22 Junho 2024
"Foi o caso daquela joia que é o Trattato delle lacrime, traduzido pela Queriniana em 2004, pontuado por um subtítulo emblemático Fragilidade de Deus, fragilidade da alma. Claro, que chorem Jacó, Esaú ou José, os profetas, Jó e o Salmista é compreensível, mas por que também dos cílios de Deus escorrem lágrimas, especialmente quando se trata de sua criatura privilegiado, a humanidade? Também no novo ensaio intui-se uma emoção constante que floresce aquele par de verbos destinados a ser a fronteira da nossa vida, nascer e morrer, termos que constituem o subtítulo obrigatório do livro", escreve Gianfranco Ravasi, ex-prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 16-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nascimento e fim da vida. Catherine Chalier busca inspiração na tradição judaica para procurar um centro que designe o surgimento da unidade divina em cada ser humano.
Come un chiarore furtivo, de Catherine Charlier (Foto: Divulgação)
A imagem é terrível: “O berço balança sobre um abismo. A nossa existência é apenas um lampejo fugaz de luz entre duas eternidades de trevas." Assim se expressa, Nabokov, em seu autobiográfico Fala, memória, traduzido pela Mondadori em 1962. Bufalino fará eco a ele: “A vida: um vislumbre de luz que a morte, como um zíper, fecha num instante." A intuição, porém, já estava espiando nos Diários de Kafka quando ele descrevia a sua vida como a busca frenética por “uma faixa absoluta de felicidade", semelhante a uma lâmina de luz em um oceano de trevas.
Remete explicitamente a Nabokov desde o título Come un chiarore furtivo, Catherine Chalier, filósofa e escritora de grande originalidade, discípula de Lévinas, apaixonada estudiosa de Spinoza e Rosenzweig: esses caminhos de pesquisa já revelam sua exploração insone do pensamento judaico tanto moderno quanto do passado judaico. Depois de lecionar na conhecida universidade de Paris X-Nanterre, da capital francesa onde continua morando, faz sua voz ressoar com intensidade através de suas páginas muitas vezes fragrantes de intuições.
Foi o caso daquela joia que é o Trattato delle lacrime, traduzido pela Queriniana em 2004, pontuado por um subtítulo emblemático Fragilidade de Deus, fragilidade da alma. Claro, que chorem Jacó, Esaú ou José, os profetas, Jó e o Salmista é compreensível, mas por que também dos cílios de Deus escorrem lágrimas, especialmente quando se trata de sua criatura privilegiada, a humanidade? Também no novo ensaio intui-se uma emoção constante que floresce aquele par de verbos destinados a ser a fronteira da nossa vida, nascer e morrer, termos que constituem o subtítulo obrigatório do livro.
Diante dessas fronteiras se chocaram muitos pensadores e escritores, enquanto outros as atravessaram correndo o risco de penetrar horizontes tenebrosos ou ofuscantes. Como não pensar em Dante e milhares de outros, até Rilke, que considerava a fronteira final da morte como um começo que revela “a outra face da vida em relação àquela que temos diante de nós”? Ou o famoso ditado eliotiano “In my end is my beginning", que, no entanto, era desmentido em seu Fragment of an Agon: " Nascimento, e cópula e morte,/ tudo aqui, tudo aqui, tudo aqui,/ nascimento, e cópula e morte./ No fim das contas, isso é tudo ". Sem falar no implacável Caproni do Franco Cacciatore: “Muito se fala. / Também se diz, / que a morte é um transpasse. / (Claro: do sangue à pedra)”.
Voltemos, porém, a Chalier e às suas páginas que exigem uma leitura lenta, quase sorvida, tanto pela densidade do pensamento como pela frequente referência a um sistema literário-filosófico-teológico alternativo como é aquele da tradição judaica incessantemente ramificada também pela incandescência do tema cristalizado no citado binômio radical do nascimento e da morte. Além disso, a complexidade das suas páginas também é gerada pela marca d'água de leituras que partem de Platão, Plotino, Lucrécio e outros ensaios e chegam a Byron, Tolstoi, Proust, Rilke, Heidegger, Ricoeur, Lévinas, Jonas e tantos outros autores, chegando até Leonard Cohen com a música You Want It Darker…
Não é, portanto, possível propor uma síntese, mas é necessário encaminhar-se num itinerário que, infelizmente, o clima contemporâneo habituou-nos a evitar. Não por nada o nascimento e o fim da vida, quando são problemáticos, muitas vezes são condenados ao ostracismo ou cortados com um golpe de espada, em vez de ser desvendado pacientemente. O coração do sábio, capaz de desvendar também o enigma do título, é o c. 3, elencado sob o lema “Entre dois nadas, entre duas luzes”, facilmente solúvel segundo a antítese que marca a história do pensamento e que acima já esboçamos: do nada ao nada, ou da luz à luz.
Entre esses dois extremos, eis o interlúdio, a nossa existência histórica que tem como emblema evidente a finitude com seu cortejo de questionamentos não apenas teóricos, mas tatuados na nossa alma, aliás, na nossa própria pele. Chalier então recorre várias vezes à tradição judaica, como faz em quase todos os capítulos, incrustando-os de intuições que muitas vezes descompõem as nossas gramáticas racionais mais refinadas. É por esse caminho que se vai em busca de um “ponto interior”, centro íntimo e secreto que “designa o afloramento da unidade divina em cada ser humano”. Dentro de nós ocorre uma contração do infinito divino no nosso finito humano: é aquele famoso simsum, isto é, o retirar-se do Criador para deixar espaço para a criação, sem se desligar dela.
Em nós, portanto, permanece – oculta e implícita – a união com o Infinito que a filósofa tenta desenvolver num imponente esforço intelectual-simbólico espalhado como um leque. É uma jornada que gera vertigens e que também pode ser desconcertante, mas que resulta inédita em relação aos múltiplos sistemas desenvolvidos até agora, sem rejeitar ou ignorar as suas contribuições. Uma jornada que se move até da aliança pré-original com o bem que marca já a gênese da pessoa humana (tese cara ao seu mestre Lévinas) e prossegue até chegar a uma tríade final onde se atesta o balanço da nossa existência: reparação/conversão, ressurreição, responsabilidade.
É claro que nem tudo nesse mapa tão complexo é claro e convincente; a ancoragem no porto teológico-literário bíblico-judaico não acalma todas as tempestades que atormentam um mar temático tão vasto e misterioso, feito de muitas outras interrogações. No entanto, Catherine Chalier confirma à sua maneira a intuição poética de Wisława Szymborska: “Não há vida que pelo menos num instante não tenha sido imortal” (Sobre a morte sem exagero).