11 Março 2025
"Ziegler fez mais do que apontar com o dedo para indústrias sem escrúpulos morais. Ele identifica a famosa neutralidade política de seu país como um enorme ativo para gerar dinheiro em si mesma, uma vantagem comercial e diplomática estrutural que permite à elite suíça criar espaços seguros para que o capital e os capitalistas prosperem, não importando de onde venham ou no que acreditem".
O artigo é de Atossa Araxia Abrahamian, publicado por El Salto, 09-03-2025.
Atossa Araxia Abrahamian é correspondente em Nova York e editora sênior do jornal nigeriano The Nation.
Desde que Che Guevara lhe abriu os olhos há 60 anos, Ziegler tem revelado como o bem-estar da Suíça se financia com a morte, o medo e a fome. Seus detratores o consideram um traidor.
No início de 1964, Jean Ziegler, jovem político suíço, recebeu um telefonema de um homem que dizia falar em nome do revolucionário Ernesto Che Guevara, então ministro da Indústria de Cuba. O homem disse que Che planejava viajar a Genebra para participar da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) e que alguns camaradas haviam sugerido que Jean fosse seu motorista durante a visita. Perguntou a Ziegler se ele estaria disponível.
Hoje, Ziegler tem 90 anos e é o intelectual público mais famoso da Suíça. Publicou cerca de trinta livros, foi membro do Parlamento por quase três décadas e, em seu tempo livre, defendeu incansavelmente as causas da esquerda. Suas críticas a seu país natal e à enorme influência da Suíça sobre o resto do mundo são implacáveis. Nos anos 1960, no entanto, ele era apenas mais um jovem esquerdista impaciente, à espera de uma oportunidade para transformar o mundo.
Ziegler, assim como Che, nasceu em uma família de profissionais da classe média alta. E, tal como Che, suas viagens pelo mundo o levaram a desenvolver uma postura radical contra um sistema que via como capitalista, imperialista, colonialista e racista. Por onde passava, testemunhava o impacto negativo desse sistema: no Congo Belga, com a lembrança das crianças famintas, que o assombrou pelo resto da vida; nas sangrentas guerras de independência da Argélia contra os colonizadores franceses; e no Chipre, onde os britânicos privaram os cidadãos do direito à autodeterminação por décadas.
Ziegler também percebeu os ecos da opressão perto de casa: nas bolsas de commodities, onde especuladores manipulavam o preço dos alimentos e do combustível extraído a milhares de quilômetros de distância, e nos cofres dos bancos, a poucos passos de sua residência, onde cleptocratas desviavam os recursos naturais dos países produtores.
Os suíços há séculos se vangloriavam de ter conseguido separar o sangue do dinheiro. Orgulhavam-se de manter os cofres de seus bancos isolados das convulsões do mundo exterior. Com Ziegler, surgiu uma figura iconoclasta que os obrigou a considerar o custo moral de suas ações.
"Pode ser que nos corredores da sede do UBS não corra sangue", me disse em uma tarde de junho de 2021. "Mas é como se corresse. O relativo bem-estar dos suíços se financia com a morte, o medo e a fome. Isto aqui é a caverna de Ali Babá: o refúgio do mundo. Isso só acontece na Suíça".
Sempre tive a sensação de que havia algo estranho no lugar onde cresci, a cidade de Genebra, embora sua localização não conta toda a história. Genebra abriga o segundo maior escritório das Nações Unidas, a sede da Organização Mundial da Saúde e centenas de organizações internacionais e ONGs, que empregam milhares de diplomatas, cônsules, trabalhadores expatriados e suas famílias. Há inúmeras empresas multinacionais. Quase metade da população de Genebra não tem nacionalidade suíça. Sem todos esses estrangeiros, a cidade não teria a importância que tem.
Sou, e sempre serei, parte desse mundo à parte, um lugar definido por uma certa ausência de raízes. Estudei em colégios internacionais, onde a história que nos ensinavam tinha pouco a ver com as batalhas travadas a poucos passos do pátio da escola. Meus pais trabalhavam na ONU: meu pai como economista na Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento, e minha mãe como intérprete de conferências para o Secretariado. Suas profissões reforçaram minha sensação de estar sempre um pouco deslocado. Meus colegas de classe pareciam se mudar a cada poucos anos, o que me fazia sentir que eu também estava sempre partindo, sem nunca ter ido embora.
Mas havia uma razão menos óbvia para meu desconforto com Genebra. Tinha a ver com as regras: quem as fazia, quem as seguia e os lugares e pessoas a quem não se aplicavam. Grande parte da riqueza de Genebra vem dessa economia espectral da qual é uma anfitriã fantasmagórica, envolta em leis de sigilo, neutralidade, segredo bancário e isenções fiscais.
O cantão de Genebra tem apenas meio milhão de habitantes, dos quais pouco mais de 200 mil vivem na cidade propriamente dita, mas mais de um terço do comércio global de grãos ocorre aqui. Mais da metade dos sacos de café do mundo "passa" pela Suíça, a maioria deles através de empresas de Genebra e arredores. O país só teve seu primeiro Starbucks em 2001; alguns meses depois, a empresa começou a comprar seu café por meio de uma filial suíça.
Genebra há muito tempo é um centro estratégico do petróleo — se é que se pode chamar de "centro" um lugar que nunca armazenou barris. Até alguns anos atrás, entre 50% e 60% do petróleo bruto russo era comercializado a partir da Suíça, principalmente de Genebra, segundo a organização de pesquisa independente Public Eye. Quando o Parlamento suíço votou, a contragosto, por aderir ao regime de sanções da União Europeia contra a Rússia após a invasão da Ucrânia por Vladimir Putin, parte desse negócio foi transferida para Dubai.
A Suíça não tem saída para o mar. Ainda assim, abriga algumas das maiores empresas de navegação do mundo, que fretam e operam navios a partir de Genebra enquanto ocultam seus verdadeiros proprietários sob camadas de sigilo empresarial. Essa forma de se posicionar no mundo é a maior contribuição de Genebra para o modo como todos vivemos hoje: a era das exceções, em que o "onde" e o "quando" importam menos do que o "quem", o "quanto" e o "por quê". É um mundo no qual a riqueza viaja de forma abstrata, como números em uma tela, operações em um terminal. Um mundo em que as fronteiras são traçadas não apenas em torno de lugares, mas também de pessoas e bens.
Ziegler percebeu isso imediatamente e o denunciou repetidas vezes, arriscando seu sustento (e, sem dúvida, sua popularidade entre seus compatriotas) uma e outra vez.
Conheci Ziegler em sua casa no pequeno vilarejo de Russin, a poucos quilômetros de Genebra. Ele me recebeu na porta, vestindo uma calça de moletom cinza e uma camisa branca manchada. Ofereceu-me uísque, mais uísque e vinho, antes de aceitar que eu me servisse um copo d’água enquanto esperava em um sofá amarelo estofado ao lado da porta do terraço. Construída sobre um vinhedo íngreme com vista para o lago, sua casa era espaçosa, mas sem ostentação. Todas as superfícies da sala estavam cobertas de livros, vasos de flores ou fotografias de sua família. "Espero que não se importe que eu esteja descalço", disse ele. "Recentemente fui pelos ares", acrescentou, apontando para a testa enfaixada, "e assim fico mais confortável".
Ziegler começou sua carreira política como conservador. Foi membro ativo de um grupo estudantil fundado em 1819 para promover a unidade nacional suíça. Mudou-se para Berna para estudar Direito e, depois, para Paris, onde estudou Sociologia na Sorbonne, em meados dos anos 1950. Entre uma aula e outra, fez amizade com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir e, ao longo de noites repletas de fumaça e vinho no apartamento da mãe de Sartre, o casal o introduziu no marxismo e o incentivou a escrever um artigo sobre a guerra da Argélia para a revista Les Temps Modernes, que haviam fundado.
Beauvoir se encarregou de transformar o francês-suíço-alemão de Ziegler em uma prosa mais refinada e literária. Também insistiu para que ele abandonasse seu nome de batismo, Hans, e adotasse Jean, que considerava mais digno. Ziegler passou a se chamar Jean ao se filiar ao Partido Comunista Francês e foi expulso como Jean por apoiar a independência da Argélia. No entanto, prestou apoio material às causas que defendia ainda sob o nome de Hans: transportando malas com dinheiro em espécie através da fronteira franco-suíça para que a Frente de Libertação Nacional o depositasse em Genebra e "perdendo" o passaporte (com a intenção de emprestá-lo a um camarada) tantas vezes que deixou de parecer um mero descuido.
Em 1961, Ziegler respondeu a um anúncio de jornal que procurava francófonos para acompanhar um funcionário britânico em uma missão no que hoje é a República Democrática do Congo. O país acabara de se tornar independente, mas um golpe de Estado apoiado pela Bélgica (que queria manter suas concessões minerais) e pelos Estados Unidos (que queriam esmagar o comunismo) derrubou o presidente eleito, Patrice Lumumba, e instalou no poder Mobutu Sese Seko. Mobutu era o arquétipo do cleptocrata: um megalomaníaco impiedoso, ferozmente anticomunista, determinado a enriquecer a si mesmo e seus aliados enquanto o povo congolês sofria. Ele nacionalizou a indústria, mas colocou os recursos do país nas mãos de amigos e familiares, privando os cidadãos comuns dos frutos da vasta riqueza mineral do país.
Ziegler se hospedava em um hotel-fortaleza na atual Kinshasa, protegido por altos muros cercados de arame farpado, onde todos os dias crianças famintas se reuniam para pedir restos de comida. Um dia, viu os guardas do complexo dispersarem violentamente as crianças, que saíram feridas e sangrando. Partiu-lhe o coração testemunhar tal brutalidade. Ao me contar o incidente, sua voz falhou como se tivesse acontecido ontem.
Quando descobriu que Mobutu havia desviado somas inimagináveis de dinheiro de seu país e as depositado em bancos suíços, a política tornou-se algo pessoal, intensamente pessoal. "Durante minha estada, vi crianças em condições terríveis", disse-me. "O que me motivou foi saber que Mobutu, que veio a Genebra com esse dinheiro manchado de sangue, causador de tantas mortes em seu país, pôde agir assim porque a oligarquia suíça permitiu".
Quando Ziegler se encontrou com Che e seus camaradas em Genebra — com suas boinas e uniformes verde-oliva —, já compartilhava suas ideias. Durante as duas semanas seguintes, aproximou-se dos cubanos, levou-os de carro até o Mont Blanc, traduziu o pouco espanhol que sabia e se colocou à disposição deles a qualquer hora do dia. Os revolucionários trouxeram a selva para a cidade, dormindo em redes em quartos compartilhados, bebendo, fumando e discutindo a noite inteira. Ziegler juntou-se a eles e, na última noite, tomou coragem para pedir ao Che que o levasse para Cuba para se juntar à revolução. Era uma noite clara e, do quarto no oitavo andar do Hotel InterContinental, podiam ver o lago Léman, iluminado então como agora por letreiros fluorescentes de relógios de luxo.
Che apontou para o lago. "Aqui é onde você nasceu e aqui vive o cérebro do monstro", lembra Ziegler de ele ter dito. "É aqui que você deve travar sua luta". Provavelmente, não passava de um pretexto para dissuadir um diletante magricela de ir se deixar matar. Mas Ziegler levou aquilo a sério. Ele sabia que a Suíça abrigava uma engrenagem sistêmica que a tornava especialmente útil às forças do capitalismo — não como protagonista, mas como facilitadora, nos bastidores.
Alguns anos depois, Ziegler usaria o termo “imperialismo secundário” para definir o modus operandi de seu país. Não se tratava do imperialismo de primeira ordem francês, britânico ou, mais tarde, estadunidense — imperialismos com presença militar em solo estrangeiro. O da Suíça era um tipo de influência mais discreta: uma cúpula de empresas multinacionais e financistas que mantinham os países pobres dependentes dos bens, das armas e do dinheiro ocidentais (sobretudo dos Estados Unidos).
Os suíços viabilizavam essas práticas oferecendo acesso a normas e financiamentos favoráveis, além de um ambiente empresarial reputado, ordenado e neutro: boas regras, boas leis. Era, de certo modo, uma variante do negócio mercenário. Os suíços já não enviavam tropas para lutar em guerras de conquista alheias, como haviam feito em séculos anteriores. Mas, na visão de Ziegler, forneciam a plataforma de lançamento para uma versão moderna daquilo. “Depois que vi o que estava acontecendo”, disse-me ele, “não pude deixar de denunciar”.
Seu livro Uma Suíça acima de qualquer suspeita foi publicado em 1976. A tese de Ziegler, que ele mantém até hoje, é que o papel da Suíça no mundo é o de cúmplice — uma espécie de serva — do capitalismo. “Na Suíça, a gestão do dinheiro tem um caráter quase sacramental”, escreveu Ziegler. “Possuir dinheiro, aceitá-lo, contá-lo, acumulá-lo, especular e receber são todas atividades que, desde a primeira chegada de refugiados protestantes a Genebra, no século XVI, foram investidas de uma majestade quase metafísica”.
A seguir, Ziegler atacou os bancos suíços, as empresas farmacêuticas, os grupos comerciais e as multinacionais, vinculando as corporações e as pessoas por trás delas a todo tipo de crime, do tráfico de drogas às violações de direitos humanos no exterior. “É difícil imaginar uma atividade humana que não seja financiada por uma instituição financeira de Genebra, Zurique, Basileia ou Lugano”, escreveu ele.
Entre os infratores estavam bancos que recebiam malas de dinheiro em espécie das ditaduras de Portugal e da República Dominicana; imobiliárias que ajudavam xeques do Golfo e coronéis guatemaltecos a comprar apartamentos à beira do lago para se esconderem; e subsidiárias das empresas estadunidenses Dow Chemical e Honeywell, que supervisionavam as vendas internacionais de napalm e minas terrestres.
As denúncias feitas por Ziegler nesse livro e em outros posteriores (A Suíça lava mais branco e O ouro nazista) lhe renderam nove processos por difamação em cinco jurisdições ao longo das décadas seguintes (a legislação suíça sobre difamação é mais favorável aos demandantes do que a dos Estados Unidos). No total, foram impostas a ele indenizações por danos no valor de 6,6 milhões de francos suíços (CHF), equivalentes a quase sete milhões de euros, sanções que o levaram praticamente à falência — ao menos no papel.
Ziegler fez mais do que apontar com o dedo para indústrias sem escrúpulos morais. Ele identifica a famosa neutralidade política de seu país como um enorme ativo para gerar dinheiro em si mesma, uma vantagem comercial e diplomática estrutural que permite à elite suíça criar espaços seguros para que o capital e os capitalistas prosperem, não importando de onde venham ou no que acreditem. A partir daí, os suíços aprimoram a oferta com concessões especiais que vão além do que seus vizinhos europeus poderiam oferecer. Hoje, essas vantagens podem incluir uma dedução fiscal para os custos de pesquisa e desenvolvimento na indústria farmacêutica; depósitos especiais sem custos aduaneiros onde pessoas ricas podem guardar itens de alto valor, como arte e vinho; uma tendência a não responsabilizar empresas com sede na Suíça por poluição e abusos trabalhistas no exterior; e, claro, as rígidas leis do país contra a divulgação de informações bancárias.
Muitos países mobilizam suas capacidades como Estados-nação reconhecidos — a capacidade de fazer guerra (ou não), arrecadar impostos (ou não), aprovar leis (ou não) e vigiar suas fronteiras (de maneira seletiva) — como meio de gerar dinheiro. Mas o argumento de Ziegler sempre foi o de que seu país se move muito além de suas possibilidades, em detrimento de todos. Isso, escreve ele, faz da Suíça "uma associação defensiva, não um Estado-nação no sentido habitual".
O resultado é que, embora superficialmente opere como uma democracia direta, ultrapopulista e impulsionada por referendos, o Governo suíço está totalmente nas mãos do capital internacional. Também é notavelmente ágil. Quando os eleitores decidiram em um referendo nacional, em 2019, revisar o sistema fiscal de seu país e eliminar os impostos preferenciais para as multinacionais, os cantões individuais tomaram providências e reduziram os impostos a nível local: em Basileia, as taxas de imposto de sociedades caíram de 20% para 13%, enquanto os aumentos de impostos em Genebra foram essencialmente simbólicos, passando de uma base de 11,6% para 13,9%.
Como Ziegler gosta de dizer: os suíços têm "muros" para que a riqueza seja intocável. A palavra que ele usa é reveladora. Em francês, assim como em inglês, receleur e fence são palavras com duplo sentido que podem se referir tanto a uma barreira física quanto a um receptor de bens roubados. O muro é tanto a fronteira quanto o banqueiro, o fosso e o intermediário.
O muro — não o relógio de cuco, nem a fondue, nem muito menos o amor fraternal — é a contribuição da nação ao mundo em que vivemos. Se você souber onde olhar, verá pequenas Suíças em qualquer lugar que vá.
Uma suposição muito comum sobre os impostos na Suíça (e em outros paraísos fiscais) é que o país reduziu as taxas para atrair empresas. No início do século XX, a França e a Alemanha começaram a impor impostos progressivos sobre a renda e a herança aos seus cidadãos, tributando a riqueza com taxas mais altas, enquanto a Suíça não o fez. A notícia se espalhou por meio de uma campanha publicitária deliberada dirigida aos ricos: o historiador da Universidade de Lausana, Sébastien Guex, escreve que os bancos imprimiram “folhetos, circulares, cartas personalizadas e publicidade nos jornais, e enviaram representantes que se aproximaram pessoalmente de seus clientes”. Guex afirma que isso funcionou. A metade do produto interno bruto da Suíça foi para os bancos suíços graças a esses esforços.
A Suíça adotou uma estratégia de obstrução ativa, seja adotando políticas federais que impediam negociações com outros governos que pudessem responsabilizar os fraudadores fiscais, deixando os bancos suíços se “autorregularem”, ou simplesmente se recusando a tomar medidas enérgicas contra essa prática. Os suíços também se beneficiaram de um sistema federal que incentivava os cantões a competir não só com entidades estrangeiras, mas também entre si, oferecendo aos clientes uma grande variedade de opções.
Em 1934, a Suíça adotou sua agora infame legislação sobre o segredo bancário. O mais provável é que você ouça falar sobre suas origens — que até Ziegler costuma repetir — de que ela foi concebida para proteger os estrangeiros da perseguição por retirar dinheiro de seus países de origem. Alguns judeus alemães, pressentindo que problemas estavam por vir, o fizeram, e a Alemanha já havia começado a punir essa fuga de capitais com a pena de morte. Mas o historiador Peter Hug descobriu que essa explicação não passava de propaganda revisionista criada nos anos 1960 pelo Credit Suisse. Na verdade, a lei do segredo bancário foi resultado de um enorme escândalo.
A polícia francesa recebeu, em 1932, a dica de uma reunião secreta em um apartamento dos Campos Elísios, onde o diretor do banco comercial de Basileia dava conselhos fiscais, sem dúvida duvidosos, a membros da alta sociedade francesa. Entre os cerca de 2.000 clientes franceses do banco de Basileia, relutantes em pagar impostos, estavam bispos, generais, editores de jornais, uma dúzia de senadores, um ministro, a esposa de um famoso perfumista e o industrial Armand Peugeot. Sua riqueza, toda sem declarar, totalizava nada menos que um quinto do PIB suíço.
Os banqueiros devolveram centenas de milhões de francos aos franceses, conscientes de que tais incidentes fariam os clientes perderem a confiança e levarem seus negócios a outro lugar. Menos de dois anos depois, o Parlamento suíço tipificou como crime federal a revelação do titular de uma conta numerada, ocultando assim sua nascente indústria bancária durante a maior parte do século seguinte. De acordo com a nova lei, não era necessário que houvesse uma vítima para apresentar uma denúncia criminal; na ausência de demandante, as acusações poderiam ser feitas pelo próprio Estado.
Em 2014, 47 governos ao redor do mundo assinaram um acordo exigindo o intercâmbio automático de informações sobre as contas dos clientes. Sob pressão internacional, a Suíça finalmente aderiu, mas já havia vencido. Ao longo do século XX, o país se antecipou e se acomodou à natureza cada vez mais deslocalizada da riqueza, transformando-se de um não-Estado para uma espécie de buraco negro entre a globalização e a regulação. O dinheiro em espécie, o ouro, os títulos e outros valores que chegavam a Berna ou Genebra desfrutavam das vantagens de estar em um lugar seguro e, ao mesmo tempo, em um lugar invisível. O fato de que a evasão fiscal — ou seja, apresentar deliberadamente declarações falsas sobre o patrimônio ou a renda — ser tratada na Suíça como um crime civil, e não penal, também não lhes era prejudicial. E enquanto o mal-estar se espalhava pela Europa, os banqueiros suíços sempre podiam contar com seu maior ativo comercial: sua neutralidade política.
As artimanhas da Suíça e sua condição de país neutro permitiram que o país sobrevivesse à Segunda Guerra Mundial com relativamente poucos sobressaltos. Mas essa calma teve um alto custo moral que Ziegler recorda de perto e ao qual dedicou grande parte de sua carreira. Seu livro O ouro nazista oferece um retrato condenatório da cumplicidade dos bancos suíços com o nazismo.
Quebrar com o caráter nacional sempre tem um preço. Ziegler tem 90 anos e ainda paga por isso. Em 1990, foi processado por seis partes diferentes por supostas declarações difamatórias em seu livro Suíça Lava Mais Branco, no qual acusava os bancos suíços de receber dinheiro de traficantes de drogas e outros criminosos.
Ziegler, que foi membro do parlamento federal suíço de 1981 a 1999, acabou perdendo sua imunidade parlamentar — que protege os cargos eleitos de certos tipos de julgamento — e foi condenado a pagar centenas de milhares de francos em multas. Durante anos, precisou de seguranças para proteger sua casa. “As ameaças são muito precisas”, declarou ao Los Angeles Times: “Sempre me dizem coisas como: 'Ontem seu filho esteve aqui, você esteve lá'. É uma espécie de desestabilização psicológica”. Sua casa está em nome de sua esposa, Erica, uma historiadora da arte, para que não possam tomá-la, e os direitos autorais de seus livros continuam sendo penhorados.
Em 1998, Ziegler foi chamado a depor perante o Congresso dos Estados Unidos sobre o papel que os bancos suíços desempenharam durante a Segunda Guerra Mundial. "Os suíços comuns sentiam uma profunda antipatia pelos assassinos de massa de Berlim. Odiavam Adolf Hitler e rejeitavam qualquer trato com ele e seus comparsas", declarou. "Infelizmente, essa hostilidade não era compartilhada por alguns membros da classe dirigente, a saber, os diretores do Banco Nacional Suíço, os membros dos conselhos de administração dos bancos comerciais e alguns membros do Governo suíço", acrescentou.
Por suas declarações, um grupo de conservadores suíços o acusou de traição criminal, argumentando que suas "mentiras mal-intencionadas, falsidades, calúnias e exageros sem limites" ameaçavam a segurança do Estado. A acusação afirmava que ele estava "provocando ou colaborando em atividades contra a segurança do Estado por parte de organizações estrangeiras ou seus agentes".
Fiquei surpreso que, após toda uma vida observando os mecanismos do capitalismo, Ziegler ainda estivesse fascinado pela engenhosidade, cinismo e malevolência de seus promotores. "O fato de que este pequeno país, com apenas 42.000 quilômetros quadrados, dos quais apenas 60% são habitáveis, com uma população de menos de 10 milhões de habitantes, seja um centro extraterritorial tão poderoso, e que 27% das fortunas extraterritoriais do mundo sejam geridas em ou a partir da Suíça, é simplesmente impressionante", me disse ele. Sua indignação moral parecia vir acompanhada de espanto. Eu pude entender.
Perguntei a Ziegler se sua luta valeu a pena e se ele sentia que havia feito alguma diferença no sistema contra o qual vinha batalhando por tanto tempo. Afinal, o segredo bancário já não era o mesmo; a lavagem de dinheiro, embora longe de ser erradicada, agora é pelo menos um crime penal; e os bancos suíços estavam na defensiva.
A relevância desse tipo de história é uma prova de que ativistas de esquerda como Ziegler influenciaram os debates públicos sobre justiça, equidade e desigualdade, e que a conscientização sobre os paraísos fiscais do planeta está crescendo. Mas ainda não está claro qual será o impacto dessas campanhas na desigualdade real de riqueza e nas pessoas mais pobres do mundo.
Ziegler acredita que seu país cumprirá a lei à risca, mas não seu espírito.