Radicalismo católico em perspectiva: influências neofascistas no tradicionalismo católico brasileiro do século XXI. Artigo de Víctor Gama

Foto: Wall Papper

19 Agosto 2024

O artigo é de Victor Almeida Gama, graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (2017), mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2020) e doutorando pelo mesmo PPG. Membro do Laboratório de Estudos em Religião, Modernidade e Tradição (LeRMOT) e do Laboratório de Estudos da Imanência e Transcendência (LEIT), é associado ao grupo de trabalho "Derechas contemporáneas: dictaduras y democracias". Leciona em cursos de Teologia no Seminário provincial Sagrado Coração de Jesus. 

O artigo é publicado por Religión Digital, 19-08-2024.

Eis o artigo.

A relação entre o nazismo e o catolicismo continua a despertar um profundo interesse, especialmente depois que o Papa Francisco abriu os arquivos da Santa Sé relativos ao pontificado do Papa Pio XII (FRANCE PRESS, 2020). A atitude do Papa Pio XII, que reinou durante o Terceiro Reich, contém um paradoxo, que agora pode finalmente ser desvendado. Se por um lado existe a hipótese do colaboracionismo silencioso (CORNWELL, 2000), há também aquela que vê o pontífice como um defensor dos judeus (BLET, 2005; ICKX, 2021).

Não há dúvida, porém, de que as relações entre o Terceiro Reich e a religião, especialmente o catolicismo, nem sempre foram amigáveis. Inúmeros padres e religiosos de ascendência judaica pereceram em campos de concentração, como três santos canonizados durante os pontificados de João Paulo II e Francisco: são Maximiliano Maria Kolbe, santa Edith Stein e, recentemente, são Tito Brandsma [1]. No entanto, estes fatos históricos não foram capazes de impedir a tentativa de um setor específico do catolicismo romano, os radicais dentro do tradicionalismo, de catolicizar o fascismo e o nazismo, despojando-os da sua oposição fundamental ao catolicismo em muitos aspectos, especialmente na sua doutrina social.

Rodrigo Ribeiro da Silva (Foto: Reprodução | Religión Digital)

Dado o fenômeno global da ascensão da extrema-direita, seria ilusório pensar que os ambientes religiosos permanecerão imunes às suas incursões. Como aponta Iacopo Scaramuzzi (2020), o populismo de direita contemporâneo requer uma fundamentação teológica quando não utiliza estruturas religiosas numa relação parasitária para fins de propaganda. Mas esta relação só é possível porque a religião também está a emergir como um campo no qual o radicalismo de direita tem ampla penetração.

O discurso reacionário que mobiliza estes setores está em parte relacionado com o sentimento de insegurança produzido pela modernidade, que já não oferece a proteção do dossel sagrado. Com as suas crenças expostas à dúvida e ao questionamento numa sociedade pluralista, a radicalização e o apego às ortodoxias – sejam elas religiosas, políticas ou ambas – tornam-se um refúgio para aqueles que estão presos na inflexibilidade.

Neofascismo e tradicionalismo católico

Analisaremos agora as incursões neofascistas num setor minoritário do catolicismo, o chamado tradicionalismo católico. Embora minoritário, este setor tem um impacto profundo na vida do catolicismo contemporâneo e surge como uma das principais reações e um obstáculo fundamental à orientação reformista do pontificado do Papa Francisco. O tradicionalismo caracteriza-se pela sua pluralidade: embora partilhe a mesma resistência anticonciliar e seja portador de uma ideologia reacionária, está dividido em numerosas posições teológicas diferentes, moldadas por uma maior ou menor resistência às mudanças que o catolicismo tem experimentado desde os anos sessenta.

Portador de uma teologia política rudimentar, o tradicionalismo apenas procura regressar aos chamados documentos sociais do catolicismo para organizar a sua visão de sociedade, mas não renuncia à aproximação aos setores de inclinação sociológica da direita do espectro político, na sua forma mais reacionária. Este alinhamento político pretendia concretizar a sua concepção daquilo que o Papa Pio XI chamou de reinado social de Jesus Cristo na sua encíclica Quas Primas (1925). As alianças políticas são concebidas nos meios tradicionalistas como um esforço para tornar realidade este reinado, que só é visto como um predomínio do catolicismo como organizador moral da sociedade, combatendo os princípios do secularismo. Neste primeiro momento, tentaremos delinear a personalidade política do catolicismo tradicionalista através da sua adesão a ideologias e de intelectuais comprometidos com projetos políticos reacionários, especialmente na Europa, onde o tradicionalismo tem repercussões ainda maiores.

As questões políticas fazem parte do cotidiano do tradicionalismo católico desde os seus primórdios, especialmente na sua versão europeia. Historicamente ligados a um tradicionalismo político cujas referências incluem Joseph de Maistre, o cardeal Louis Édourard Pie e Louis Veuillot, pensam na sociedade europeia anterior a 1789 como a última expressão de uma sociedade orgânica, hierárquica e cristã. [2] Também é fácil traçar nestes movimentos a influência de pensadores como Charles Maurras e o seu movimento, Action Française, com o seu monarquismo, nacionalismo integral e concepções metafísicas e religiosas paradoxais, que entram, em parte, em conflito com o próprio pensamento integracionista, como sua compreensão da religião como mera disciplina do espírito útil para liderar o povo (FLORIAN, 2011).

No tradicionalismo, as ligações com intelectuais e correntes políticas ocorreriam na medida em que lutassem contra o liberalismo e o comunismo – impedimentos fundamentais ao reinado de Cristo – e já condenados pela doutrina católica no século XIX e início do século XX, como nas encíclicas Mirari Vos de Gregório XVI (1832); Libertas de Leão XIII (1902) e Dinivis Redemptoris de Pio XI (1937). A interlocução com estes movimentos tradicionais de direita entraria em choque com as posições anticatólicas de alguns deles, o que levanta a questão de quais forças são realmente predominantes dentro do tradicionalismo: se a sua autocompreensão fundamentalista de fidelidade ao ensinamento católico ou os seus interesses políticos, que desconsideram esta integridade ao abordar movimentos políticos reacionários.

Imagem de Pedro Sánchez associada a Hitler (Foto: Juan Barbosa | Europa Press)

Há uma visão no catolicismo tradicionalista que se baseia na expectativa de perseguição, fruto de experiências históricas específicas, como a Revolução Francesa ou a Terceira República na França com a sua Loi de Laïcité de 1905, que limitou a liberdade religiosa e acabou por reduzir o catolicismo francês de religião oficial a instituição sujeita aos interesses do Estado. Ou ainda os acontecimentos no México em 1917 e a Guerra Civil Espanhola de 1936, que levaram a ações de perseguição à Igreja e restrição da liberdade religiosa. Essa expectativa escatológica de que forças secretas e não tão secretas conspirariam contra o catolicismo (DELASSUS, 2016) mobiliza as alianças políticas do tradicionalismo.

Esta abordagem não ocorre apenas com a direita tradicional. Em fevereiro de 2022, Marine Le Pen, líder do partido francês de extrema-direita Frente Nacional, em declarações que tiveram ampla repercussão na imprensa francesa, denunciou publicamente a proximidade de "católicos tradicionalistas e alguns nazistas" em torno da campanha presidencial de Éric Zemmour (CORREIO PICCARD, 2022). Na corrida pelo eleitorado de extrema-direita, os católicos tradicionalistas são frequentemente vistos como obstáculos para alcançar uma maior penetração popular.

Captura de tela (Fonte: Religión Digital)

A historiografia sobre o tradicionalismo ainda tem muito pouco a dizer sobre as redes sociais políticas desta corrente. No caso brasileiro, apenas a adesão de Gustavo Corção à ditadura civil-militar de 1964 (PAULA, 2015), as atividades políticas da Tradição, Família e Propriedade e, mais recentemente, houve um movimento para analisar a proximidade dos novos movimentos tradicionalistas que surgiram no contexto da renovação das forças neoconservadoras brasileiras nos últimos anos. Estas ligações seriam com políticos que apresentam uma plataforma alinhada com alguns dos seus valores, como a luta contra o aborto e a esquerda política em geral. O comportamento destas organizações evidencia a natureza predominantemente política destes movimentos de inspiração católica, que funcionam como grupos de pressão, como é o caso do Centro Dom Bosco no Rio de Janeiro, e o seu apoio explícito às políticas do presidente Jair Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais de 2022 (NUNES; BANDEIRA; PEREIRA, 2021; Gama, 2021).

O que se observa é que o tradicionalismo se renova politicamente, transitando por grupos políticos com os quais não necessariamente está em plena sintonia teórica, em nome de um reinado de Jesus Cristo que nada mais é do que um resgate do catolicismo nacional, vislumbrando no Brasil uma espécie de uma vocação para liderar a reação católica no mundo que ainda não foi realizada.

Nossa hipótese é que as novas interações políticas do tradicionalismo católico são, na realidade, o resultado de um projeto de conquista do espaço público articulado de forma difusa pela miríade de grupos que compõem esta família religiosa e que, em alguns casos, não nega resgatar intelectuais e ideias que flertam com o fascismo histórico para enfrentar seus inimigos privilegiados.

No meio destas alianças políticas formais ou informais, entram em jogo os mais variados agentes políticos: os chamados “liberais-conservadores”, os conservadores clássicos, os pós-fascistas e até os neofascistas. O papel da política, neste caso, reduz-se ao de uma simples forma de estabelecer um amplo projeto de hegemonia moral católica, para o qual a unidade política com os agentes da reação nada mais é do que uma estratégia de ação, mas que em muitos casos acaba por produzir uma relação de harmonia ideológica, se esta ainda não existisse.

Na França, em 2013, a série documental Infiltrés, produzida pela agência Capa e veiculada pela France 2, já revelava a presença de ideias neofascistas nesses ambientes. Numa escola ligada à organização tradicionalista Instituto do Bom Pastor, o jornalista disfarçado denunciou a doutrinação antissemita praticada por professores que levantavam dúvidas sobre as dimensões do Holocausto. Ao testemunhar uma conversa entre professores e pais sobre o fim do domínio francês sobre a Argélia, revelou um antissemitismo alimentado por piadas. No fim, os alunos cantaram músicas nazistas e fizeram piadas sobre a “viagem de casamento a Auschwitz” (TELEOBS, 2013).

O que pode parecer um caso isolado nos círculos tradicionalistas foi precedido pelas palavras de um bispo tradicionalista inglês, Richard Willianson, que em 2009, numa entrevista à televisão sueca, negou o Holocausto e a utilização de câmaras de gás. Quando o Papa Bento XVI instou-o a retratar-se, ele defendeu-se dizendo que teria de rever as evidências históricas. “Se eu encontrar as evidências, vou retificá-las, mas isso leva tempo” (CARMO, 2009).[3] Em defesa do bispo inglês, o defensor da organização de Willianson, denominada “Resistência”, fundada após sua expulsão da Fraternidade Sacerdotal de São Pio, o brasileiro Dom Tomás de Aquino afirma que apoiar tal proposição fora dos domínios da doutrina católica consistiria em “defender a verdade”: 

Quando o tribunal alemão ordenou que D. Willianson pagasse uma certa quantia em dinheiro para encerrar o caso, um padre amigo disse-lhe que ele poderia pagar o dinheiro. Willianson respondeu: “Agradeço muito, mas não se trata de dinheiro, trata-se de defender a verdade”. Que o processo continue (AQUINO, 2022, p. 109).

Membro do movimento Willianson, o padre italiano Curzio Nitoglia partilha e expõe as mesmas opiniões políticas controversas e visões históricas contrafactuais. [4] Em seu site, publica material de Erich Priebke e afirmações como “Deus não gosta de judeus” (ALTERVISTA, 2022). [5] Não muito longe, o blog do mesmo movimento "Resistencia" hospeda o artigo "Francisco revela sua verdadeira face", de Michael Hoffman, autor revisionista, apresentado no próprio site.

A recepção de tais ideias no ambiente tradicionalista se deve à sua posição de permanente suspeita. Se na esfera eclesial as doutrinas foram alteradas e ganharam uma aparência tradicional, na esfera política a corrupção das forças ocultas que administrariam esta revolução universal distorceram a história, portanto é um ato de defesa da verdade apoiar o histórico subjetivo revisionismo que encontra terreno fértil nestes movimentos.

Dado que a recuperação de ideias comuns no ambiente neofascista, como a xenofobia, o antissemitismo e o revisionismo histórico, está presente em setores minoritários do tradicionalismo católico, analisaremos agora o cenário formado pelas publicações de três grupos de Telegram formados por católicos sedevacantistas. [6]

Tradicionalismo, neofascismo e internet

O neofascismo opera tendo a internet como campo privilegiado (GOULART, 2020; DIAS, 2008), e em estudo recente, publicado em março de 2022, realizado em parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Universidade da Bahia, notou-se uma produção crescente de conteúdo neonazista no Telegram desde 2021 (SERAPIÃO; LOPES, 2022).

O laboratório responsável monitorou 69 grupos e 186 canais envolvidos em atividades de propaganda neonazista. Esse número crescente é o resultado da sensação de liberdade oferecida por plataformas de mensagens criptografadas como o Telegram. Para alguns, este é o espaço ideal para divulgar os mitos de Hitler, mesmo sob um disfarce religioso.

Estes três grupos do Telegram combinam uma mistura de diferentes filosofias políticas, com predominância de elementos neonazistas. Certamente, há muitas maneiras de ler a presença da ideologia nazista nestes grupos, mas ao inventariar as suas publicações, descobriu-se que eles se concentram em duas direções. Em primeiro lugar, uma tentativa de dar um aspecto cristão ao aparelho ideológico nazi, recuperando neste sentido declarações de Adolf Hitler ou de propagandistas nazistas, e em segundo lugar, o renascimento de uma repulsa antissemita que também se expressa através de extratos de documentos papais que se referem negativamente aos judeus.

Captura de tela (Fonte: Religión Digital)

Divisão Azul

[7] Não é possível afirmar que os grupos analisados ​​sejam afiliados a algum movimento sedevacantista específico, nem que recebam qualquer aprovação destes, mas reproduzem material publicado pela Sociedade Sacerdotal de San José (SSJ) em seu canal oficial no Telegram. O SSJ vem de uma cisão do já mencionado movimento de “Resistência”. A mera reprodução das publicações do SSJ, embora não implique um apoio claro ao movimento, define o perfil dos membros do canal, sedevacantistas professos e, portanto, alinhados com o setor mais radicalizado do tradicionalismo católico. Os três grupos são, com números de 26-01-2023: Sedevacantismo, com 318 membros; Divisão Azul, com 280 membros; Nacionalista Católico, com 64 membros. Dos três, a Divisão Azul é o grupo que mais publica conteúdo nazista, e os outros dois grupos são instrumentos de divulgação dessas publicações. Por esse motivo, optamos por focar nossa análise no material encontrado nesse grupo.

O grupo Divisão Azul foi criado em 18-12-2022. Em sua primeira publicação aparece uma foto de Hitler acompanhada de um trecho de um discurso proferido em Munique em 18-02-1929, no qual afirma que a visão de mundo nacionalista é positivamente cristã e que, portanto, os bons cristãos devem se opor ao Parlamento e apoiar a ditadura do Partido em Munique (DIVISÃO AZUL, 18/12/2022). A citação refere-se a uma circunstância histórica específica, mas estes grupos leem como uma reconciliação definitiva entre o nacionalismo, o cristianismo e o nazismo.

A ideia de um Estado-nação católico, como vimos, é um elemento onipresente no pensamento tradicionalista, que aspira ao reinado social de Jesus Cristo. Contudo, a reflexão dos neonazistas católicos não implica que, na concepção nazista, a religião fosse vista apenas de um ponto de vista puramente instrumental. Em 1933, houve uma renovação nacional e religiosa, que os nazistas viam como profundamente ligada, pois nesse ano a Alemanha assistiu a um fenômeno de adesão religiosa após um período de forte evasão nos anos anteriores (STEIGMANN-GALL, 2004, p. 149 ), e consideravam-no assim porque a religião funcionava, na visão do mundo nazista, apenas para fins de propaganda de um suposto fenômeno amplo de renovação nacional.

O contexto de atrito entre partido e religião continuou durante todo o período de domínio do Terceiro Reich, e Goebbels atribui a Hitler a afirmação de que "não é uma questão do partido versus o cristianismo; pelo contrário, devemos declarar-nos os únicos cristãos". "Esta foi a estratégia de Hitler para neutralizar a oposição nos círculos clericais protestantes e católicos, demonstrando assim um foco de resistência dentro destas duas tradições (STEIGMANN-GALL, 2004, p. 153).

Há um esforço nas publicações para apresentar Adolf Hitler como um opositor das tendências pagãs dentro do nacional-socialismo para pelo menos apresentá-lo como um simpatizante do cristianismo como uma força espiritual capaz de liderar a nação, como indica a publicação de 12-12-2023:

A característica dessas pessoas (neopagãos) é que falam sobre o antigo heroísmo germânico, a pré-história sombria, machados de pedra, lança e escudo, mas na realidade são os maiores covardes que se possa imaginar. (...) Não pregam aos presentes outra coisa senão a luta com armas espirituais e fogem o mais rápido que podem de qualquer comunista.

Adolf Hitler

Mein Kampf (LEGIÃO AZUL, 12/01/2023).

O Estado Nacional Socialista não fechou uma única igreja, impediu os serviços religiosos ou violou a celebração de missas. O homem é livre para buscar a absolvição da maneira que desejar.

Adolf Hitler

Em discurso proferido no Reichstag em Berlim em 30 de janeiro de 1939 (DIVISÃO AZUL, 12/01/2023).

Nos seus esforços para reconciliar o cristianismo e o fascismo, não se limitam a reproduzir a retórica hitlerista, mas recorrem a outras figuras, como o fascista britânico Owsald Mosley:

Estamos preocupados com os assuntos da nação, não com os da religião. Nenhuma das grandes religiões prega a subversão do Estado e, portanto, não tem conflito com o fascismo. Pelo contrário, acolhemos com satisfação a religião que inspira um sentido de serviço e valores espirituais, porque o serviço e os valores espirituais são a essência do fascismo.

Oswald Mosley (DIVISIÓN AZUL, 09/01/2023).

No período entre 18-12-2022 e 23-01-2023, o grupo Divisão Azul publicou 103 mensagens neonazistas. A maioria deles eram extratos de textos ou discursos de figuras como Adolf Hitler, Joseph Goebbels, Francisco Franco, Antônio de Oliveira Salazar, Léon Degrelle e extratos de documentos papais, predominantemente medievais, em que a figura do judeu é apresentada de uma forma negativa.

O antissemitismo, outra direção em que o grupo analisado caminha, vive um crescimento vertiginoso como consequência da epidemia global de neonazismo que presenciamos hoje e que continua repercutindo no Brasil (PICHONELLI, 2021). O antissemitismo católico não é novidade. O livro Complô contra a Igresia (1994), que circula sob o pseudônimo de Maurice Pinay desde a década de 1960, é amplamente divulgado na grande imprensa, e alguns sedevacantistas afirmam que foi escrito pelo padre Joaquín Sáenz y Arriaga, pioneiro e progenitor do livro O sedevacantismo no México na década de 1970. A obra, que se afirma histórica, atribui todos os infortúnios que a Igreja Católica sofreu ao longo de sua história às conspirações judaicas, e no Brasil foi publicada pela Editora Revisão, envolta em polêmicas por conta do revisionismo e conteúdo antissemita de suas publicações.

Em particular, o livro denuncia uma manobra para mudar a Igreja desde o Concílio Vaticano II, levada a cabo por “judeus, maçons e comunistas” (PINNAY, 1994, p. 17). E a partir desta manobra

(...) querem que os judeus réprobos, considerados maus pela Igreja durante dezenove séculos, sejam declarados bons e amados por Deus, contradizendo assim o unanimis consenso patrum, que estabelecia precisamente o contrário, bem como o que foi afirmado por várias bulas papais e cânones dos Concílios Ecumênicos e Provinciais (PINNAY, 1994, p. 17).

A imagem que se apresenta do judeu na modulação religiosa é aquela que promove a corrupção dos costumes cristãos, favorece conspirações em todo o mundo e pratica o financeirismo:

O mundo inteiro sofre com a usura dos judeus, seus monopólios e enganos. Eles levaram muitas pessoas infelizes à pobreza, especialmente os camponeses, a classe trabalhadora e os mais pobres. Então, como agora, os judeus devem ser lembrados intermitentemente de que gozaram de direitos em qualquer país desde que deixaram a Palestina e o Deserto Arábico e, subsequentemente, as suas doutrinas éticas e morais, bem como as suas ações, merecem ser expostas à crítica em qualquer país em que vivem (sic).

Papa Clemente VIII (DIVISIÓN AZUL, 11/01/2023).

As referências antissemitas nestes canais vão além da esfera religiosa. No Brasil, um intelectual que representa o sentimento antissemita, e que continua a ser evocado nestes canais do Telegram, é Gustavo Barroso. Suas obras são frequentemente referenciadas e trechos publicados:

O Império Britânico é o Reino do Anticristo. O protestantismo, o judaísmo internacional e a maçonaria convergiram para lá. Foi este Império que estendeu a sua ditadura financeira por todo o mundo, visando as colônias ibéricas por inveja satânica. O Império Britânico é o inimigo comum da humanidade (DIVISÃO AZUL, 20/12/2022).

A imagem dos judeus como subversivos, que não é nova, parece ter sido transformada na Europa. Aí, o neoconservadorismo tem-se centrado no Islã como inimigo privilegiado, e parte do seu programa de apagamento da alteridade passa pela criação de representações anti-islâmicas que veem no universo dos praticantes desta religião a intenção de subverter o que a extrema-direita da região considera um Ordem europeia.

No caso dos canais brasileiros do Telegramlocus de produção neonazista do tradicionalismo, os judeus são vistos como promotores de um fenômeno muito mais amplo, porque não é apenas a Europa que é o alvo, mas todo o Ocidente, visto como criado e ancorado no catolicismo. O fato é que o que hoje entendemos como Ocidente é produto não só de influências cristãs notáveis ​​e evidentes, mas também de influências não cristãs e anticristãs. Por esta razão, o judeu é visto como o agente icônico que iria gerir uma revolução em todos os níveis e contra quem é legítimo lutar.

Conclusão

A presença de ideias neonazistas no universo do catolicismo tradicional é residual. É preciso lembrar que este setor minoritário do catolicismo aliou-se historicamente à extrema-direita reacionária (SENA, 2019), num movimento de rejeição à modernidade que leva a uma aproximação com movimentos políticos polêmicos. No Brasil, pelo menos, esta ligação com a extrema-direita ainda não tinha levado a um impulso neonazista, ao contrário da Europa, onde esta tendência já estava a emergir e a mostrar-se explicitamente desde, pelo menos, a negação do Holocausto pelo tradicionalista D. Richard Williamson em 2009.

Em um dos vídeos veiculados pelo canal Divisão Azul, Willianson aparece dizendo que o nazismo se tornou o único pecado do nosso tempo. Que numa época em que tudo é questionável, o Holocausto havia se tornado o único dogma, de uma religião em que Hitler é o único demônio, e os judeus são sua divindade (DIVISÃO AZUL, 27/01/2023).

Tentando avançar para uma explicação, é possível deduzir que a luta política contra o tradicionalismo visa estabelecer na sociedade um código moral católico, ao qual talvez nem mesmo o próprio catolicismo aspira. Animados por um espírito anticonciliar, voltam-se para o passado, especialmente para uma teologia moral que prevaleceu no período pré-conciliar, que condena não apenas os atos reconhecidos como pecado, mas a própria possibilidade de comportamento que vai na direção oposta ao que eles imaginam. É o que chamam de reino social de Jesus Cristo: uma teocracia em que prevalece o rigor moral pré-conciliar.

Captura de tela (Fonte: Religión Digital)

Para isso, aliam-se a ideologias e movimentos que se coadunam, pelo menos em parte, com este projeto. No quadro doutrinário do neofascismo encontram uma harmonia moral e uma rejeição da modernidade e dos seus valores que favorece a criação de um ambiente que, na sua concepção, é cristão. Daí a necessidade de cristianizar o nazismo, de oferecer um verniz religioso que atraia mais adeptos a esta corrente. À superfície, estes grupos radicalizados do tradicionalismo católico evocam o reinado social de Jesus Cristo e, no subsolo, revivem o neofascismo e o antissemitismo.

A análise do canal @DivisãoAzul ajuda a formar uma imagem do que aponta o projeto “Ecossistema de desinformação e propaganda informática no Telegram”, realizado pelas universidades federais da Bahia e do Rio Grande do Sul. Esses grupos também são mobilizados por um discurso religioso: “As ações sugerem uma oposição entre cristãos e judeus, em que este último grupo é apresentado como ‘anticristão’ e como uma força política e econômica que atua ‘a favor da vacinação em massa em todo o mundo’ através de grandes corporações” (SERAPIÃO, 2022).

Refratários à coalizão entre neoconservadorismo e neoliberalismo, tão em voga no espectro da chamada “nova direita” no Brasil, os neonazistas católicos refugiam-se nesta ideologia como forma de manter sua própria identidade. Para fazer isso, ligam a doutrina social do catolicismo aos princípios fascistas. Não consideram que esta relação seja tão flexível a ponto de coincidir, mas sim que tenha uma harmonia essencial e fundamental.

Rejeitam as representações neoconservadoras pós-castas porque se apresentam como independentes das ideologias que protagonizaram o cenário político do século, enfatizando a necessidade de resgatar os princípios axiológicos do pensamento fascista como condição para um “renascimento” do espírito essencialmente cristão, uma sociedade hierárquica, corporativista e tradicional.

Captura de tela (Fonte: Religión Digital)

Referências

[1] O tradicionalismo católico é uma corrente formada após o Concílio Vaticano II que, para recuperar a velha ordem católica, se posiciona contra as inovações e atualizações ocorridas no catolicismo após o Concílio Vaticano II. Caracterizam-se pela adoção da chamada liturgia de São Pio V ou Tridentina e de um modelo pré-conciliar de teologia moral.

[2] Integrismo é o termo usado por aqueles que querem defender o catolicismo integral e fixo, entre os quais estão os tradicionalistas.

[3] Principal organização tradicionalista, fundada em 1970 pelo arcebispo francês Marcel Lefebvre (1905-1991), que se destaca pela defesa das práticas litúrgicas e disciplinares anteriores ao Concílio Vaticano II. Tem cerca de 3 bispos e 700 padres espalhados por 70 países.

[4] O funeral de Erich Priebke também foi celebrado por outra organização tradicionalista, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X. LARCHER, Laurent. A Fraternidade São Pio X celebra o funeral do nazista Erich Priebke. La Croix, 2013. Disponível aqui.

[5] HOFFMAN, Michael. Francisco mostra a sua verdadeira face. Non Possumus, 2013. Disponível aqui. 22 de janeiro de 2023.

[6] O sedevacantismo é uma posição teológica dentro do tradicionalismo católico que considera que os papas pós-Vaticano II comprometeram-se com a modernidade, defenderam doutrinas heréticas e, portanto, perderam o seu papel de liderança na Igreja Católica. Assim, consideram que o último papa do catolicismo romano foi Pio XII (1939-1958) e que os atuais líderes romanos são antipapas. O sedevacantismo é a posição mais radicalizada dentro do tradicionalismo.

[7] Movimento sedevacantista brasileiro sediado na cidade de Juquitiba (SP). É composto por um bispo, um ex-membro do movimento “Resistência” e três padres. O movimento está representado em pelo menos 19 cidades atendidas regularmente pelos três padres. SEMINÁRIO DE SÃO JOSÉ. Lugares de missão dos sacerdotes da Sociedade Sacerdotal de São José. Disponível aqui. Acesso em: 23-01-2023.

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