10 Julho 2024
Quando questionado sobre o que não esquecerá dos seus seis anos como relator especial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente, David Boyd recorre às emoções de uma de suas viagens à América do Sul. “Em Quintero, encontrei uma jovem com dois filhos. Suas lágrimas corriam pelo rosto e me dizia: consegue imaginar enviar o seu filho para a escola e não saber se ele voltará para casa ou se você terá que ir buscá-lo no hospital?”, conta, referindo-se à crise da poluição nas comunas de Quintero e Puchuncaví, no Chile, devido à presença de empresas que emitem enxofre, arsênico e material particulado. “É inconcebível que as empresas continuem fazendo negócios diante de um sofrimento humano tão profundo”, disse.
A entrevista é de Michele Bertelli, publicada por El País, 08-07-2024. A tradução é do Cepat.
Professor associado de Direito e Políticas de Sustentabilidade, na Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, Boyd (1964, Londres) terminou o seu mandato na ONU no final de abril para retornar a uma vida acadêmica mais tranquila. Ele não esconde a dureza das situações que encontrou em suas viagens, registrando o que define como “uma emergência planetária sem precedentes, com a crise climática e a poluição que mata mais de 9 milhões de pessoas todos os anos”. Tem muita clareza sobre qual é a maior dificuldade para implementar as políticas necessárias.
“O principal obstáculo ao direito a um ambiente saudável e seguro é a economia global, que se baseia tanto na exploração das pessoas como da natureza. Até reformarmos esse sistema, será difícil, se não impossível, reconhecer não apenas o direito a um ambiente saudável, mas todo o espectro dos direitos humanos”, afirma Boyd, antes de negar que as suas palavras sejam “um ataque radical” ao modelo capitalista. “Um sistema onde as empresas podem terceirizar dezenas de bilhões de dólares em custos de saúde e meio ambiente às finanças públicas é um sistema que precisa de uma reforma fundamental”, disse em entrevista com América Futura [El País].
O que você entende exatamente por terceirizar esses custos?
O exemplo mais óbvio tem a ver com a indústria dos combustíveis fósseis. Quando o petróleo, o gás e o carvão são extraídos ou queimados, isto resulta em uma grave poluição do ar, que tem impactos adversos na saúde humana. Estes custos não são pagos pelas empresas, recaem sobre o público em geral. Além disso, sabemos que a sua extração e combustão são a causa predominante da crise climática.
Os custos econômicos da crise planetária são colossais. Os danos para a saúde e o meio ambiente provenientes da poluição atmosférica custam ao mundo 8,1 trilhões de dólares anuais. Um estudo do Instituto Potsdam sobre o Impacto Climático estimou que o impacto da mudança climática poderá custar 38 trilhões de dólares por ano até 2050.
Em seu último relatório, você destaca como os marcos normativos voluntários se mostraram inadequados para mudar o comportamento das empresas…
Os marcos normativos voluntários foram delineados para fracassar. Há décadas, sabemos que a melhor forma de alcançar o progresso ambiental não é através de abordagens voluntárias, mas, sim, através de uma regulamentação rigorosa. Vinte anos atrás, não havia vontade política para isto. Por isso, a ONU criou os princípios orientadores para as empresas e os direitos humanos. Agora, podemos olhar para trás e dizer que não se moveram o suficiente.
Em seu mandato, denunciou os procedimentos de arbitragem internacional, conhecidos como Resolução de Litígios entre Investidores e Estados (ISDS, na sigla em inglês), como um obstáculo à adoção de medidas ambientais. Neste caso, uma empresa estrangeira pode levar um país a julgamento perante um outro árbitro, em vez de um juiz nacional...
Estes casos fazem com que os governos tenham de pagar milhares e milhares de milhões de dólares às empresas de combustíveis fósseis. Bilhões que deveriam ser gastos para enfrentar a crise climática e não para encher os bolsos das empresas que ganham uma riqueza incrível ao criar essa mesma crise.
Mas os países não respeitam os acordos com as empresas…
O sistema foi desenvolvido nos anos 1960 e a intenção original era evitar a expropriação dos ativos estrangeiros em estados que tinham acabado de conquistar a independência. Contudo, o sistema saiu do controle. As decisões de arbitragem são interpretadas de forma muito ampla. Hoje, se um Governo impor um imposto às emissões de carbono das indústrias fósseis, há advogados de arbitragem que argumentarão que isto é uma violação dos direitos dos investidores estrangeiros.
Um dos casos mais chamativos ocorreu na Colômbia, onde a mineradora canadense Eco Oro Minerals quis construir uma grande mina de ouro a céu aberto, em um ecossistema muito frágil que constitui a fonte de água potável para milhões de colombianos. O Ministério do Meio Ambiente disse que não podiam. No entanto, essa empresa abriu um processo de arbitragem internacional e venceu.
Em seu relatório, só na América Latina, você identificou cerca de 327 processos.
A América Latina é um local muito popular para o investimento estrangeiro porque os Governos são geralmente estáveis e os padrões trabalhistas e ambientais são historicamente mais baixos. Contudo, estão começando a buscar melhorá-los e se deparam com uma onda de ações judiciais.
El Salvador foi processado pela mineradora canadense Pacific Rim/OceanaGold. A Costa Rica foi processada pela empresa estadunidense de petróleo e gás Harken Energy e por uma mineradora canadense, Infinito Gold. O Panamá enfrenta, agora, um processo da mineradora canadense First Quantum Minerals, que pede pelo menos 20 bilhões de dólares por danos. Estes são números astronômicos para países do sul global.
A América Latina está na vanguarda ao promover o reconhecimento do direito a um ambiente saudável e tribunais de diferentes países passam a tomar decisões progressistas.
O maior desafio enfrentado pela região está em como passar de uma economia extrativista para uma que satisfaça as aspirações do seu povo. Um dos acontecimentos mais interessantes é que os Governos começaram a utilizar o direito a um ambiente saudável como defesa em ações movidas por empresas. Assim, houve vários casos de Governos no México, no Quênia e em Uganda que promulgaram regulamentos que proíbem as sacolas de plástico.
No Peru, onde existia uma regulamentação que proibia a importação de veículos motorizados antigos, os tribunais aceitaram esse argumento. Na Argentina, onde havia uma empresa canadense que queria realizar um grande projeto mineiro em uma região glaciar protegida, o Governo disse que estava cumprindo com o seu dever. A Suprema Corte concordou. Esta também é uma forma poderosa em que o direito a um ambiente saudável pode nos ajudar a avançar na direção correta.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A poluição custa ao mundo 8,1 trilhões de dólares anuais”. Entrevista com David Boyd - Instituto Humanitas Unisinos - IHU