26 Agosto 2025
“Colonização que não é somente violenta conquista da terra, mas também dominação da alma e do sagrado, com a imposição de crenças, cosmologias e práticas religiosas, para substituir religiosidades consideradas falsas e diabólicas”
O artigo é de Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Eis o artigo.
Esperava novidades do V Congresso Nacional da CPT, e não as novidades que brotam do discurso, da metodologia acertada, da racionalidade que analisa, revê, avalia, repensa, reorienta. Pensava nas que nascem da escuta das falas e silêncios dos camponeses e camponesas e que provocam perguntas e diálogos, mas que, frequentemente, apesar do risco de mitificar, são frutos de amadurecidos processos de luta. Assim, nestas anotações, irei priorizar a leitura do evento, não renunciando porém ao dever inadiável de analisar com seriedade os documentos do Congresso.
Nesta tensão entre poesia e sociologia, lembro como os camponeses e camponesas do IV Congresso da CPT, Porto Velho, 2015 transfiguraram, numa tradução celebrativa feita de poesia cantos e batucadas, o processo metodológico bem preparado a partir das experiencias de reprodução da vida e de luta.
Era como se o canto camponês mostrasse uma luz nas escuridões das conjunturas, algo presente mas ainda não plenamente explicitado e que, revelado, podia até se propor como prioridade: a afirmação radical e madura da autonomia dos territórios físicos e espirituais dos povos camponeses. Retomada daquele paradigma germinal da CPT, o da autonomia relativa, inicialmente pensado para o discernimento das relações eclesiais da própria CPT e que agora parecia a palavra de ordem indiscutível da luta: uma autonomia de organizações articuladas, que em que pese a dura realidade fundiária e agraria, chamada a se relacionar com os seus inimigos, o mercado e o estado.
E a espera de novidades significativas, neste V Congresso, se fez recompensa. O clima nos proporcionou fortes indícios de mudanças e avanços práticos e teóricos nas lutas indígenas e camponesas. Um clima que talvez possa acrescentar algo extremamente importante à longa lista de Prioridades e Linhas de Ação da CPT 2025-2030.
Neste encontro entre os povos da terra e da águas da Pindorama e os agentes da pastoral, fomos chamados prepotentemente, desde as primeiras batidas de atabaques e chacoalhadas dos maracás, a mergulhar fundo, para respirar o clima que sustentava toda a movimentação dos corpos, os cantos e as falas. Não estávamos vivendo somente a celebração festiva dos encontros e reencontros, na memória martirial de tantos lutadores e lutadoras que já se encantaram, e nem tratava-se somente da repetição do rito antigo dos oprimidos que aprenderam pelo sangue derramado a pisar no luto e na dor.
Em suma, o clima do Congresso nos surpreendeu. Mergulhamos em um ambiente em que era imperiosamente gritante a vontade indomável de se defender dos inimigos da vida.
Uma onda de sentimentos e desejos, que ia bem além do propósito de celebrar os 50 anos de vida da CPT, nos carregava para nos juntarmos aos camponeses e camponesas, na liberação de uma inegável energia coletiva, que proclamava a luta dura, “na lei ou na marra”, para defender a Vida dos povos e do Planeta. E desmentindo toda a fala que desconfia da juventude de hoje, também os jovens serena e radicalmente reafirmavam o compromisso com as lutas de seus povos.
Neste Congresso, a CPT se manteve silenciosa e não quis orientar o processo multiplicando suas falas no plenário. Foi talvez quase obrigada a seu papel fundamental da escuta por um campesinato capaz de falar por si mesmo.
Parece a renovada profecia sobre o nosso papel de serviço, que exclui presunçosos vanguardismos e, no mesmo tempo, ilusórios basismos.
Não demoramos muito para descobrir mais uma realidade surpreendente: essa energia coletiva era uma energia feminina empoderada, segura, determinada e forte. Energia que se modulava num abraço que envolvia todos, sem excluir ninguém no chamado à luta contra o sistema masculino e patriarcal. Um abraço sororal que renunciava a construir muros e cercas. Uma teia de cumplicidades críticas e autocríticas. E a pastora Romi Benke, guiada por teologia e poesia, quis dar o nome certo a este ‘abraço’, lembrando que no Tanakh o Espirito Santo é feminino: ruah! Em suma, temos a ousadia de afirmar que o V Congresso nos foi doado como uma pequena Pentecostes feminina, que nos conta de um inegável e fundamental protagonismo das mulheres nas lutas de hoje e alimenta a nossa esperança.
Marcante, ao ponto de abraçar e iluminar cada canto escondido do sagrado, foi o benzimento de dona Maria Roxa, pajé Akroá-Gamella, pacifica tranfiguração de religiosidades que privilegiam o masculino patriarcal.
Exemplar, entre muitos outros testemunho de mulheres, foi a fala de Marly Borges, do quilombo Guerreiro, Parnarama, Maranhão. Ela ofereceu uma análise da atual conjuntura, com clareza e paixão incríveis e cativantes, sem, porém, reduzi-la as agressões e as lutas mais recentes do quilombo Guerreiro, colocando-a em contextos mais amplos, que incluem o papel genocida do capital e do estado, em nível internacional. Descreveu com inúmeros exemplos o que os especialistas chamam de guerra civil e luta de classes: “O agronegócio veio para matar o planeta e nós fazemos parte do planeta”. Se definiu guerreira invicta e invencivel, herdeira da luta de seus antepassados e alegre porque um netinho, ainda criança, lhe confessou que irá assumir esta luta, quando ela morrer.
Esta sensibilidade estava explicita nos camponeses e camponesas do Congresso, que não se limitaram a tratar a questão da terra em termos fragmentados e provincianos, conscientes que, hoje em dia, a violência planetária do projeto colonial do Ocidente se revela em inédita plenitude num não mais disfarçável projeto genocida. O que está acontecendo com os indígenas da Palestina e com os Guarani-Kaiowa do Mato Grosso, em que pesem as diferenças estatísticas, é o mesmo processo colonial que quer destruí-los e oculta-los definitivamente. Face ao crescimento assustador da extrema direita, branca, supremacista, antidemocrática, aporófoba, racista, misógina, anti-LGBTQIAP+, negacionista, fundamentalista e tradicionalista, belicista, não tem mais vaga para indígenas e pobres nem na Pindorama, nem na Abya Ayala, nem em Gaza, nem na Europa, nem nos Estados Unidos. Para eles é reservado o genocídio, a expulsão em massa se forem migrantes que fogem das guerras e da fome, a constitutiva exclusão do banquete da vida, se forem povos africanos.
Em síntese, a alegria do Congresso não foi a suspensão temporária do sofrimento indígena e camponês. Foi, sem solução de continuidade, afirmação de luta, inspirada pela presença libertadora de Jesus e Maria de Nazaré, testemunhas e mártires, santos e santas, encantados e encantadas, orixás e ancestrais de Palmares, Canudos, Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Contestado, Cabanagem, Balaiada, Trombas e Formoso, Ligas Camponesas, Encruzilhada Natalino... Uma alegria que não consegue, porém, silenciar o grito de dor e revolta, dramática trilha sonora que acompanha quinhentos anos de genocídios indígenas, colonização material e espiritual, escravidão, grilagem e expropriação dos territórios, latifúndio e marginalização. Colonização que não é um mero processo de dominação territorial, mas uma violência sistemática sobre corpos femininos, indígenas negros e mestiços. Colonização que não é somente violenta conquista da terra, mas também dominação da alma e do sagrado, com a imposição de crenças, cosmologias e práticas religiosas, para substituir religiosidades consideradas falsas e diabólicas.
Enquanto continua a nos surpreender o milagre da insistência indomesticável do campesinato da Abya Ayala em romper cercas e tecer teias, invocamos a divina ruah, para que possa fortalecer organizações, articulações, retomadas territoriais e espirituais, reconstruções de saberes ancestrais e lutas para salvar a Vida. E fazemos memória de profecia existenciais, que têm a sua plena revelação na vida dos irmãos e irmãs que testemunharam a sua fidelidade com o martírio, parentes de Jesus, o Filho do Homem, que luta contra os poderes deste mundo e na Cruz derrota definitivamente a violência e a morte.
E de profecias existenciais que, antes de ser luta, são busca da fidelidade à herança ancestral no jeito de se relacionar com a terra não como um “isto”, pecado mortal do capitalismo, mas com um “tu” fraterno, sororal, filial, à escola de Francisco e Clara. i V Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra, São Luís, Maranhão, 21 e 25 de julho de 2025. “CPT 50 anos – Presença, Resistência e Profecia”.
Nota
[1] V Congresso Nacional da Comissão Pastoral da Terra, São Luís, Maranhão, 21 e 25 de julho de 2025. “CPT 50 anos – Presença, Resistência e Profecia”.
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