02 Agosto 2024
No país com maior concentração de terras do planeta, a direita a rechaça e a esquerda a subestima. Mas ela será cada vez mais indispensável – para superar o passado colonial do país e alimentar a sociedade, num futuro de crise climática.
O artigo é de Jean Marc von der Weid, publicado por Outras Palavras, 30-07-2024.
Jean Marc von der Weid é economista agrícola e ambientalista brasileiro. Foi presidente da UNE, entre 69/71. É fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA) e ex-membro do CONDRAF/MDA 2004/2016.
*Este é o primeiro de uma série de cinco texto que Outras Palavras publicará nas próximas semanas.
A questão agrária no Brasil parece ter saído das preocupações da sociedade, dos políticos e dos poderes executivos. Os conflitos continuam entre sem-terra e latifundiários ou grileiros em várias regiões, em particular no que se convencionou chamar de nova fronteira agrícola, na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal. Mas a tradicional violência dos ruralistas se faz sentir em todo o país, em qualquer lugar em que se manifestem os despossuídos. As incessantes pesquisas e denúncias da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mantêm o registro dos assassinatos de lideranças (camponeses, indígenas, quilombolas) além de técnicos ou elementos de apoio aos sem-terra. Também registram as expulsões de assentados e acampados, a destruição de lares e de cultivos, a destruição de infraestruturas sociais como escolas e postos de saúde. Apesar dos números não terem diminuído ao longo do tempo, a repercussão da violência foi ficando diluída no mundo urbano, onde outras formas e objetos de violência ocupam o noticiário.
A propaganda do agronegócio está cada dia mais sofisticada e profissional (“agro é tech, agro é pop, agro é tudo…”) e a imagem idílica projetada para o público urbano parece estar colando. Tudo vai bem no mundo idealizado das supercolheitadeiras operando nos imensos campos de monocultura. Nem a violência social nem a violência ambiental têm lugar neste mundo maravilhoso de faz de conta.
O preocupante, entretanto, é outra coisa: o fato de que as forças políticas de esquerda também parecem ter esquecido da questão agrária. Ou admitido que é uma luta perdida que é melhor não travar. Isto é esquecer o sentido histórico da luta pela terra e o papel fundamental que o campesinato terá em um mundo sustentável no futuro, se é que haverá lugar para o homem neste futuro.
É isto que pretendo discutir nesse breve artigo. O propósito é situar a questão agrária no tempo passado e recente, apontando para os problemas encontrados pelas forças progressistas e populares neste longo processo e, sobretudo, justificar o lugar da questão agrária no futuro.
A “descoberta” do Brasil, na virada do século XV para o XVI foi o ponto de partida para o longo processo de ocupação do imenso território até então habitado por tribos indígenas. Estudos e especulações variam na avaliação de quantos eram os indivíduos dos “povos originários”, algo entre 2 e 10 milhões de pessoas distribuídas em centenas de etnias com vários troncos idiomáticos e dialetos e culturas.
A relação destes povos com a natureza, na sua imensa diversidade, era de exploração dos recursos naturais da flora e da fauna e com uma incipiente agricultura baseada no desmatamento e queima da vegetação nativa, seguidos de longos pousios. Este sistema permitia uma recuperação da fertilidade natural dos solos e a recomposição, pelo menos parcial, da vegetação. Estudos dos ossos deixados por estes habitantes originários do Brasil mostram que prevalecia um padrão de saúde invejável pelos colonizadores portugueses e outros europeus.
A operação de conquista dos espanhóis os levou a dominar os povos mais civilizados e ricos das Américas, roubando imenso tesouro para a corte de Madri, saqueando dos Maias, Astecas e Incas. Em seguida esta colonização foi atrás da matéria prima, explorando minas de prata e de ouro.
Os recém-chegados ao Brasil não tinham a intenção de ficar. Estavam a caminho das “Índias” e à procura do comércio de especiarias (pimenta, noz moscada, cravo, canela, entre outras), muito valorizadas nos mercados europeus. Não havia aqui um tesouro a saquear, nem minas de metais ou pedras preciosas, só encontrados dois séculos mais tarde. A posse do novo território, assegurada pelo tratado de Tordesilhas, era uma ficção ignorada por outras potências navais europeias, como a França e a Holanda. Foram comerciantes destes países que iniciaram a exploração do pau-brasil, riqueza que acabou dando nome à terra conquistada. A madeira do pau-brasil era matéria prima para a produção de tinturas, uma indústria em expansão e sucesso na Europa. Ocupados nas Índias, os portugueses levaram algumas décadas para entrar neste mercado.
A exploração do pau-brasil não carecia de uma implantação colonial na “nova terra”. Os mercadores negociavam com as tribos do litoral o corte e transporte da madeira para pontos adequados para ser embarcada, fornecendo machados e facões para pagar trabalho. O impacto desta primeira investida do protocapitalismo europeu no Brasil foi impressionante. Em décadas a Mata Atlântica sofreu mais com esta exploração do que em séculos de coivaras dos indígenas.
Já em meados do primeiro século da ocupação os portugueses descobriram outra utilidade para seus domínios. O plantio de cana-de-açúcar, reproduzindo no Brasil a experiência adquirida nas ilhas do Atlântico, representa o primeiro passo na história para um empreendimento rural de tipo capitalista. Inicialmente ele foi operado por mão de obra nativa, mas esta só se submeteu a este regime de trabalho sob extrema violência. Foi a fase dos chamados “negros da terra”, escravizados nas plantações de cana e nos engenhos de açúcar. A mão de obra especializada, sobretudo nas operações agroindustriais, era de portugueses livres, mas tudo mais era resultado do trabalho escravo, inclusive a produção de alimentos, a criação de animais de transporte e o corte de madeira para alimentar as fornalhas dos engenhos.
Não demorou muito para que os “negros da terra” fossem substituídos pelos escravizados africanos, que já vinham sendo usados nos engenhos da Ilhas do Atlântico. Os indígenas resistiam resolutamente às operações de captura, fugiam na primeira oportunidade e morriam aos milhares devido à contaminação com vírus de doenças que eram desconhecidas nas Américas. Os sobreviventes das epidemias e das guerras com os brancos se embrenhavam nas matas a oeste, iniciando um movimento que se repetiu, com outros atores, ao longo de toda a história da ocupação do território nacional.
O negócio do tráfico de escravizados tornou-se tão importante quanto o próprio negócio do açúcar, enquanto a colonização pouco atraiu portugueses, apesar da enorme disponibilidade de terras. O mecanismo de acesso a estas terras, criado pela coroa portuguesa, não facilitava o acesso para quem não era fidalgo e com recursos para investimentos no que interessava: a produção de açúcar. A produção alimentar, inclusive para os escravizados, era feita nas terras das plantations de cana e pelos próprios negros em horas de folga ou em grupos especializados. O alimento foi, desde os primórdios da ocupação, aquele utilizado pelos indígenas, mais adaptado ao clima e aos solos do que os produtos de uso na Europa. A mandioca e o milho substituíram o trigo e o centeio e, junto com feijões e dezenas de legumes e frutas, constituíram a base alimentar de brancos e negros.
O espaço para uma economia de subsistência ou de produção de alimentos para o mercado interno era mínimo e suprido por brancos livres ocupando terras marginais próximas aos centros habitacionais e, no mais das vezes, também explorando trabalho escravo.
Por séculos esta matriz econômico-social prevaleceu nas diferentes regiões do Brasil, até que a crise da economia do açúcar, já no século XVIII, levou à diversificação da produção agrícola, muito embora sem mudar o foco nas exportações. Seguiram-se “ciclos econômicos”, do algodão, do tabaco, do cacau, da borracha, do couro e o mais importante, o do café. No meio destes, houve um “ciclo do ouro”, o único não agroexportador até o século XX. Em todos eles a mão de obra africana escravizada foi essencial. E em todo este tempo o número de brancos e de mulatos ou negros libertos foi inferior ao de negros escravizados, fazendo do Brasil o maior importador de trabalho forçado do mundo.
O território foi sendo ocupado paulatinamente, inicialmente com mais intensidade na região Sudeste e, de modo geral, na zona litorânea. A imensidão da floresta amazônica, a aridez da Caatinga, os embates militares com os castelhanos limitaram os avanços no norte, nordeste e sul do Brasil. No Sudeste os rios que corriam na direção oeste leste favoreciam as expedições, inicialmente voltadas para a preação (captura) de indígenas. A busca de ouro e esmeraldas motivou outros movimentos e ocupação do território, sobretudo em Minas Gerais.
A presença de uma agricultura familiar foi se dando de formas variadas. Talvez a primeira em significância tenha sido a dos quilombos. O número e tamanho destas unidades populacionais ainda está sendo desvendado, mas há indicadores de que foram centenas de milhares de pessoas, grande parte fugidos das plantações de cana ou das minas de ouro, além dos nascidos já em liberdade, nos casos de maior durabilidade dos assentamentos. Não há registros claros sobre o modo de produção nos quilombos, mas as tradições dos mais antigos que sobreviveram indicam que havia unidades familiares de produção e roças coletivas de interesse comunitário, em um todo integrado e subordinado aos chefes.
A agricultura em pequena escala foi se estabelecendo nos moldes já apontados acima, nos interstícios do sistema de plantation e subordinada a este, como provedora de alimentos. Junto aos núcleos urbanos, a demanda de alimentos de escravos e gentes livres criou um mercado livre, embora muitas vezes os produtores tenham sido mais microempresários capitalistas utilizando trabalho escravo.
Foram as crises dos ciclos agrários que permitiram a decomposição de muitas grandes propriedades e formação de uma agricultura familiar independente, inicialmente de subsistência e depois integrando-se aos mercados locais. O movimento migratório de europeus, para além dos portugueses, se acelera ao longo do século XIX, inclusive pelas seguidas restrições à importação de escravizados que foram tornando o custo desta mão de obra muito elevado e favoreceram a substituição pelos imigrantes. No final do século, a aceleração da crise agrária europeia traz milhões para as Américas, embora a maioria tenha se dirigido para os Estados Unidos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Reforma Agrária, futuro inescapável. Artigo de Jean Marc von der Weid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU