13 Junho 2024
"Mais pesado é o céu retrata atingidos pelas grandes obras hídricas no Brasil. Dois personagens vagam sem rumo. Partilham lembranças de uma cidade submersa por um açude que só beneficiou o 'agro'. Mas a esperança é difícil de ser afogada...", escreve Flávio José Rocha, doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, com com Pós-doutorado no Instituto de Energia e Ambiente da USP. Ator, escritor e multiplicador do Teatro do Oprimido desde o ano de 2005, o artigo é publicado por Outras Palavras, 11-06-2024.
O diretor Petrus Cariry traz para as telas dos cinemas os condenados pelas grandes obras hídricas no Brasil em seu novo filme Mais pesado é o céu, com estreia marcada para o dia 8 de agosto. O tema já foi abordado por outros diretores a exemplo de Eliane Caffé em Narradores de Javé (2003), mas diferente do filme de Caffé, que trata da luta da população para tentar impedir a inundação de uma cidade com a construção de uma grande represa, a história de Mais Pesado é o Céu mostra as vítimas do Açude Castanhão, no Ceará, que inundou o município de Jaguaribara ao represar o rio Jaguaribe naquele percurso. O diretor faz uma espécie de exumação de dois personagens fictícios, Antônio e Teresa, que foram expulsos do seu território e continuam sem rumo na vida décadas depois do trágico acontecimento.
Antônio, vivido por Matheus Nachtergaele, está de volta ao Ceará depois de uma longa temporada em São Paulo. Seu personagem lembra em alguns momentos Totonhim, protagonista do livro Essa Terra (Record, 2005), de Antônio Torres, que desiste do “sul maravilha” por nunca ter realmente se encontrado por lá. Antônio quer chegar à cidade de Parnaíba, no Piauí, para trabalhar como atravessador na venda de caranguejos, pois tem notícias de um amigo seu que conseguiu sucesso neste tipo de negócio. No trajeto ele retorna ao Açude Castanhão, local onde está a inundada a velha Jaquaribara. Já Teresa, interpretada por Ana Luiza Rios, vaga pelas estradas com destino à Fortaleza. Ao chegar no Castanhão, ela acaba encontrando um bebê em uma canoa. Teresa também foi uma vítima da inundação da cidade de Jaguaribara, como António, e não tem mais parentes na região.
O encontro nas margens do açude os une tanto quanto a vontade de cuidar daquele bebê abandonado. Na tentativa de apoiar Teresa a encontrar um lugar para descansar, Antônio descobre que sequer consegue lembrar onde os parentes moram naquelas redondezas. É como se o casal Fabiano e Sinhá Vitória, do livro Vidas Secas (Record, 1986), estivesse retornando para o sertão de onde fugiram para não morrer de fome e de sede por causa da estiagem, mas descobrissem que mesmo quando há muita água, eles continuam excluídos da abundância. São retirantes às avessas, mas com a mesma dor do abandono pelos poderes públicos. Águas podem mover moinhos, mas as estruturas da desigualdade continuam irremovíveis para os dois.
O agronegócio percebeu a constância climática e a aproximação geográfica que o Nordeste tem com o norte global como uma vantagem na produção de fruticultura irrigada para a exportação. Se faltar a água, que se construam grandes açudes ou canais para desviar rios. Basta expulsar as famílias que estão no caminho e pronto. Afinal, são apenas mais alguns seres descartáveis no jogo dos interesses econômicos internacionais.
A memória do que foram e do que foi o lugar onde cresceram guia Teresa e Antônio por todo o filme. Ela, a memória, nunca será afogada pelas águas que foram prometidas como a salvação e o desenvolvimento, mas que na verdade tornou os dois personagens principais do filme apenas cadáveres vivos, como um deles chega a dizer em um dos diálogos. Teresa não conta para Antônio que aquele bebê não é seu filho. Talvez porque veja nele uma esperança. Mas a esperança também precisa ser alimentada como os bebês e para isso Teresa, que recusa uma vaga para limpar os banheiros de um posto de gasolina por não aceitar receber apenas 300 reais por mês, se prostitui, enquanto Antônio pede esmolas na beira do asfalto cearense. As águas que prometiam riqueza, os colocou em uma situação de miséria.
As imagens do Castanhão surgem na tela muitas vezes para nos lembrar que aquela miséria tem culpados. A obra Açude do Castanhão foi iniciado no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, aquele que prometeu colocar o Brasil no palco da globalização e fez o país submergir no desemprego e na desesperança. No governo do estado do Ceará estava o seu aliado Tasso Jereissati, que emergiu ao poder nos anos oitenta com a promessa de encerrar o ciclo das famílias tradicionais do Ceará como mandatárias. A relação de Jereissati com as água brasileiras é bem turva. Jereissati foi o relator da Lei 14.026, de 15 de julho de 2020 (Brasil, 2020), conhecida como Novo Marco Legal do Saneamento, uma lei que pressiona pela privatização da água no Brasil. Ele também foi o autor do Projeto de Lei do Senado n° 495, de 2017 (Senado Federal, 2017), que criava o Mercado de Águas em nosso país, mas foi arquivado no fim da última legislatura.
Antônio e Teresa são fantasmas que retornam para assombrar este modelo que alardeia o desenvolvimento sem relevar que esta palavra na verdade significa o não envolvimento com o lugar, como tão bem lembra o geógrafo Carlos Walter Porto-Gonçalves (2004, p. 39), para quem “Assim, des-envolver é tirar o envolvimento (a autonomia) que cada cultura e cada povo mantém com o seu espaço, com seu território; é subverter o modo como cada povo mantém suas próprias relações de homens (e mulheres) entre si e destas com a natureza.” Ao perderem o envolvimento com o seu lugar de origem e as suas raízes, Teresa e Antônio vagam pelo mundo procurando encontrar o que nunca mais terão.
Uma das cenas mais tocantes é um diálogo entre os dois em que Teresa diz que o momento mais triste para ela antes da inundação foi a missa de despedida da cidade, quando as pessoas escreveram palavras em cartolinas e as depositaram no altar. Difícil imaginar uma missa para uma cidade que vai desaparecer para sempre. Com ela se vão as árvores, as praças, as casas, mas também os namoros, as festas, a infância, a juventude e todas as celebrações da vida feitas naquele lugar. Há coisas que jamais conseguirão ser pagas monetariamente e é isso que os defensores do neoliberalismo não conseguem entender.
O filme ainda conta com a participação de Buda Lira como Zé Caminhoneiro, um motorista de caminhão que carrega bois e, em troca de uma carona pedida por Antônio, pede que ele limpe os dejetos do gado na carroceria. Também presentes estão Danny Barbosa como Letícia, a balconista do bar do posto de gasolina que está sempre disposta a ajudar Teresa a conseguir um emprego ou partilhar um cigarro, e Silvia Buarque interpretando outra personagem chamada Letícia, uma carioca abandonada pelo marido que decide ficar no sertão tomando conta do seu pequeno negócio. É ela quem sugere aos dois se alojarem em uma casa abandonada e consegue leite para o bebê. São os oprimidos apoiando uns aos outros da maneira como podem. Só há uma coisa que os une: o sofrimento. Infelizmente é ele que também os separa, como mostra o desfecho final do filme.
BRASIL. Lei Nº 14.026, de 15 de julho de 2020. Novo Marco Legal do Saneamento. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l14026.htm
PORTO-GONÇAVES, Walter Carlos. O desafio ambiental. Rio de Janeiro: Record. 2004.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record. 1986.
SENADO FEDERAL. Projeto de Lei do Senado n° 495. Institui o Mercado de Água. 2017. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/131906
TORRES, Antônio. Essa terra. 20. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Os condenados da água. Artigo de Flávio José Rocha - Instituto Humanitas Unisinos - IHU