07 Novembro 2024
O apito da panela de pressão soou, com um paradoxo rondando o líder cocaleiro: favoritismo nas urnas com condições de governar, apenas fora do sistema democrático que defende, e que o levaria de volta ao poder.
O artigo é de Edu Montesanti, jornalista, professor, tradutor e escritor.
O atoleiro político e jurídico em que se vê metido o ex-presidente Evo Morales, leva-o a viver drama que adquire, momentaneamente, contornos mais graves há menos de um ano do pleito presidencial. Cada dia na Bolívia hoje, parece valer por uma série de levantar e pôr do sol nos filmes mais dramáticos que se tem conhecimento.
Embora seguramente não com ampla margem de votos sobre o segundo colocado, pelo contrário, mas na Bolívia hoje é pouco provável que alguém tenha possibilidade de vencer Morales nas urnas. E todos sabem disso, começando pelo próprio presidente Luis Arce (este sim, ao que tudo indica perderia de longe para Morales em uma hipotética disputa com seu mentor político).
A próxima eleição presidencial no país andino, coberto de incertezas e alarmantemente polarizado nestes dias, o que já se arrasta há anos e só piora, está prevista para 17 de agosto de 2025. Com um espectro nada simpático rondando Evo Morales, e de maneira bem mais intensa se este cenário envolver seu quarto mandato presidencial a partir do segundo semestre do ano que vem.
A defesa ferrenha de seu núcleo-duro, que deve estar na casa dos 40 por cento do eleitorado boliviano hoje, talvez não seja proporcionalmente inversa à aversão e até, em inúmeros casos, declarado ódio dos que se opõem a Morales em país cuja realidade é um tanto difícil ser definida através de uma só palavra. Estes últimos aspectos parecem sobrepor-se aos anteriores, em intensidade e principalmente em número.
Apesar de seu certo (mas ainda não empírico) favoritismo, o líder cocaleiro desgastou-se crescentemente ao longo do tempo enquanto presidente (2006-2019), e após aquele período.
Limitar a razão da ferrenha oposição de muitos hoje – incluindo muitos que já o apoiaram e nele votaram – ao racismo de brancos contra índios ou algo deste tipo, significaria fechar os olhos a outrora popularidade de Morales. Crasso reducionismo. O que explica a situação de Morales hoje possui implicações bem mais profundas e objetivas, embora contenha este aspecto.
Corrupção galopante, sistema de justiça acentuadamente partidarizado, elevação de impostos gritantemente desproporcional aos benefícios da sociedade, além de forte centralismo político foram marcantes aspectos dos governos de Evo Morales, e os principais motivos de decepção social – excluída da maioria da maior parte da narrativa nos mais diversos meios de comunicação - ao que indicava ser, em 2005 quando Morales elegeu-se pela primeira vez, uma esperança a tirar o país andino da miséria e da conturbada história, política, econômica e social. Para chegar a uma situação hoje em que sair fisicamente de seu círculo (nada reduzido, mas muito localizado) pode custar-lhe até a vida, para além de uma derrota política além de condenação jurídica que parece iminente.
Nas eleições de 2005, Morales elegeu-se com 53.72 por cento dos votos; em 2009, foi reeleito com 64.22 por cento dos votos; nas controversas eleições de 2019, reelegeu-se com 47.08 por cento dos votos.
Assim, Morales teve popularidade reduzida ano a ano após a segunda reeleição. Mas ainda assim, elegeu-se presidente (em pleito controverso). Diante de pressão crescente, inversamente proporcional à queda em popularidade. Mesmo diante do crescimento econômico – efeito, sobretudo, da elevação dos preços das commodities e do petróleo no mercado internacional -, que não proporcionava razoável progresso social em uma terra sem lei, como sempre foi.
A internacionalmente propalada “modernização da Bolívia por Evo Morales” foi um monumental engodo, a que pesem alguns aspectos positivos de seu governo, como ter levado eletricidade às zonas rurais mais distantes e historicamente esquecidas pelos governantes.
Evo Morales construiu muitas escolas cujos níveis arquitetônicos eram desconhecidos dos bolivianos, equipando-as consideravelmente. Mas continuaram essencialmente abandonadas, sob um sistema educacional que em praticamente nada evoluiu. O sistema público nos anos de Morales foi um desastre à parte – nada diferente dos antecessores, mas nem por isso menos deplorável. Abandono seguido hoje à risca por seu sucessor e ministro de Economia, Luis Arce.
Algumas outras mudanças foram também mais cosméticas que estruturais, como a presença de cidadãos indígenas em ministérios do governo: em amplo universo de povos originários como é o caso boliviano, o MAS priorizou “seus índios” com outro detalhe nada animador do ponto de vista democrático: em um sistema incrivelmente corrupto e conturbado com raros requintes de violência, que apenas se aprofundava a partir de cada um daqueles ministérios. Farra outrossim seguida à risca hoje, por seu sucessor e correligionário.
Nestes casos como em diversos outros, os “erros” (ou populismo considerando políticas demagógicas, com aspecto popular mais no discurso que na prática) não se limitaram a medidas cosméticas: gerou-se polarização profunda, neste quesito acirrando o revanchismo com base em problemas era colonial ao invés de gerar conscientização e união de todos os bolivianos, independente de origens étnicas.
Mas a etnia importou muito nos anos de Morales, quando os povos originários eram utilizados como massa de manobra, com fins políticos. O próprio Evo acusou recentemente seu vice Álvaro García Linera de ter feito isso constantemente, reforçado pelo livro Los 4 del Poder Oscuro del Entorno de Freddy Bersatti, homem de confiança de Morales nos anos presidenciais, e forte questionador do neoliberalismo, acusando Morales, em sua obra, de ter essencialmente imposto este modelo econômico à Bolívia; e mais importante, diversas etnias originárias bolivianas denunciam até hoje o mesmo.
Por que o então chefe de Estado Evo Morales sempre se calou, como denuncia Bersatti em seu livro, diante de tal postura de Linera, para “abrir a boca” apenas agora sobre esta grave postura quando o Movimento ao Socialismo (MAS) está profundamente divido?
A discriminação apenas mudou de lado. Parte considerável do raro espetáculo macabro do ódio que a Bolívia apresenta nestes dias, é também resultado dessa polarização.
Este, apenas um exemplo do que se tornava entusiástica propaganda fora de casa, ao mesmo tempo que dentro já não convencia mais a tantos.
Recentemente, o World Justice Project (WJP) classificou a Bolívia como um dos piores países do mundo entre 142, no que diz respeito ao sistema de justiça e à corrupção de um modo geral, dentro de cada país.
Por exemplo, no quesito “ausência de corrupção” a Bolívia ocupa o penúltimo lugar (141); na esfera da “justiça criminal”, a posição boliviana é a mesma do caso anterior; em “justiça civil”, a Bolívia está no posto 139; e em “restrições aos poderes do governo”, na posição 125. No cômputo geral, a Bolívia encontra-se na posição 131 dos 142 analisados em todo o mundo.
Não se deve acreditar que quando Evo Morales era presidente, o cenário era menos desolador. Exemplos disso são o massacre de Tipinis e o Caso Terrorismo do Hotel Las Américas, ambos condenados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Conhecidos da opinião pública internacional? Certamente, mais conhecidas que estes crimes de Estado tornaram-se as roupas indígenas que Evo usava (apenas) em encontros internacionais.
Apenas para ficar em poucos “casos” de desmando de um presidente “indígena” que, reconhecidamente, não fala nenhuma língua indígena.
Se a Bolívia tivesse vivido a modernização e o florescimento democrático nos anos de Morales alardeado por diversos setores (fora do país andino), hoje esta nação não estaria vivendo semelhante situação, caótica a tão poucos anos desde que Evo Morales deixou a Casa Grande do Povo em La Paz. E Arce e Morales nem são tão diferentes assim… Aliás, surpreenda-se, talvez – ou até pasme: ambos são do mesmo partido político, o Movimento ao Socialismo.
O que ocorre na Bolívia nestes efervescentes dias, nada mais é que a amarga realidade já existente há muito tempo. E como bola de neve, ou círculo vicioso, as consequências também são as graves desventuras políticas cobrando seu preço. Em determinados aspectos, realidade hoje agravada; em outros, já vivida, inclusive quando Morales era presidente.
Agora, impossível de ser ocultada se alguém quiser abordar a Bolívia em suas análises (poucos querem). Vindo à luz a real Bolívia para além do poeticismo jornalístico. Escancarada para que todo o mundo a veja como ela é.
O apito da panela de pressão soou. Ele já havia soado outras vezes em um passado nada remoto conforme observado mais acima, contudo tenta fazer-se escutar de modo cada vez mais agressivo, inversamente proporcional às atenções mundiais dispensadas a si.
A gota d’água do descontentamento social ocorreu quando Morales subverteu o referendo de 21 de fevereiro de 2016 (conhecido nacionalmente como 21F) promovido por ele mesmo, a fim de se tentar modificar a Constituição, abrindo a possibilidade de se reeleger indefinidamente. O que lhe propiciaria condições de o líder do MAS candidatar-se, naquele período, a um quarto mandato presidencial.
Naquele mesmo período, veio o escândalo de seu envolvimento sentimental com Gabriela Zapata desde que esta tinha 17 anos de idade, com quem teve um filho nunca antes revelado. Relação que envolveu ainda nepotismo e enriquecimento ilícito.
Se houve fraude ou foi um golpe que o derrubou logo após as eleições de 2019, a controvérsia permanece. Justamente por uma “justiça” local que não existe, reforçada por uma Organização de Estados Americanos (OEA) que funciona como escritório particular da Casa Branca. A realidade indiscutível é que Morales, já naquele tempo, no poder não suportou a pressão popular que já existia sobre si.
Todo este descontentamento foi ainda mais evidenciado quando Evo Morales retornou do exílio, em 2020: hostilizado seguidamente em reuniões do MAS em que, diversas vezes, acabou até agredido recebendo “chuvas de cadeiras” em determinados casos por seus correligionários. Previsível: quando presidente, os partidários de Morales não tinham a mesma possibilidade de protestar por seus “dedaços” (centralismo, como denominado por filiados ao MAS ao se opor a Morales) como em 2020, outro cenário em que as cicatrizes acabaram expostas. Bastando, para isso, Evo ter deixado o poder.
De lá para cá, têm-se acumulado escândalos aparentemente graves contra Evo Morales, junto do que parecem ser incontestes evidências das acusações que pesam sobre o líder cocaleiro. Semelhantes aos de Zapata, mas ainda mais graves. Práticas de pedofilia com uso do aparato estatal pesam sobre Morales.
Mesmo com isso tudo, parece não haver dúvidas de que Morales, uma vez candidato presidencial, vença o pleito favorecido decisivamente por seu núcleo-duro: seu eleitorado é amplo no chamado Ocidente boliviano, onde concentram-se as nações indígenas quechua e aimara. Além de seu reduto eleitoral, a região de Chapare no departamento de Cochabamba, onde Morales projetou-se como dirigente cocaleiro. Lá concentram-se as maiores produções de folhas de coca, e habitam os mais temidos narcotraficantes da Bolívia.
O grande dilema de Evo Morales é que o enfurecimento hoje sobre si pode ser, proporcionalmente, multiplicado por várias vezes em relação ao seu fiel eleitorado.
Se é pouco provável que alguém possa derrotar Morales nas urnas, é inimaginável que ele consiga governar diante do atual cenário político que contém, como uma de suas mais sentidas características, a profunda revolta social contra si em um país sob a cultura (levada às últimas consequências por Morales antes de chegar à presidência, quando estava na posição de opositor aos governos de turno) dos bloqueios em que, com muita violência diante da repetida inércia do governo, para-se todo o pequeno país central da América do Sul. Retirando de todos o direito fundamental de ir e vir, e até de trabalhar em diversos casos, por semanas.
Somada à aversão a Evo Morales, a própria situação boliviana requer alguém com tenha credibilidade entre a sociedade e a capacidade de gerar consciência apontada mais acima, ao invés do maquiavélico “nós contra eles”, característica típica também de (pasmem) Morales.
Esta pressão dificilmente permitiria a Morales concluir hipotéticos primeiros anos de mandato. O único meio pelo qual ele poderia governar, e concluir seu mandato, seria na menos grave das considerações através de um drástico enfraquecimento do já fragilíssimo (para dizer o mínimo) Estado democrático de direito boliviano.
Em uma, outrossim, sóbria análise que pode soar absurda a quem desconhece a realidade dentro de todo este contexto, Morales só poderia ter a capacidade de concluir seu mandato implementando permanente Estado de exceção. Não esperem os amantes das políticas progressistas em todo o mundo que com Evo Morales reeleito, a Bolívia “voltará” à normalidade e Estado de bem-estar que, na realidade, nunca viveu. Estes cenários realistas retratam a gravidade da conjuntura política, econômica e social do país andino. Ressalte-se: também fruto dos 13 anos de Morales no poder.
Na contramão deste realismo, o velho poeticismo contido em análises divorciadas da realidade farão (de novo) com que estes analistas ajam como tem feito agora: calem-se diante de inúmeros acontecimentos, “deixem passar” fatos que, por si só, destroem suas falsas narrativas.
E assim se depara com o jornalismo do beco sem saída: vai-se descontruindo a realidade social da Bolívia, o que também explica porque hoje pouquíssimos são capazes de explicar como e por que o país andino chegou a esta situação.
Evo Morales está encurralado politicamente. Seu encurralamento físico em Chapare nestes efervescentes dias na Bolívia são a marca metafórica mais adequada para retratar sua situação política, previsível há muito tempo. Para bem além da real, nociva influência de Washington. E ninguém consegue governar em um Estado de direito, enclausurado em Chapare ou onde quer que seja. Morales cavou a própria cova.
Apesar do número de eleitores como nenhum outro potencial presidenciável possui, já não há mais nenhuma possibilidade de que Morales sobreviva politicamente. Ao menos não, sob o sistema que ele apregoa, e através do qual pretende retornar à Casa Grande do Povo: a mesma democracia que o levaria de novo ao poder, o derrubaria facilmente.
Seria Evo Morales capaz de enfraquecer ainda mais o fragilíssimo Estado de direito boliviano, a fim de se manter no poder? Levando-se em conta a sucessão de acontecimentos neste país ao centro da América do Sul desde 2006, coroada pateticamente pelo que veio a partir do 21F, no entendimento deste comunicador a resposta certeira é um rotundo “sim”.
Percepção que coincide com considerável parte da opinião pública boliviana, talvez a maioria e ainda, certamente, incluindo muitos de seu próprio núcleo-duro, isto é, o fiel eleitorado do próprio Morales. Na verdade, seu atual paradoxo trata-se de dilema inevitável para Morales por como se lidou com o poder. Morales tornou-se, como observa Bersatti em seu livro supracitado, refém de si mesmo; fez de si uma presa fácil aos de dentro, e de fora.
E tentar-se prever como chegará politicamente o país andino ao pleito presidencial de agosto do ano que vem, seria tarefa suficiente para, talvez, explodir violentamente uma bola de cristal, utilizando aqui outra metáfora bem adequada a realidade boliviana hoje.
Para a turva realidade política boliviana em todas as suas esferas, quando o poder está em jogo a transparência e a democracia são o que menos importam.
Dos atuais jogadores desta bola nada cristalina, nenhum deles nunca esteve fora dessa realidade. Nem os que, como Luis Fernando Camacho e Pumari, auto-proclamam-se personagens de uma “nova política” para o que nunca se requereu bola de cristal a fim de se prever que seria (mais) uma grande mentira.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O dilema de Evo Morales. Artigo de Edu Montesanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU