05 Outubro 2024
"Um primeiro fenômeno que parece caracterizar profundamente a cultura de nosso tempo e incidir na nossa maneira de ver a vida e realizar as nossas escolhas, especialmente no Ocidente, é o niilismo. Esse pode parecer um termo difícil e para os iniciados. Mas não é, quando se percebem seus efeitos mais práticos e imediatos", escreve Dom Roberto Repole, arcebispo de Turim, em artigo publicado por La Stampa, 30-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A lição franciscana é um grande estímulo para enfrentar nossa época, que registra mudanças inesperadas, mesmo em comparação com apenas algumas décadas atrás. O primeiro grande estímulo que nos vem do santo de Assis é não fugir deste mundo, habitá-lo plenamente e ver com lucidez o que está acontecendo, sem negar-se nada. Algo que é válido para os cristãos, é claro, mas que pode ser útil para qualquer mulher ou homem que queira manter a lucidez. De fato, há remoções ou negações da realidade das quais todos, embora de maneiras diferentes e às vezes antitéticas, é possível ser vítimas. Pensando especificamente no que a comunidade de crentes em Cristo é chamada a fazer, pode-se visualizar a capacidade de ler até mesmo este tempo como sendo habitado por Cristo, vivo no Espírito. Na medida em que se considera Cristo como princípio, fim e centro do mundo e da história, não se pode considerar que exista uma época não habitada por Ele. Até mesmo a atual mudança de época acontece sob o olhar e a presença do Cristo vivo.
Portanto, com Francisco e como ele, podemos encontrar nas Escrituras a luz para nos orientarmos em uma sociedade em rápida mudança e para transformarmos as problemáticas e as crises em oportunidades de crescimento.
E isso também pode valer para as pessoas que mais lutam para enfrentar o presente, por exemplo, os idosos, que muitas vezes se sentem desnorteados diante das mudanças sociopolíticas e religiosas das últimas décadas. O que deve ser visto e discernido à luz da fé? É difícil responder de forma sucinta, principalmente porque a vida contemporânea é caracterizada por uma grande “complexidade”. No entanto, é possível tentar ler alguns macrofenômenos a serem reconhecidos e habitados: tanto em nível sociocultural quanto no plano especificamente religioso.
Um primeiro fenômeno que parece caracterizar profundamente a cultura de nosso tempo e incidir na nossa maneira de ver a vida e realizar as nossas escolhas, especialmente no Ocidente, é o niilismo. Esse pode parecer um termo difícil e para os iniciados. Mas não é, quando se percebem seus efeitos mais práticos e imediatos.
Tomemos como exemplo o fenômeno disseminado dos programas de talk show na televisão ou das discussões na web e nas redes sociais. Nos programas de televisão ou de rádio, quando são discutidos temas importantes, tornou-se prática comum ter diferentes pessoas discutindo entre si, algumas das quais são realmente competentes, enquanto outras não têm nenhum conhecimento específico do que está sendo discutido. Essas últimas são convidadas apenas porque são personalidades conhecidas do mundo midiático. Esse mecanismo produz efeitos distorcidos: as posições daqueles que participam parecem todas equivalentes entre si, independentemente da competência de quem está falando. Com grande dificuldade, uma posição consegue assumir um valor qualitativamente diferente, mesmo que seja a posição de quem é realmente especialista.
No caso da internet, o fenômeno é ainda mais evidente. Podemos fazer qualquer pergunta aos sites de busca e eles nos encaminham a uma série infinita de páginas e informações que diferem na qualidade, seriedade e veracidade das posições defendidas. Quais são as informações corretas? Difícil de estabelecer. Certamente não é coincidência que, nos últimos anos, tenham se formado grupos de pessoas que defendem teorias da conspiração ou questionam verdades consolidadas em questões relacionadas à medicina ou a outras verdades científicas. Esses grupos foram alimentados pelas notícias que circulam aqui e ali na rede e contribuíram para a confusão oferecendo mais notícias cuja veracidade científica muitas vezes pode ser posta em dúvida. Certamente não se deseja negar o valor e a beleza dos novos meios de comunicação.
Quando se diz que, com a internet, ocorreu uma certa democratização da informação, está-se afirmando algo real: a informação não é mais prerrogativa de poucos operadores. Provavelmente levará tempo e paciência para que a sociedade civil forme um espírito crítico com relação ao que encontra na internet, assim como fez no passado com relação aos conteúdos de livros e jornais. No entanto, é evidente que os fenômenos aqui descritos acabam afirmando uma espécie de “tese metafísica”: a ideia de que, no fim das contas, não existe uma verdade válida para todos, nem é o caso de buscá-la e se apaixonar por ela.
Essa ideia também pode ser percebida nas formas mais comuns de dizer e pensar: como quando as pessoas dizem que cada um tem sua própria verdade e tem o direito de pensar o que quiser; ou como quando, no confronto entre religiões, dizem que uma vale a outra, sem entrar no mérito de quais crenças são professadas.
Pois bem, nesse sentido, já vivemos em um contexto niilista. Não certamente porque se professa de maneira trágica a perspectiva do nada em relação a uma perspectiva do ser, mas porque se respira um modo de pensar para o qual nada realmente vale, toda ideia é apenas uma opinião entre outras, as atitudes são todas inquestionáveis e não julgáveis, não vale a pena buscar uma verdade e, mais ainda, uma verdade não existe.
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Não fugir diante dos problemas do mundo. A lição de São Francisco contra o niilismo. Artigo de Roberto Repole - Instituto Humanitas Unisinos - IHU