09 Agosto 2024
A primeira-ministra bangladense, a até então poderosa xeque Hasina, abandonou o governo e fugiu para a Índia em meio a protestos estudantis massivos e persistentes cruelmente reprimidos.
O artigo é de Santiago Montag, jornalista internacional, publicado por Nueva Sociedad, 07-08-2024.
Na baía de Bengala ocorre um vento poderoso conhecido como monção. Desde tempos imemoriais, esse vento marca uma temporada inteira de inundações e chuvas torrenciais. Apesar do caráter devastador para as populações, ele chegou a ser venerado como um deus, já que após a catástrofe deixa importantes mudanças ambientais que favorecem a agricultura e as reservas de água. Em alusão a esse fenômeno natural, os estudantes de Bangladesh batizaram o movimento de protestos em escala nacional que abalou o regime político com o nome de "Monção de Bengala".
Há poucas horas, a primeira-ministra, xeque Hasina, renunciou e escapou de helicóptero do palácio presidencial e depois viajou para a Índia, encerrando 15 anos de governo durante os quais foi chamada de "Dama de Ferro". Hasina faz parte da elite política e do partido ligado à luta pela independência (a Liga Awami), e é filha de xeque Mujibur Rahman, primeiro presidente de Bangladesh. O chefe do Exército anunciou a formação de um governo interino sem dar muitos mais detalhes. Os jovens vivem o momento como um triunfo, mas não vão tolerar um governo militar. Os acontecimentos estão em pleno desenvolvimento, mas vamos aprofundar suas raízes.
O estopim dos protestos foi a decisão do Tribunal Supremo de restabelecer o sistema de cotas que estava suspenso desde 2018. Esse sistema reservava 30% dos cargos governamentais para as famílias dos veteranos da guerra de libertação de 1971 contra o Paquistão. Naquela guerra, a Liga Awami, liderada por Rahman, desempenhou um papel importante.
Fahim, estudante da Universidade de Dhaka, explica aos jornalistas que "a lei fazia sentido nos anos após a independência, como recompensa para aqueles que deram suas vidas na guerra", mas para os jovens de hoje "na prática significa que a Liga Awami assegura o controle do Estado". Ou seja, a chamada "cota para os lutadores pela liberdade", junto com a corrupção no exame para a função pública, impede muitos dos estudantes de acessar empregos estatais, o que significa desperdiçar suas capacidades profissionais em um país onde reina a pobreza. O desemprego é um problema estrutural de Bangladesh, mas para a juventude, em particular, representa um grave problema ao finalizar os estudos. A pesquisadora bangladense Naomi Hossein explica que "muitos deles têm as habilidades necessárias para encontrar trabalho no exterior, mas estão decididos a ficar e servir ao seu país".
No fundo, o pedido estudantil visava o problema do emprego em Bangladesh, um país pequeno em superfície, mas com 170 milhões de habitantes, dos quais metade vive em extrema pobreza, e que sofre com ciclones anuais junto a epidemias de doenças como dengue ou cólera. O serviço público abre apenas 3.000 vagas anualmente para os mais de 400.000 graduados das universidades, e na falta de emprego privado de qualidade, isso pinta um panorama sombrio para os jovens.
Julho foi sangrento em Bangladesh. Os protestos que começaram de forma pacífica no primeiro dia do mês se massificaram e radicalizaram rapidamente por todo o país e a eles se juntaram trabalhadores precários. A xeque Hasina, conhecida como a Dama de Ferro do Sul da Ásia, respondeu com uma repressão brutal, enviando sua milícia paramilitar, a Liga Chhatra, a Polícia e a Guarda Fronteiriça.
Um ponto de inflexão foi o 14 de julho, quando zombou dos manifestantes ao chamá-los de "razakars", como eram chamados os bangladenses que colaboraram com o exército paquistanês durante a guerra de 1971, acusados de crimes contra a humanidade contra civis no então Paquistão Oriental. Mas esse foi um modus operandi da primeira-ministra. Para justificar a violência desmedida, o governo vincula cada manifestação contra ele a grupos de oposição como o Partido Nacionalista de Bangladesh, liderado por sua arqui-inimiga Khaleda Zia (viúva do presidente assassinado Ziaur Rahman), ou o Jamaat al Islamia, de orientação islâmica radical. Ambos os partidos são conhecidos por suas brutalidades no passado, seus vínculos com a opressão paquistanesa e as ditaduras militares entre 1975 e 1990. É verdade que estes deram seu apoio aos protestos, mas como explica Kais Mahmood, "os partidos de oposição não têm nenhuma influência no movimento, são mortos políticos, os estudantes estão lutando por mudanças profundas, por isso os reconhecem como membros da mesma elite que a Liga Awami".
Os protestos se radicalizaram em poucos dias. O ódio ao governo se canalizou em ataques contra edifícios governamentais e infraestruturas públicas, o que transformou as ruas em zonas de guerra. Os combates foram sangrentos e a solidariedade de trabalhadores de rua como os motoristas de rickshaw (táxis de três rodas com tração humana) foi fundamental, transportando os feridos. Entre as imagens mais chocantes está a do ativista Abu Sayed, que se posicionou desarmado frente a uma coluna de policiais com os braços abertos e foi fuzilado à queima-roupa. Esse ato foi condenado pela Anistia Internacional, que expressou sua preocupação com a grave situação dos direitos humanos em Bangladesh.
Nos protestos, destacaram-se mulheres e jovens. Para Shafiqul Alam, diretor da agência AFP em Bangladesh, trata-se de uma "revolução de mulheres". Sua participação foi cruelmente punida pelos membros da Liga Chhatra, homens que espancaram centenas de jovens com bastões e facões sem pudor. No entanto, isso não as impediu de voltar às ruas.
Para controlar a situação, o governo impôs um toque de recolher em todo o país e cortou a internet durante quase uma semana. Da mesma forma, proibiu o direito de greve e de reunião pública enquanto semeava o terror militarizando as universidades, onde os estudantes se entrincheiraram e chamaram ao fechamento total. Durante as noites, a polícia e outras forças repressivas realizaram batidas "porta a porta" para prender líderes e ativistas, retirando-os de suas casas à força. Após serem liberados, esses denunciaram torturas nos centros de detenção.
Para acalmar as águas, o Tribunal Supremo voltou a abolir o sistema de cotas, dando a entender que recuava com a medida. Mas não foi suficiente. O movimento havia começado a exigir justiça e prestação de contas pelos mais de 300 mortos até aquele momento.
Após uma semana de batidas e prisões noturnas, o movimento se reagrupou. Durante esses dias, foi elaborado um documento com nove demandas, entre elas o pedido de um pedido de desculpas oficial, justiça pelos mortos e a renúncia de vários ministros. Mas à medida que o movimento cresceu, isso foi se voltando para uma única demanda representada nos milhares de punhos erguidos com o dedo indicador apontando para o céu: a renúncia de Hasina.
Os coordenadores dos protestos começaram a fazer um apelo nacional a um "movimento de não cooperação". Ou seja, o pedido principal passou de uma reforma limitada às cotas para apontar contra todo o regime político.
O domingo 4 de agosto foi o mais mortal até o momento. A juventude nas ruas derrubou dezenas de estátuas do herói nacional Mujibur e inundou as ruas de Dhaka e outras cidades. As redes sociais se encheram de ameaças da Liga Chhatra, cujos militantes apareceram nas principais esquinas com caminhonetes 4x4 e armas. O dia terminou com 94 mortos nos confrontos em todo o país.
Apesar de tantas mortes, Hasina não cessou suas provocações. Em uma conferência de imprensa, chamou os manifestantes de "terroristas que buscam desestabilizar a nação" e disse que era necessário "tratá-los com mão de ferro".
Em resposta, o movimento antecipou a "Marcha a Dhaka" para a praça Shahbag nesta segunda-feira para pressionar por sua única demanda, ao mesmo tempo que convocavam a construção de Comissões de Luta e Resistência em cada bairro e aldeia. O método imita o dos comitês liderados por estudantes em diferentes momentos históricos para a resistência: os mais significativos foram os formados para lutar pelo uso da língua bengali em 1952 em oposição ao urdu imposto pelo Paquistão, depois durante a guerra de independência em 1971, e mais tarde na queda da ditadura em 1990. Essa mesma tradição os levou a resistir às mais cruéis massacres da história do país.
Fahim Mukarrab comenta da Universidade de Jahangirnagar, no distrito de Savar: "Agora declaramos uma longa marcha a Dhaka e para cercar a residência da primeira-ministra hoje [5 de agosto]. Pode acontecer qualquer coisa, meu amigo. A situação aqui agora é mais mortal do que qualquer outra na história do nosso país". As ações desta semana escalaram a um nível jamais visto, e os jornais falaram de milhões de pessoas nas ruas.
A Dama de Ferro finalmente enferrujou. Durante a tarde de segunda-feira, 5 de agosto, Hasina renunciou e abandonou Dhaka em helicóptero, voando para a Índia. Milhares de manifestantes pularam a cerca de sua residência e tomaram a casa de governo. Após o vazio de poder, o chefe do Exército Waker-Uz-Zaman formou um governo interino que estabeleceu um diálogo com os líderes dos partidos políticos. Lá não esteve presente nenhum membro da Liga Awami. O precedente dessa situação foi em janeiro de 2007, quando o Exército declarou estado de emergência para conter os protestos generalizados e instalou um governo provisório apoiado pelos militares durante dois anos.
O fator chave na queda de Hasina foram os trabalhadores do setor têxtil e a pressão dos fabricantes. Os bloqueios prolongados no tempo, os cortes nas principais rotas e a queda da internet e das comunicações haviam atingido duramente a frágil cadeia de suprimentos da indústria têxtil just in time, da qual depende 80% das exportações do país. O setor alertou que, em poucos dias, foram registradas perdas de 58 milhões de dólares. Centenas de fábricas fecharam suas portas por medo de serem vandalizadas, já que várias foram incendiadas. Além disso, reconhecem o temor de que suas trabalhadoras se unam ao movimento de protesto e que a produção seja ainda mais afetada. Da Central Sindical de Trabalhadores da Confecção de Bangladesh (GWTUC, em inglês), a ativista Ferdewsi Rahman afirmou que milhares de trabalhadoras têxteis começaram a se unir aos protestos, onde já estavam participando diversos setores de artistas, intelectuais e professores. A entrada desse setor chave foi o que deu o golpe final. Desde 2013, vinham protagonizando protestos e greves por melhorias salariais. Após os anos de pandemia, o movimento grevista havia retornado com força durante 2023, desgastando o governo desde então.
O analista Michael Kugelman explicava na revista Foreign Policy que os protestos destruíram a imagem de uma Hasina inabalável. A ex-primeira-ministra havia baseado sua governabilidade em taxas de crescimento de 6% ao ano durante os últimos 15 anos, devido principalmente à exportação de produtos têxteis e ao investimento em obras públicas. Mas para um país de 170 milhões de pessoas isso não é suficiente. A poluição se estende pelas ruas, com o ar densamente carregado de fuligem, e os extensos rios que fluem do Himalaia estão todos contaminados.
A situação macroeconômica, em geral, já era sombria. O Fundo Monetário Internacional (FMI) vinha exigindo um programa de restrições do gasto público junto a reformas de maior abertura e desregulamentação. Além disso, o governo, para sustentar o crescimento, havia tomado grandes empréstimos de outros países asiáticos, principalmente da China e da Índia, o que deixou a economia vulnerável à volatilidade das moedas e dos mercados.
Embora Hasina já estivesse pendurada por um fio, havia conquistado recentemente um quarto mandato com uma participação eleitoral de 40%, a mais baixa da história do país. Seu governo havia conseguido uma convergência entre os empresários têxteis, uma aliança com partidos de direita, mas também de esquerda, como os maoístas do Partido dos Trabalhadores de Bangladesh.
Mumu Balaika, uma estudante da Universidade de Jahangirnagar, explica que "Hasina, desde que chegou ao governo em 2009, foi centralizando o poder em sua figura e perseguindo a oposição, tanto líderes sindicais quanto estudantis". De fato, um relatório da Human Rights Watch revela casos de "desaparecimentos forçados", "execuções extrajudiciais" e "tortura". Essa característica de seu governo foi um dos fatores de ódio generalizado contra sua figura.
E agora, o que vem a seguir? A queda de Hasina condensou a crise orgânica que atravessava o país. Com uma oposição fraca e rejeitada pela população, os estudantes que lutaram de forma heroica também não podem antecipar o futuro imediato. Dip Ranjan Sarker comenta desorientado, das ruas do distrito de Comilla, que "agora não sabemos o que vem a seguir, estamos todos esperando o que acontecerá".
Ashraf, pesquisador e professor do Departamento de Antropologia da Universidade Jahangirnagar, comenta que "não há uma alternativa clara após a queda do governo pela força dos protestos, e pode haver algum chamado para novas eleições, mas não existe uma estrutura política que possa substituir a elite atual da Liga Awami nem os outros partidos". Explica que "é muito provável que isso conduza a um governo militar, mas a população não vai tolerar".
A queda de Hasina não é um processo isolado no sul da Ásia. Durante 2022, o movimento Aragalaya derrubou a dinastia dos Rajapaksa no Sri Lanka. Em 2021, em Mianmar, as trabalhadoras têxteis lideraram a resistência contra o golpe militar. Em 2020, as ruas da Tailândia estavam repletas de jovens levantando três dedos em alusão às três demandas contra a monarquia Vajiralongkorn. Ainda a situação em Bangladesh é incerta: "O norte não está totalmente claro, mas sabemos o que não queremos", diz de Manipur Rab Tanjim, um jovem estudante após um longo dia nas barricadas, "foram dias e noites terríveis, perdi muitos amigos, mas para nós hoje é o dia da vitória".
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Como os estudantes de Bangladesh derrubaram a Dama de Ferro da Ásia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU