas florestais, mudanças climáticas e direitos de populações tradicionais. (Foto: Arquivo pessoal/ Marcela Vecchione)
Então, a vida dos povos, com toda a sua diversidade, se desdobra no mesmo espaço que é o de operação geopolítica desses setores. Isso se reflete com suas representações nos poderes executivo e legislativo. Como são os estados nacionais que são signatários e que, no processo de implementação do acordo, são os que vão, de fato, fazer, implementar, desenhar e votar as resoluções, sendo muito influenciados por essas corporações e por esses setores. Acaba que os interesses que estão mais presentes na própria composição societária do Estado Nacional são os que se manifestam.
Acho que isso é muito importante quando pensamos na implementação do acordo, que é um jogo de dois níveis: é o que acontece no nível internacional e o que está acontecendo nas várias construções de políticas domésticas.
InfoAmazonia - Marcela, temos a sociedade civil tentando colocar, nas NDCs, suas medidas, suas visões, como é o caso da NDC indígena, proposta pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). É possível fazer isso?
Marcela Vecchione Gonçalves - Eu acho muito difícil. Eles [líderes indígenas] sempre me perguntam isso. Eu prefiro ser realista. A questão é vontade política mesmo. Existem muitas disputas. A disputa está no legislativo e no executivo também. Então, tem coisas que não vão aparecer no que é a contribuição nacionalmente determinada. Não por acaso. É difícil para dentro do país, quando sai o documento, e é difícil também quando você vai negociar fora. Essas especificidades políticas de cada país, entende?
Cada país possui a sua legislação com relação à proteção de povos indígenas. Há países que nem sequer as têm, nem os reconhecem, por exemplo. Em muitos países na África, a questão do reconhecimento dos povos indígenas e tudo mais é complicadíssima. Então, essas coisas mais específicas não aparecem em um documento final de negociação. O reconhecimento de povos indígenas e tudo mais.
Pode aparecer numa carta de princípios, mas não vai aparecer na resolução mais geral. Não adianta. Se aparecer, não vai aparecer via Estado Nacional. Vai aparecer por meio da pressão dos espaços políticos de diplomacias indígenas, de diplomacia dos povos, que por mobilização social internacional foram construídas no âmbito da Convenção-Quadro. Que no caso é o quê? O Caucus Indígena (grupo informal de representantes de povos indígenas que se reúnem em fóruns internacionais), a plataforma de povos indígenas e de comunidades locais.
InfoAmazonia - Um dos pontos do Acordo de Paris diz justamente que as partes devem considerar as matérias de direitos humanos na hora de estabelecer medidas de enfrentamento às mudanças climáticas. Na sua avaliação, isso está ocorrendo?
Marcela Vecchione Gonçalves - Então, aí tem a outra camada de dificuldade. É superimportante trabalhar com os técnicos da ONU. Politizar esses técnicos. Porque são eles que fazem os relatórios, são eles que formulam o texto de resolução no final das contas, para apresentar na negociação. Eles fazem um ponto de partida do texto. Então, é muito importante esse ‘mano a mano’. Esse ‘chegar junto’ também, não só com os negociadores de países, mas com quem faz parte do secretariado da UNFCCC. Com quem está lá trabalhando com financiamento, quem está trabalhando com a plataforma de povos e comunidades locais, quem está trabalhando com mecanismos de transferência de tecnologia e construção de capacidade.
É um trabalho de formiguinha mesmo, para entrar no texto, para modular a linguagem. A gente fala: ‘tem que fazer formação para os povos indígenas, tem que fazer formação para os quilombolas’. Mas muitas vezes eles já sabem muito mais do que a gente [técnicos]. Tem que fazer formação com esse povo também, muitos deles não têm a menor ideia dessas outras realidades, do que significa, de fato, essas contribuições cotidianamente, vinda dos povos. Eles não lidam com isso, porque eles só lidam com o alto nível da política, que são os Estados Nacionais, são as esferas internacionais, são os acordos, são essas grandes convenções. Eles não vão lá na coparente ou num processo de discussão, sobre política e mudança climática, que as mulheres aqui em Abaetetuba estão fazendo.
A gente que está mais no movimento social de base tem que dar o suporte nesse sentido. Vamos falar com esses técnicos também, com essas pessoas. Porque é isso, já existe o mecanismo formalmente de fazer a submissão. Então, aí é bem lobby mesmo.
InfoAmazonia - Você acha que a sociedade civil está bem organizada para fazer esse trabalho neste ano de COP?
Marcela Vecchione Gonçalves - É muito comum que nesses processos de mobilização social que são muito grandes, que exista fragmentação. A gente vê muita mobilização, mas também vemos que não necessariamente isso ocorre de uma forma integrada. Tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. E, às vezes, ao mesmo tempo não é na perspectiva de em uma semana e na outra. Não, é no mesmo dia, na mesma hora. Isso causa uma divisão de públicos.
Tem uma coisa física mesmo. As pessoas não estão no mesmo espaço. Não estão pensando juntas. Não estão se mobilizando juntas. Não estão construindo ali as mesmas ideias. Às vezes, até constroem as mesmas ideias. Mas de uma forma fragmentada.
Considero que é mais difícil mobilizar socialmente contra as grandes forças sistêmicas com as quais se luta quando é dessa forma fragmentada. Eu acho que está muito fragmentada.
A gente vê que, assim, cada mobilização e evento desse tem a ver com uma nova organização que se cria, com um novo comitê que se cria, e isso são outras relações, várias relações que vão se criando com financiadores específicos. Que, às vezes, são até grupos legais, financiadores, mas que têm a sua agenda do que eles querem financiar.
Então, as organizações, diferente do que era na década de 1980 e 1990, elas, hoje em dia, cada vez mais funcionam por projeto. É difícil você ter um financiamento que seja para pagar articulação institucional. Para garantir a institucionalização de uma organização. É tudo o quê? Projeto. Isso leva à fragmentação.
InfoAmazonia - Qual espaço da sociedade civil você acredita que está indo no caminho certo?
Marcela Vecchione Gonçalves - Na minha opinião, o espaço que está tentando fazer isso, talvez porque seja um espaço que já ocorre desde 1992, quando teve a Rio Eco 92, é a Cúpula dos Povos. É esse espaço que congrega.
Por que isso? Porque é um espaço político de longo termo. Eu acho que desde antes da pandemia, a gente não tinha Cúpula dos Povos. Porque as COPs presenciais que aconteceram depois da pandemia, foram todas em países autoritários que não permitiram a construção desse espaço de sociedade civil. A gente vai ter isso agora, aqui, em Belém. De uma coisa que é muito brasileira e, ainda mais, é amazônica, de a gente não separar o que são direitos humanos do que são direitos ambientais. Para não separarmos proteção de território de proteção de pessoas.
São duas coisas que caminham juntas. Ou seja, falar de violação de direitos territoriais na Amazônia é falar de violação de direitos humanos. Uma coisa não está separada da outra. Talvez seja diferente de outros contextos. Mas aqui isso é muito junto.
Então, eu acho que teremos esse momento da Cúpula, que, por não ter sido realizada antes da pandemia, será um evento em que teremos uma diversidade de representação incrível, com povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, vários grupos sociais latino-americanos, do sul-sudeste asiático e da África.
Ou seja, uma diversidade de representação. Mulheres, crianças, adolescentes. Enfim, a gente vai ter trabalhadores e trabalhadoras. E, de novo, nesse quantitativo e nesse qualitativo e chamando a atenção para, talvez, a maior causa do colapso climático e das injustiças climáticas decorrentes, que é separar sociedade e natureza e pessoas de natureza. Que é hierarquizar o que são formas sociais mais evoluídas em relação à natureza.