04 Julho 2025
Reportagem do Sul21 mapeou saneamento básico na rede de ensino gaúcha e seus impactos no aprendizado
A reportagem é de Bettina Gehm, publicada por Sul21, 03-07-2025.
Desde o início do ano letivo, a Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) América, em Porto Alegre, enfrentava todos os dias a falta d’água. E, todos os dias, a direção tinha que sanar provisoriamente o problema, mandando vir um caminhão-pipa que precisava subir uma rua íngreme do bairro São José para abastecer a escola. Fora isso, saia água de apenas uma torneira em todo o prédio frequentado por mais de 400 alunos – era dessa torneira que as merendeiras enchiam baldes e baldes que eram carregados até o refeitório para cozinhar as refeições servidas na escola.
Dados do Censo Escolar de 2024 mostram que a Emef América é atendida pelas redes públicas de água e de esgoto – poucas escolas de Porto Alegre não são. Mas, como informou o Sindicato dos Municipários da cidade, em alguns bairros falta água com frequência por conta de problemas no bombeamento da rede.
Portanto, pode haver uma significativa subnotificação do número de crianças e adolescentes que convivem com problemas de saneamento básico no ambiente escolar. De acordo com o Censo, em todo o Rio Grande do Sul, são pelo menos 22,8 mil alunos sem esgoto tratado e 107 mil sem água tratada. Na Capital, há 2,8 mil estudantes matriculados em escolas onde não há rede de esgoto e 125 em escolas sem tratamento da água.
Na Emef América, embora se pedisse o caminhão-pipa com um dia de antecedência, alunos e professores nunca sabiam exatamente que hora ele chegaria. “Já teve dia que era mais de 15h. Não tinha água, e as crianças pedindo. Os banheiros ficavam sujos, ninguém lavava a mão. O caminhão chegava, até que pegava pressão, para sair a água no bebedouro, demorava um pouco”, relata uma pessoa da comunidade escolar que não quis ser identificada.
Quando o esgoto não é tratado e quando falta água, há impactos negativos diretamente na escolaridade das pessoas que convivem com esses problemas. Presidente do Instituto Trata Brasil, a engenheira civil Luana Pretto explica que o Rio Grande do Sul está numa situação mais vantajosa do que, por exemplo, as regiões Norte e Nordeste do Brasil. No entanto, ainda é preciso evoluir em relação à coleta e tratamento de esgoto.
“No Brasil, a diferença de escolaridade média entre crianças que tiveram acesso ao saneamento básico durante sua vida e as que não tiveram é de 1,8 anos. Ou seja: quem tem acesso estuda em média 11,8 anos; quem não tem, 10,06 anos. No Rio Grande do Sul, essa diferença é menor, 1,18 anos”, afirma Luana.
Isso porque, quando as crianças não têm acesso ao saneamento, elas acabam contraindo com mais facilidade as doenças de veiculação hídrica – dengue ou até esquistossomose e leptospirose. Essas crianças faltam mais à escola. Cada episódio de diarreia, por exemplo, faz com que o aluno fique de 2 a 3 dias afastado das atividades escolares.
“A falta de água impacta ainda mais a escolaridade média das crianças do que a falta de esgoto. Meninas no período menstrual muitas vezes não vão para a escola quando não tem água porque ficam com vergonha na hora de usar o banheiro, por exemplo. Sem água, a contaminação das doenças de veiculação hídrica é muito maior também”, diz a especialista.
Luana explica que isso faz com que a criança tenha prejuízos no desenvolvimento, na primeira infância, e em seguida na aprendizagem escolar, que acaba se estendendo até o final da adolescência: “No quinto ano, quando é avaliada no Sistema de Avaliação da Educação Básica, ela não consegue atingir alguns marcos de desenvolvimento. Não consegue calcular troco, não identifica ironia em histórias em quadrinhos. Isso vai se acumulando até a própria nota do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, que é bastante diferente entre a criança que teve acesso ao saneamento e a que não teve”.
No Rio Grande do Sul, onde as pessoas estudam em média 9,22 anos, as consequências apontadas pela especialista se refletem em alguns municípios. Em Canguçu, por exemplo, a escolaridade média é de 7,37 anos. Entre as escolas da cidade, somente 37% têm acesso ao tratamento de esgoto. Mais da metade não tem água tratada.
Evidente que outras variáveis influenciam na escolaridade da população. Mas outro exemplo é o de Caxias do Sul, onde se estuda em média 9,85 anos. O município da Serra gaúcha tem esgoto tratado em 96% das escolas e falta água tratada em menos de 1%.
Dia de São João, 24 de junho: enquanto outras escolas comemoravam, a Emef América recebia o secretário de Obras, representantes da secretaria de Educação, do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) e dois vereadores para discutir, com a direção da escola, o problema da falta d’água.
Um dos técnicos do Dmae disse que a equipe comparece à escola sempre que solicitado. O problema, segundo ele, parecia ter origem em um vazamento na caixa d’água de 8 mil litros que abastece o prédio. Com isso, nem a água do caminhão-pipa ficava dentro do compartimento.
Dias depois da reunião, após um semestre da escola convivendo com a falta d’água, o problema foi resolvido. Com a utilização de um geofone, o Dmae encontrou e consertou o vazamento. “Estamos com água nas torneiras desde então”, diz a trabalhadora da escola. “Antes, não se suspendia a aula, por mais horrível que estivesse”.
Dados de escolaridade média e saneamento básico de municípios do RS (Fonte: Censo Escolar e Painel Saneamento Brasil).
Na mesma Porto Alegre, a 35 quilômetros da Emef América, uma escola indígena também enfrenta problemas de saneamento. Cacique da aldeia Ka’Aguy Miri, onde moram cerca de 20 pessoas, Maurício Messa mostra o banheiro que fica a alguns passos da escola e que seria para uso de toda a comunidade, mas está inacabado. “Os alunos têm que fazer as necessidades assim fora, no mato mesmo”, diz.
A escola tem o mesmo nome da aldeia, que significa “pequena floresta” no idioma Mbyá-Guarani. Foi criada em 2012, tem atualmente sete alunos matriculados e funciona numa sala construída na entrada da aldeia. Tem wi-fi, geladeira e computador. A água que abastece a aldeia e a escola vem de uma nascente através de mangueiras – segundo o cacique, testes realizados frequentemente pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) demonstram a potabilidade do líquido. Há recolhimento de lixo na região. É o banheiro que faz falta.
Em dado momento, a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) doou materiais para a construção do banheiro comunitário a partir de uma articulação com a Secretaria Municipal de Inclusão e Desenvolvimento Humano (SMIDH) e um grupo independente de engenheiros.
Com o material todo na aldeia, o projeto de construção contou com apoio técnico dos engenheiros voluntários, que visitaram a aldeia e elaboraram um projeto básico. A construção foi iniciada, mas parou. Sobrou cimento, que acabou estragando. Maurício, o cacique, não quis que o banheiro ficasse inacabado: comprou material do próprio bolso, calcula ter gasto entre R$ 4 mil e R$ 5 mil.
“Já que vai se perder tudo, então é melhor eu mesmo eu comprar alguma coisinha para poder inteirar o banheiro”, relembra ele.
De acordo com a SMS, a construção de fossas sépticas foi viabilizada pela Sesai, mas ainda não foi possível iniciar a instalação por falta de equipe técnica local.
“A mão-de-obra Mbya-Guarani são as casas de madeira, de barro. É o conhecimento que eles têm”, pondera a professora não-indígena da escola, Vanessa Chaves Rosa. “Agora, esse banheiro que é do branco, alguns sabem fazer em algumas aldeias, mas são poucos. Tem que ter o encanamento, tem que ter fossa, é toda uma lógica diferente”, comenta.
Embora o caso da escola Ka’Aguy Miri seja bastante específico – o Censo contabiliza 38 escolas sem banheiro em todo o Rio Grande do Sul – ela é uma entre várias onde o esgoto não é tratado. Entre as mais de 9 mil escolas em atividade no estado, 34% não contam com esse serviço. No total, 477 municípios gaúchos têm pelo menos uma escola sem esgoto tratado; em 65 municípios, nenhuma escola tem acesso ao serviço.
A situação é pior para as escolas em terra indígena, como a Ka’Aguy Miri. Dentre estas, 89% não têm tratamento de esgoto e 52% não têm água tratada. Além disso, 10% não têm banheiro.
Quando uma escola não tem ligação com a rede pública de tratamento de esgoto, normalmente utiliza uma fossa séptica. Luana, do Instituto Trata Brasil, explica que essa alternativa não é a ideal. “A partir do momento em que se tem acesso à rede, se afasta o esgoto de perto das crianças. Isso evita a proliferação de insetos de doenças. A fossa ajuda, mas tem uma eficiência em torno de 40% na remoção da carga orgânica. É melhor que nada. Se o esgoto não ganha nenhum tratamento, é um grande problema. Se tem fossa, o problema é um pouco mitigado. Se tem a rede, ele está 100% resolvido”.
As escolas rurais também têm menos acesso aos serviços de saneamento básico. De acordo com o Censo Escolar, chega a 89% o percentual das que não contam com o tratamento de esgoto e a 53% as que não têm água tratada. Em mais da metade, faltam as duas coisas. Por outro lado, apenas 1% não tem banheiro.
A discrepância fica mais evidente ao olhar para o percentual de escolas rurais entre as que carecem dos serviços. Entre as escolas gaúchas que não são abastecidas pela rede de água tratada, 88% são rurais; 45% das que não têm o esgoto tratado também. Das escolas onde faltam ambos os serviços, 88% são rurais.
Quando o assunto é água tratada, os dados são menos desanimadores no geral: somente 10% dos estabelecimentos de ensino gaúcho carecem do serviço. Em 9,82% das escolas do estado, faltam tanto água quanto esgoto tratados.
No entanto, olhando para o número de alunos matriculados nessas escolas, a quantidade de estudantes que convivem com a falta de água tratada é bem maior – 107 mil, enquanto os que frequentam escolas sem tratamento de esgoto são 22 mil.
“As escolas sem água tratada estão usando água de algum outro jeito”, pontua Luana. “Provavelmente água de poço, que normalmente não passa por cloração ou tratamento. Eles podem estar consumindo água não potável, e isso acarreta uma série de doenças. No caso das escolas rurais, às vezes o poço não é tão profundo, então capta água de um lado e lança o esgoto de outro. Ocorre uma mistura de água com esgoto no lençol freático. O ideal é haver uma cloração da água captada do poço, para não acontecer o que chamamos de contaminação cruzada”.
O fato é que o uso de fossa ou de poço como alternativas para o saneamento básico dizem mais sobre a cidade onde a escola está instalada do que sobre a escola em si. Pesquisador do Observatório das Metrópoles, o professor da UFRGS Mário Leal Lahorgue explica: “Quando uma escola tem fossa é um sinal de que, quando ela foi construída, se preocupou em dar algum destino aos rejeitos. Isso porque é difícil encontrar uma cidade no Rio Grande do Sul que tenha 100% do esgoto ligado à rede. Esse é um indicador dos problemas de infraestrutura urbana”.
Portanto, se uma criança convive com a falta de saneamento na escola, é provável que também tenha este problema em casa. O professor lembra que, principalmente no ensino fundamental, costuma-se matricular os alunos em escolas perto de casa. “Se a escola não está ligada à rede, é um sinal de que provavelmente a criança mora num local que também não está. Quando a escola tem favelas no entorno, normalmente a situação é bem pior, porque nesse caso não costuma nem haver fossas: o esgoto é jogado in natura nos riachos”, afirma.
Além disso, o destino inadequado dado ao esgoto dificulta o tratamento da água. Mário explica que na capital gaúcha, por exemplo, o esgoto sanitário corresponde a boa parte da poluição na água coletada do Guaíba próximo à beira do rio. “Tanto que, quando foi inaugurada a estação de tratamento de esgoto da Zona Sul, diminuiu a quantidade de coliformes fecais no Guaíba. Se você captar água poluída, o custo para tratá-la é muito mais alto. Melhorar o esgotamento sanitário impacta na coleta e no tratamento da água”, pontua.
Ao mesmo tempo em que diz muito sobre a cidade, o problema do saneamento básico escancara desigualdades sociais. Em Porto Alegre, as escolas sem tratamento de esgoto estão localizadas nos bairros Lami, Rubem Berta, Sarandi, Lomba do Pinheiro, Vila Nova e Rio Branco. Este último é de mais alto padrão e tem uma escola sem esgoto tratado, conforme o Censo, mas os demais estão situados na periferia da cidade.
Olhando para todas as escolas gaúchas onde o esgoto não é ligado à rede, a grande maioria é pública. Apenas 2,8% são privadas e outras 3,3% são mantidas por ONGs, sindicatos e afins. Entre as escolas sem água tratada, 94% são públicas.
A professora Vanessa, da escola Ka’Aguy Miri, lamenta o desperdício de material que acabou passando da validade com o tempo que a obra do banheiro ficou parada. “Não teve recurso para mão de obra, daí o cimento ficou aqui um tempão e foi tudo fora, porque passou da validade. É um recurso que é para eles, que dava para ser revertido em alimento, mas foi jogado fora”, diz.
A SMS disse ao Sul21 que não disponibilizou equipe de mão de obra direta para a construção porque a execução das obras está fora de sua competência técnica e operacional. A pasta afirmou ainda que “novas tratativas estão em andamento” e que a SMIDH fará visita à comunidade para falar com o cacique da aldeia e buscar alternativas para a conclusão do banheiro comunitário, em articulação com os demais órgãos responsáveis.
Já a Seduc afirmou que o processo de contratação para que seja construído um novo prédio escolar está em tramitação. Uma equipe da secretaria visitou a aldeia, oportunidade em que consultou os moradores sobre as necessidades da nova edificação. No entanto, não foi mencionado nenhum prazo, segundo o cacique. A pasta diz que a construção da nova escola na aldeia está entre suas prioridades.