29 Outubro 2024
"O texto resume muitas das ideias de Francisco, porém com uma nota evidente de nostalgia e pessimismo a mais em relação ao seu magistério anterior. O que emerge, mais uma vez, é o temor em relação a uma modernidade que é vista negativamente como um todo, capaz sim de produzir a inteligência artificial, mas incapaz de dar vida a comportamentos inspirados no amor e no gesto de solidariedade", escreve Francesco Peloso, jornalista, em artigo publicado por Domani, 25-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Dilexit nos (“Amou-nos”) é o título desta quarta encíclica do Papa Francisco (na realidade, a terceira, se considerarmos que a primeira foi escrita em grande parte por Bento XVI, que depois entregou o texto ao seu sucessor para que ele a completasse e publicasse), e também poderia ser intitulada, dado o conteúdo, “Ele ainda nos ama?” Sim, porque o que é descrito por Bergoglio é um mundo dominado pelo individualismo, pelos conflitos, pelo narcisismo, ou até mesmo por conceitos filosóficos importantes, como razão, vontade, liberdade, mas que, sem o amor dado por Deus, tornam-se vazios e áridos e contribuem, de fato, para a deriva de um mundo dominado por apetites egoístas.
Portanto, o convite do pontífice, desde o início, é redescobrir o amor como dado essencial das relações humanas, capaz de fazer com que nos identifiquemos com o outro.
“Para exprimir o amor de Jesus”, escreve Francisco no início da encíclica, “recorre-se frequentemente ao símbolo do coração. Há quem se interrogue se isso atualmente tenha um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência”.
E logo em seguida acrescenta: “Muitos, para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar para o coração, como algo distinto das faculdades e das paixões humanas consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal, em que a única realidade que pode unificar tudo é, em última análise, o amor”.
Ao ler a encíclica, não se sabe ao certo se estamos diante de uma simplificação excessiva dos temas levantados ou se, ao contrário, a simplicidade é apenas uma forma de expressar conceitos mais articulados de maneira compreensível.
Dito isso, o texto resume muitas das ideias de Francisco, porém com uma nota evidente de nostalgia e pessimismo a mais em relação ao seu magistério anterior. O que emerge, mais uma vez, é o temor em relação a uma modernidade que é vista negativamente como um todo, capaz sim de produzir a inteligência artificial, mas incapaz de dar vida a comportamentos inspirados no amor e no gesto de solidariedade.
Dessa forma, o pontífice se reconecta a uma vertente de pensamento conservador do catolicismo que vê os avanços científicos e tecnológicos como um fator essencialmente desumanizador, porque, e aqui está o ponto crucial não resolvido da questão, contribuíram para afastar o homem de Deus.
Tudo isso é temperado por uma veia nostálgica, por um sentimento de perda pelo que, em definitiva, é considerado o bom e velho mundo. Bergoglio escreve: “Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano. O que nenhum algoritmo conseguirá abarcar é, por exemplo, aquele momento de infância que se recorda com ternura e que continua a acontecer em todos os cantos do planeta, mesmo com o passar dos anos”.
“Penso”, continua Francisco, na onda da memória, “na utilização do garfo para selar as bordas daqueles panzerotti caseiros que preparávamos com as nossas mães ou avós. É aquele momento de aprendizagem culinária, a meio caminho entre a brincadeira e a idade adulta, em que assumimos a responsabilidade do trabalho para ajudar o outro. Tal como o exemplo do garfo, poderia citar milhares de pequenos pormenores que sustentam a biografia de cada um: sorrir com uma piada, fazer um desenho em contraluz numa janela, jogar o primeiro jogo de futebol com uma ‘bola de trapos’, cuidar de lagartas numa caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro, cuidar de um pássaro que caiu do ninho, formular um desejo ao despetalar uma margarida. Todos esses pequenos pormenores, o ordinário-extraordinário, nunca poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor… são sustentados pela ternura preservada nas memórias do coração”.
Caberia se perguntar o que a inteligência artificial tem a ver com os panzerotti da vovó, especialmente à luz de reflexões mais aprofundadas sobre o tema realizadas pelo Vaticano e pelo próprio pontífice nos últimos meses, nas quais a inteligência artificial também era analisada em seus prós e contras, as promessas positivas inerentes à sua aplicação e os riscos que também dela derivam.
Como dizíamos, Francisco não renuncia a alguns dos elementos clássicos de seu magistério, como a rejeição da guerra, e esses são, afinal, os melhores momentos do texto: “assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros Países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está perdendo o coração”. “Basta olhar e ouvir – nos diferentes lados do confronto – as mulheres idosas que são prisioneiras desses conflitos devastadores. É desolador vê-las chorar os netos assassinados, ou escutá-las desejar a própria morte por terem perdido a casa onde sempre viveram. Elas, que muitas vezes foram modelos de força e resiliência ao longo de vidas difíceis e sacrificadas, chegam à última fase da sua existência e não recebem uma merecida paz, mas sim angústia, medo e indignação. Descarregar a culpa nos outros não resolve esse drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração”.
Mas, logo em seguida, se retorna à reflexão que caracteriza quase exclusivamente toda a encíclica: “Quando alguém reflete, procura ou medita sobre o próprio ser e a sua identidade, ou analisa questões mais elevadas; quando pensa no sentido da própria vida e até mesmo procura a Deus, e ainda quando sente o gosto de ter vislumbrado algo da verdade; todas essas reflexões exigem que se encontre o seu ponto culminante no amor. Amando, a pessoa sente que sabe porquê e para que vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia. Por isso, diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se possa fazer seja esta: tenho coração?”.
O papa, por fim, com essa encíclica, revive um devocionalismo, o do Sagrado Coração de Jesus (desenvolvido no final do século XVII), que foi prerrogativa da Igreja mais tradicionalista e antimoderna; também é verdade que tenta reinterpretá-lo, despojando-o das impurezas mais politicamente comprometedoras (pense-se, por exemplo, na Igreja do Sagrado Coração na capital francesa, cuja construção nasceu como uma espécie de gesto de “reparação” após a Comuna de Paris), que nem sequer são citadas, e fundando-o em uma leitura bíblica que chega até Charles de Foucauld, mas certamente a contradição não pode ser removida tão facilmente.
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Para o papa, a civilização dos algoritmos é sem coração, o amor de Deus nos salvará? Artigo de Francesco Peloso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU