Estados Unidos, nação à deriva. Artigo de Marcello Neri

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17 Julho 2024

O mal-estar difuso que sacode o corpo da nação americana há décadas mostra-se cada vez mais uma doença crônica da qual nem se tenta curar. Para além dos episódios, por mais chamativos que possam ser (como o recente atentado a Trump durante um comício na Pensilvânia), os mecanismos sociais e políticos que presidem uma convivência digna do nome civilizacional falharam.

O artigo é de Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimanna News, 16-07-2024.

A responsabilidade de Trump foi a de ter introduzido sistematicamente na arquitetura da nação a completa desregulamentação da arena política, de um lado; e, de outro, de ter alimentado as muitas lacerações do corpo social para gerar um senso de militância em seu apoio. A estrutura da campanha presidencial de Biden foi substancialmente especular, sem conseguir abrir os horizontes de uma disputa toda jogada entre o mal da pós-democracia (encarnado por Trump) e a guarda do bem democrático (representada pela fragilidade pública a que Biden se expôs).

O bem e o mal se perseguiram ad libitum, sem contenção, abandonados ao gosto dos cidadãos e eleitores quanto à sua colocação no contexto da vida da nação americana: personificados à vontade por um ou outro dos dois contendores – como se fossem uma bola de pinball enlouquecida.

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Nisso, aproveitando a alma ancestral do país que se alimenta de força, do inimigo e da vitória – por último garantida pela mão divina que acompanha a nação messiânica da modernidade ocidental. As elites estadunidenses tentaram domesticar para si essa alma recôndita, mas não conseguiram exorcizá-la do corpo profundo da nação. Trump a libertou, dando novo curso à sua força reprimida.

Crucial e episódico ao mesmo tempo, como é de quem abre a caixa de Pandora. Sobre isso, um amigo americano me lembrava que o "problema" não é tanto Trump em si, mas o fato de que metade da população estadunidense sente a necessidade de viver sob um absolutismo monárquico – deixando para trás o sistema democrático como ordem de uma convivência complexa e conflituosa.

Segurança e redução da complexidade parecem ser os sentimentos que movem as escolhas políticas da massa eleitoral que apoia o retorno de Trump à presidência. Com um divisor de águas pouco considerado – o da Covid. Por mais mal gerida que tenha sido pelo então presidente americano, se os cidadãos olham para trás em busca da última vez em que se sentiram seguros, veem Trump nos salões da Casa Branca.

Até a escolha do vice-presidente, na pessoa do senador de Ohio J.D. Vance, baseia-se na emoção daquela parte da população americana que se sentiu encurralada pelos grandes movimentos sociais que orientaram o cenário estadunidense por mais de meio século. O "homem esquecido" é o homem branco da América rural, o alter ego racial de Obama.

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Há décadas que a Igreja Católica estadunidense escolheu ser parte do problema, em vez de lugar de uma possível elaboração pacífica. A escolha de cavalgar as guerras culturais, unida à incapacidade de encontrar um terreno comum interno às comunidades para onde convergir a disseminação das sensibilidades políticas e sociais dos católicos, tornou a Igreja americana cúmplice da deriva da nação.

Silêncios e assentimentos mais ou menos velados demais para poderem se propor agora como sujeito conciliador e mediador de um país onde agora o inimigo é literalmente o seu próximo. Sem compreender que essa postura partidária da Igreja nos Estados Unidos tem repercussões que envolvem o destino do mundo inteiro. Parafraseando Kierkegaard, pode-se dizer que o cristianismo é uma fé complexa e complicada – demais para a alma estadunidense neste momento. E assim, a Igreja Católica americana também passou a oferecer sua versão light: feita de fronteiras claramente identificáveis, marcadores identitários fortes, e uma colocação segura e nítida do bem e do mal.

Francisco é um papa que confessa uma fé católica à altura e capaz da complexidade, que refuga a totalização do julgamento, e que pede para ver no outro – quem quer que seja – um irmão e uma irmã. A aversão contra ele é a reação imunológica de um catolicismo que se provincializou e se perdeu em si mesmo. A tolice dos bispos americanos foi a de cavalgar essa aversão, sem buscar nenhum ponto de encontro – um indicativo de quanto também essa classe do país está imersa na deriva em direção à ingovernabilidade do caos (preferida às mediações e compromissos da democracia).

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A secessão americana do século XXI não apenas começou, mas provavelmente já atingiu um ponto sem retorno. Com uma grande diferença, que torna impróprios os muitos paralelismos propostos por muitos órgãos de informação, em relação à Guerra Civil do século XIX: lá era questão de estados, ou seja, um conflito que permanecia de alguma forma interno ao quadro institucional, hoje não é assim.

Hoje todos os limites institucionais falharam, e portanto os instrumentos de contenção, porque a secessão divide casas, bairros, cidades, escolas, universidades... o inimigo está ali, a poucos passos de você, anônimo – goza dos mesmos direitos que você, e isso é totalmente insuportável.

O mar nunca explorado do que serão os Estados Unidos na próxima década deixa o mundo órfão da ordem desenhada a partir do final da Segunda Guerra Mundial. Mas sobretudo o deixa sem nenhuma direção, à mercê dos instintos e das ocasiões do momento. No grande escuro, porém, até uma fraca luz pode se tornar uma ocasião de orientação. Por isso, a diplomacia vaticana é agora chamada, na sua impossibilidade de qualquer recurso à força, a assumir uma liderança inédita – para o bem dos povos e da terra.

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