15 Janeiro 2025
Colégio eleitoral escolheu Tancredo Neves para pôr fim à série de cinco militares na Presidência. Mas ausência de eleição direta prenunciava proteção de torturadores e conciliação por cima que marcaram décadas seguintes.
A informação é de Edison Veiga, publicada por DW, 14-01-2025.
Em 15 de janeiro de 1985, o Brasil elegia, de forma indireta, Tancredo Neves presidente da República. A escolha pelo político do PMDB colocou fim à sequência de cinco governos chefiados por militares e sepultou a ditadura instituída com o golpe de 1964, que naquele momento já estava claudicante.

Tancredo recebeu 480 dos 686 votos do colégio eleitoral e derrotou Paulo Maluf, o preferido dos militares | Foto: Arquivo Nacional
Mas havia um tom de frustração no ar. Nove meses antes, o Congresso havia derrubado a proposta de emenda das Diretas Já, que traria de volta eleições diretas para a escolha do presidente. Por isso, Tancredo foi escolhido por um colégio eleitoral, formado por deputados federais, senadores e delegados das assembleias legislativas.
Com 480 dos 686 votos do colégio eleitoral, Tancredo derrotou o situacionista Paulo Maluf, do então PDS e aliado dos militares. Mas o eleito não tomaria posse – na véspera da data prevista, em 14 de março, Tancredo seria internado com sintomas de apendicite e o cargo acabou sendo passado ao seu vice, José Sarney. Tancredo morreria uma semana depois, em 21 de abril.
Se a eleição de Tancredo Neves representou uma pá de cal no regime ditatorial, ela não apagou um sentimento de decepção em parte da população pelo fato de a escolha não ter ocorrido de forma plenamente democrática, como queriam os milhares que foram às ruas pedindo Diretas Já.
Período de transição
O governo ali inaugurado costuma ser compreendido como uma transição entre o autoritarismo e a democracia – que só chegaria plenamente com a Constituição de 1988 e a eleição seguinte, de 1989, que alçou Fernando Collor de Mello à Presidência.
"Foi um marco considerável o fato de ter um primeiro civil eleito desde a ditadura, depois de cinco militares em sequência. Mas o clima era de frustração pela derrota das Diretas Já", diz o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Tinha 18 anos na época e me lembro muito bem."
O entendimento, explica o professor, era de que a eleição indireta da chapa Neves-Sarney "era o caminho possível" diante da impossibilidade da aprovação da emenda das eleições. "Era um mal menor. E melhor do que deixar o Paulo Maluf presidir o Brasil", avalia.

Tancredo Neves discursando após a sua eleição pelo colégio eleitoral | Foto: Arquivo Nacional
"Houve um pragmatismo, uma aceitação bastante ampla dessa acomodação, e muita gente deixou a frustração de lado", comenta. "Mesmo que estivesse claro que era uma democratização precária, ainda não ideal. A eleição de Tancredo era um caminho possível."
Militares "protegidos"
Essa transição foi o mecanismo encontrado pelos que detinham o poder militar para garantir que a transição democrática fosse gradual e, principalmente, que mantivesse uma série de privilégios para eles.
"As eleições indiretas não tocaram nas estruturas básicas da ditadura", afirma o historiador Daniel Aarão dos Reis, professor na Universidade Federal Fluminense (UFF). "Mesmo a Constituição de 1988, apesar de registrar imensos avanços […], manteve o caráter repressivo da polícia militar e a monopolização dos meios de comunicação […]. O Exército como Estado dentro do Estado foi mantido."

Comício pelas Diretas Já reuniu milhares em 1984 na Praça da Sé, em São Paulo – mesmo assim, eleição foi indireta | Foto: Arquivo Nacional
A transição brasileira foi muito peculiar, como enfatiza o professor Sá Motta, porque "por um lado acabou a ditadura, mas por outro lado não acabou também". "Assumiu o governo Sarney, que tinha sido um político civil a serviço da ditadura durante muito tempo. Os militares não foram afastados completamente dos jogos de poder", diz.
Órgãos como o temido Serviço Nacional de Informações (SNI), criado pela ditadura em 1964, seguiram funcionando — ele seria extinto apenas em 1990. "E não houve investigações dos crimes cometidos pelos militares e polícias porque os militares mantiveram posições importantes", diz Sá Motta.
Segundo ele, isso se deu porque a eleição de Neves foi viabilizada a partir de negociações a fim de compor uma frente ampla no colégio eleitoral. O historiador diz que "o primeiro governo civil representou de fato a saída da ditadura, mas não foi uma saída completa".
"Essas negociações implicaram em um acordo para que os militares fossem perdoados, tivesse seus crimes esquecidos, e mantivessem as estruturas de poder deles. E também a autonomia", aponta Sá Motta. Somente no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, é que foi criado um Ministério da Defesa com comando civil.
O professor da UFMG ressalta que "os governos civis esqueceram o período da ditadura no Brasil, não criando comissões de investigações". Ele elenca que a primeira foi instituída no governo de Cardoso, apenas em 1995, a sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. "Mas a intenção não era fazer investigações ou divulgar conhecimentos em relação ao público, e sim reparar algumas famílias, como por exemplo a do Rubens Paiva [engenheiro e político executado pelo regime]. Era bem discreta", comenta ele, ressaltando que a primeira comissão de impacto público foi a Nacional da Verdade, inaugurada em 2011, no primeiro governo Dilma Rousseff.
"Interessante considerar que, no caso brasileiro, houve a opção de tentar sair da ditadura usando os próprios mecanismos que a ditadura tinha, como a eleição indireta", assinala.
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