09 Janeiro 2025
"A dor, embora desconfortável, é também um caminho para o autoconhecimento, a transformação e, sobretudo, a purificação", escreve Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves, teólogo, filósofo e professor. É formado em História, Filosofia e Teologia, áreas nas quais trabalha como professor em Juiz de Fora (MG).
Vivemos em uma era marcada por uma aversão crescente à dor. Em A Sociedade Paliativa, Byung-Chul Han descreve como o mundo contemporâneo busca incessantemente eliminar o sofrimento, seja ele físico, emocional ou existencial. Esta busca, contudo, não apenas transforma a dor em inimiga absoluta, mas também molda nossas relações, nossas percepções e nossa própria humanidade.
A "sociedade paliativa", termo cunhado por Han, caracteriza-se por uma tendência ao alívio imediato de qualquer desconforto. Medicamentos, tecnologias e comportamentos sociais funcionam como anestésicos para qualquer experiência que desafie o ideal de prazer contínuo. Essa anestesia universal também se reflete nas dinâmicas digitais, onde o "like" surge como o analgésico do presente.
O "like", em sua simplicidade, funciona como um reconhecimento superficial, uma validação instantânea e efêmera que alivia momentaneamente a angústia do anonimato ou da rejeição. Ele transforma a interação humana em algo mediado por métricas, enquanto reduz a profundidade das conexões e dos afetos. Assim, a dor inerente à solidão ou ao fracasso é mascarada por números, criando uma ilusão de aceitação.
Contudo, ao banirmos a dor, perdemos algo essencial: a capacidade de enfrentar nossos limites, de amadurecer emocionalmente e de nos reconectar com nossa vulnerabilidade. A dor, embora desconfortável, é também um caminho para o autoconhecimento, a transformação e, sobretudo, a purificação.
Esse movimento de rejeição à dor está intrinsecamente ligado à crise ética de nosso tempo, discutida por autores como Hannah Arendt, Zygmunt Bauman e Byung-Chul Han. A crise ética, que se manifesta em uma sociedade cada vez mais líquida, fragmentada e desprovida de vínculos profundos, resulta na incapacidade de lidar com os desafios morais que a dor e o sofrimento inevitavelmente trazem.
Para Arendt, em obras como A Condição Humana e Eichmann em Jerusalém, a perda de reflexão crítica sobre nossas ações e a banalização do mal são sintomas de uma sociedade que evita enfrentar as consequências éticas de seus atos. Na busca pelo alívio imediato, não apenas fugimos da dor, mas também do esforço necessário para compreender as implicações de nossas escolhas.
Bauman, em sua análise da modernidade líquida, ressalta como a fragilidade dos vínculos humanos dificulta a construção de uma ética solidária e comprometida. A ausência de permanência e profundidade nas relações humanas, aliada à constante busca por prazer e conforto, gera uma indiferença ética que nos torna incapazes de nos responsabilizar pelo outro, especialmente quando este sofre. A dor alheia, assim como a nossa, é frequentemente descartada como um incômodo a ser evitado.
Han, por sua vez, argumenta que a sociedade paliativa também contribui para essa crise ética ao reduzir o sofrimento humano a um problema técnico que deve ser resolvido, em vez de um aspecto existencial que deve ser compreendido. Essa lógica anestésica impede que a dor atue como uma força purificadora e como um chamado à responsabilidade ética.
Diferentemente de seu papel como mero incômodo a ser eliminado, a dor pode atuar como um catalisador que depura nossas intenções, fortalece nossos valores e refina nossa humanidade. As tradições espirituais e filosóficas de diversas culturas reconhecem esse potencial da dor como um processo que nos aproxima do essencial, nos liberta das superficialidades e nos ensina a contemplar o que verdadeiramente importa.
No sofrimento, somos confrontados com a transitoriedade da vida e, paradoxalmente, com sua profundidade. A dor nos obriga a desacelerar e refletir sobre nossas escolhas e prioridades, ajudando-nos a distinguir o que é efêmero do que é duradouro. Esse processo, embora doloroso, pode purificar nossa visão de mundo, permitindo-nos encontrar significado mesmo nas situações mais adversas.
A rejeição da dor e a crise ética estão profundamente interligadas. Ao buscar anestesiar todas as formas de dor, acabamos sufocando nossa capacidade de enfrentar questões éticas fundamentais, como a empatia, a solidariedade e a responsabilidade. Reconhecer a dor como purificadora e como uma oportunidade para o crescimento ético é, portanto, um caminho para superar a superficialidade de nossa época.
O desafio contemporâneo não é apenas suportar a dor, mas abraçá-la como uma aliada no caminho do amadurecimento e da autossuperação. A dor, longe de ser apenas um fardo, é também uma mestra — uma que nos ensina a viver com mais autenticidade, profundidade e responsabilidade. Somente ao redescobrir seu potencial purificador e ético, podemos resgatar a densidade e o significado perdidos em uma sociedade que se acostumou a fugir do desconforto e da reflexão.
Byung-Chul Han, ao afirmar que "dor é vínculo", nos provoca a pensar sobre o papel do sofrimento nas relações humanas e na construção da vida em sociedade. Na contemporaneidade, marcada pela lógica da anestesia emocional e da superficialidade dos vínculos, essa ideia soa como um convite à redescoberta da vulnerabilidade como essência do ser humano.
A dor, longe de ser apenas um sinal de algo errado, é também uma força que une. É na experiência do sofrimento compartilhado que as conexões humanas se tornam mais autênticas, pois a dor expõe nossa fragilidade e rompe as barreiras do ego. Quem já enfrentou a perda, a angústia ou o luto sabe que esses momentos, embora difíceis, têm o poder de aproximar as pessoas. Ao cuidar de quem sofre, criamos laços profundos, baseados na empatia e na solidariedade.
Por outro lado, a recusa em aceitar o estado doloroso — tão característica da sociedade paliativa que Han descreve — impede a formação de vínculos verdadeiros. Na busca incessante por conforto, prazer e gratificação imediata, evitamos não apenas o sofrimento, mas também a profundidade das relações. A lógica anestésica, que permeia tanto os relacionamentos digitais quanto os físicos, nos encoraja a fugir da dor em vez de enfrentá-la. Isso resulta em vínculos frágeis, descartáveis e desprovidos de significado.
O vínculo que a dor cria não é apenas interpessoal, mas também intrapessoal. Quando enfrentamos o sofrimento, somos forçados a olhar para dentro, a confrontar nossos medos, limites e desejos. Essa introspecção nos reconecta com nossa humanidade e nos ajuda a encontrar sentido até mesmo nas experiências mais difíceis. Além disso, ao reconhecermos a dor em nós, aprendemos a reconhecer e respeitar a dor no outro, construindo uma ética da compaixão.
No entanto, esse processo exige coragem. Enfrentar a dor, em vez de evitá-la, implica abrir-se ao incômodo, ao desconhecido e ao imperfeito. Implica aceitar que os vínculos mais profundos não são aqueles construídos na ausência de sofrimento, mas aqueles que emergem justamente da superação conjunta das adversidades.
A recusa da dor, por outro lado, gera uma sociedade de indivíduos isolados, incapazes de criar laços genuínos. Quando negamos o sofrimento, negamos também a oportunidade de nos aproximarmos do outro em sua vulnerabilidade. Isso nos torna indiferentes à dor alheia e nos leva a tratar as relações como meras transações. Como Han sugere, sem dor não há vínculo, e sem vínculo não há verdadeira comunidade.
Além disso, essa recusa da dor pode resultar em uma desconexão consigo mesmo. Quem evita todo estado doloroso não enfrenta as próprias limitações, fraquezas e medos, vivendo uma existência superficial, voltada apenas para o prazer imediato e a fuga do desconforto.
Aceitar a dor como parte da vida é aceitar a profundidade das relações humanas. Os vínculos verdadeiros não surgem apenas do riso e da leveza, mas também das lágrimas, do suporte mútuo e do enfrentamento conjunto dos desafios. É nesse espaço de vulnerabilidade compartilhada que encontramos a força para construir relações duradouras, baseadas na confiança e no cuidado.
Ao reconhecer que "dor é vínculo", Han nos convida a repensar nossa postura diante do sofrimento. Em vez de evitá-lo a todo custo, podemos aprender a acolhê-lo como parte essencial da vida, como um meio de nos conectar com o outro e com nós mesmos. Afinal, é na dor que descobrimos nossa capacidade de amar, de cuidar e de transformar, tanto a nós quanto ao mundo ao nosso redor.
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A dor nos dias atuais: reflexões sobre a sociedade paliativa e a crise ética contemporânea. Artigo de Robson Ribeiro de Oliveira Castro Chaves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU