"Se a Igreja Católica consegue lidar com o silêncio/ausência do papa no mais alto ato espiritual que a fé conhece, o da oração, o mundo e suas crises talvez não possam se dar ao luxo de fazer o mesmo", escreve Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 23-02-2025.
Num momento muito sensível, em que os termos de paz na Ucrânia estão sendo discutidos entre os EUA e a Rússia, a doença do Papa e seu silêncio soam mais alto que muitas vozes. A era do Estado Papal terminou há mais de um século e meio. O Concílio Vaticano II sancionou o fim de qualquer nostalgia pelo poder temporal da Igreja. A teologia ocidental disse adeus à possibilidade de que o catolicismo global pudesse mostrar alguma fidelidade ao Evangelho na ação dos poderes mundanos. Com isso, inconscientemente, essa teologia perdeu sua capacidade de ter uma visão da história humana, das vicissitudes dos povos e dos destinos do mundo.
Da Escolástica aos tempos modernos, a existência de uma Igreja Católica que era tanto um império quanto um estado forçou a teologia a pensar profundamente sobre o caráter e o propósito das instituições mundanas, e permitiu que ela moldasse o que hoje chamamos de “direito internacional”. A teologia católica deveria começar a pensar novamente sobre essas questões, dada a virada autoritária que as democracias estão tomando hoje, a crise do direito internacional como regra respeitada por todos os países e a reescrita da ordem mundial.
Precisamente por não ser europeu, o Papa Francisco deu um horizonte geopolítico ao seu pontificado — não para promover um novo domínio clerical sobre o mundo, mas por preocupação evangélica com o destino da Terra e o futuro dos povos.
Hoje, o papado e a Santa Sé são, na prática, as únicas instituições globais cuja política internacional visa construir um bem comum compartilhado por todos. Eles também visam resolver conflitos e guerras que levem a uma paz justa e duradoura, e estabelecer uma abordagem sustentável para a Terra, preocupada não com interesses de exploração de curto prazo, mas com a vida das gerações futuras.
Nessas horas, as palavras do Papa Francisco são importantes não apenas para a Igreja Católica, mas para o mundo inteiro — e sua ausência do cenário global talvez torne as relações internacionais mais frágeis e voláteis em escala global. Em momentos como este, fica claro que a Santa Sé deve se dotar de uma estrutura institucional para ter voz nas muitas crises que ocorrem em escala global.
Com Francisco, a geopolítica global se tornou parte dos poderes espirituais do bispo de Roma, tornando a Igreja Católica uma instituição que lida com crises e também com a fidelidade temporal ao Evangelho. Se a Igreja Católica consegue lidar com o silêncio/ausência do papa no mais alto ato espiritual que a fé conhece, o da oração, o mundo e suas crises talvez não possam se dar ao luxo de fazer o mesmo.
É dever da teologia encontrar maneiras que possam fazer com que o cuidado geopolítico do Papado e da Santa Sé seja sentido e presente mesmo em momentos como este. A justiça da paz, o futuro dos povos e o destino da Terra exigem hoje uma Igreja Católica capaz de uma palavra mais forte que a morte, uma palavra que se faça ouvir mesmo em tempos de agonia.