23 Mai 2024
Na primeira metade do século XX, a literatura, assim como a filosofia, sofreu um colapso em sua confiança na linguagem. Isso sinalizou, entre outras coisas, uma ruptura na relação entre a palavra e o mundo – no poder da linguagem de falar à essência das coisas, de nomear e de revelar.
O comentário é de Jared Marcel Pollen, publicado em Commonweal, 17-05-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em “A estética do silêncio” (1967), Susan Sontag salienta que, a esse respeito, a arte moderna “herdou o problema da linguagem do discurso religioso”. A partir de então, foram os artistas que assumiram o que outrora era o reduto dos místicos – a busca de uma expressão não corrompida.
Como exemplos, poderíamos citar Cage, Beckett e Wittgenstein (que dizia que a filosofia devia ser praticada como uma arte). Era uma tarefa que levaria a linguagem ao limite e tentaria muitos a abandoná-la completamente.
Não se pode olhar para esse fenômeno sem levar em consideração Clarice Lispector, a qual talvez seja o exemplo supremo disso. Toda a obra de Lispector está preocupada com o problema da linguagem.
De fato, ao lê-la, às vezes temos a sensação de que ela é menos uma romancista do que uma mística, para a qual o romance é uma arena metafísica para confrontos encenados com a linguagem.
Não é à toa que Benjamin Moser, biógrafo de Lispector em inglês, diz que ela “tem sido comparada menos frequentemente a outros escritores do que a místicos e santos”. Em todos seus romances, vemos um esforço incansável para romper com a linguagem e entrar na verdadeira percepção, a fim de gerar um tipo de escrita que possa quebrar o vidro que se interpõe entre nós e a realidade.
Isso está presente em seu primeiro romance, “Perto do coração selvagem” (1943), mas pode ser visto de forma mais nítida em suas obras posteriores e experimentais, “Água viva” (1973) e “Um sopro de vida” (1978).
O livro que faz a ponte entre esses períodos é “A maça no escuro”, agora disponível em uma tradução de Moser para o inglês. Como uma inversão da narrativa da criação do Gênesis, o romance é uma alegoria herética, que aparentemente mina toda a arquitetura da moral judaico-cristã.
[O livro em português encontra-se disponível para download gratuito aqui.]
“Foi um livro fascinante de escrever”, escreveu ela a uma amiga depois de terminar o manuscrito, mas reconhecia que foi “também um grande sofrimento”. Lispector escreveu o romance enquanto morava em Washington, onde seu marido, um diplomata, trabalhou por mais de uma década. Concluído em 1956, “A maçã no escuro” caiu no limbo por vários anos e acabou sendo publicado em 1961, após um silêncio de 12 anos e de dois romances criticamente malsucedidos, “O candelabro” (1946) e “A cidade sitiada” (1949).
Surpreendentemente, foi um sucesso comercial e de crítica, depois do qual Clarice (com o passar do tempo, ela seria chamada simplesmente por seu primeiro nome) se tornou um fenômeno literário no Brasil ou, nas palavras de um jornalista, “um monstro sagrado”.
O romance abre com um símbolo da cultura estadunidense de meados do século: o automóvel. Do lado de fora de um quarto de hotel, um Ford preto fica parado durante a noite, enquanto Martim, o protagonista, nasce no vazio. Na escuridão, ele é uma nulidade – “não mais do que um pensamento” – ascendendo à consciência. No centro de um “grande espaço vazio e inexpressivo”, ele ouve o som de seu próprio nome, um momento de nascimento da autoconsciência: “Assim, pois, eu”. Grunhindo, sem palavras, sendo quase nada além de “indistintamente ele mesmo”, Martim metamorfoseia-se em árvore, rato, cavalo e depois homem, até perceber: “Hoje deve ser domingo”. É o Dia do Senhor, o primeiro dia do homem, o dia da ressurreição.
Um crime ocorreu, mas qual exatamente não sabemos até o fim. O crime já está tão no passado que começou a assumir a natureza de uma abstração (“seu crime agora parecia mais com um pecado de espírito, apenas”). Como em Kafka, parece ser o pecado da existência, o crime de ter nascido. É “essa coisa tão sem nome que lhe sucedera”. É um crime primordial, depois do qual todos os outros crimes são redundantes. Martim está “orgulhoso” de si mesmo ao observar “o mundo arrasado… o mundo desmontado por um crime”. Um mundo que ele pode então reconstruir “em seus próprios termos”.
Martim é mais parecido com o Lúcifer de Milton do que com Adão. Ele é um cocriador no abismo, cuja revolta ocasiona a autodescoberta; é uma transgressão que é seu próprio tipo de transcendência. Mas o autoconhecimento de Martim é, na verdade, uma rejeição do conhecimento – isto é, o conhecimento do bem e do mal.
Tal como na história do Éden, o crime é o evento inaugural, mas a paisagem amoral do romance rejeita a noção de que o erro é sinônimo de mal (“O mal? Por que usar essa palavra ruim?” pensa Martim).
Desavergonhado, ele reflete que, na verdade, “fora uma bênção ele ter errado”. Só então ele será capaz de criar a si mesmo “à sua própria imagem”. Aqui, o crime é uma espécie de rito de purificação. E, ao recusar o julgamento pelo seu ato, Martim posiciona-se além do bem e do mal – um auto-autorizador selvagem, um transvalorador nietzschiano.
Martim afirma ser engenheiro, um homem da razão, um construtor de mundos (mais tarde, ficamos sabendo que, na verdade, ele é um estatístico). Em todo o caso, essa identidade é abandonada à medida que ele cresce e adota uma fisicalidade nova e selvagem. Quando renasce, ele está no mesmo nível do restante da criação, existindo na mesma frequência das árvores (“O silêncio das plantas estava no seu próprio diapasão”). Ele evita o domínio dado a Adão sobre as plantas e os animais, e recusa continuamente a tentação de “cair na profundidade”. É um estado “ininteligível mas harmonioso” que ele deseja preservar contra o avanço da razão.
Ele se senta em uma rocha e observa o mundo nascer, deleitando-se em sua própria falta de sentido, “gozando o vasto vazio de si mesmo”.
As primeiras 50 páginas do romance são conduzidas nesse “estado”. Há pouco diálogo ou ação à medida que a narrativa (assim como os contornos da consciência embrionária de Martim) vai ganhando vértebras.
Fugindo para o deserto, ele chega a uma fazenda onde é contratado por duas mulheres, Vitória e Ermelinda, para cultivar a terra. Há também uma terceira mulher anônima, conhecida apenas como “mulata”, que Martim pega “como um touro” a fim de recuperar o conhecimento do sexo oposto.
A única outra personagem que aparece na fazenda é “o professor”, um clérigo hipócrita que mantém as mulheres da casa sob sua influência e cuja pregação efusiva sintetiza o abuso das palavras – tudo o que Martim, no seu silêncio satisfeito, despreza.
À medida que Martim assume a tarefa de Adão, ele descobre que a realidade já traz as marcas de gênero da linguagem (“o mundo era masculino e feminino”). Ele está frustrado por “ter que transformar o crescimento do trigo em algarismos”. Como sabemos pelas tabuletas cuneiformes, esse foi o primeiro uso da escrita – não a narração de histórias ou a transmissão de conhecimento ou a aprendizagem, mas a simples manutenção de registros. Mas mesmo isso parece impossível para Martim. Ele descobre que é incapaz de “organizar sua alma em linguagem”. Pois a linguagem, assim como nós, está decaída. O ato mais simples da linguagem é nomear as coisas, e vemos que, desde a primeira palavra, os nomes que damos às coisas são inadequados para as próprias coisas. Martim teme até que atribuir nomes aos objetos contamine o mundo.
Em um campo alegórico em que tudo é ao mesmo tempo si mesmo e alguma outra coisa, todas as coisas parecem assumir um simbolismo ressonante. Martim anseia por uma realidade puramente simbólica, em que o símbolo seja a própria coisa: “Eu quis o símbolo porque o símbolo é a verdadeira realidade e nossa vida é que é simbólica ao símbolo”.
A busca por uma linguagem verdadeiramente simbólica é a busca pela essência das essências, aquilo que o místico alemão do século XVII Jakob Böhme chamava de “a Linguagem da Natureza” (Natursprache), na qual “cada coisa fala de suas propriedades particulares”. Essa, diz Böhme, era a língua que Adão falava no jardim, um “discurso sensual” que nós perdemos com a queda e que nunca poderemos recuperar: “Hoje, enquanto os pássaros do céu e os animais das florestas ainda podem, cada um de acordo com suas próprias qualidades, entender-se, nenhum de nós entende mais a fala sensual.” Mas aqui, o resultado da queda é alterado. Através de seu crime e de seu renascimento, Martim perde “a linguagem dos outros” e recupera suas próprias impressões “harmoniosas”.
Como um macaco escrevendo com letra cursiva no chão, Martim finalmente rabisca como a “coisa número 1”: “Aquilo”. É um referente imaculado, aparentemente contendo tudo e qualquer coisa (“A frase ainda úmida tinha a graça de uma verdade”). Ele não chega a acrescentar uma segunda palavra, pois já há muitas, e abandona totalmente a tarefa, pois nada, nem mesmo “Aquilo”, parece dizível: “Tudo o que lhe parecera pronto a ser dito evaporara-se, agora que queria dizê-lo”. A palavra é a fonte da criação, mas corrompe e obstrui inerentemente essa criação: “Tão desleal era a potência da mais simples palavra sobre o mais vasto dos pensamentos”.
Isso poderia facilmente servir como uma descrição da vida literária de Lispector. “O que atrapalha a escrita é ter de usar palavras”, escreveu ela certa vez. Mas seria errado entender isso como mera frustração em relação ao inefável, ao anseio de expressar aquilo que sentimos que não temos o poder de expressar. A preocupação aqui é com a mancha que as palavras deixam na percepção, e o desejo é o de uma percepção para além das palavras (“Ver é esquecer o nome daquilo que se vê”, como dizia Paul Valéry).
Penso que a linguagem que Lispector tentou encontrar em sua escrita é algo que se assemelha ao discurso sensual de Böhme, uma verdadeira consonância, em que um “eu” não surge de fora, mas é antes parte de uma substância única e universal.
Pode-se também entender isso como uma busca para encontrar o que Martim a certa altura chama de “essa coisa tão sem nome”. A tarefa do místico, lembra-nos Sontag em “A estética do silêncio”, “deve terminar em uma via negativa, em uma teologia da ausência de Deus, em um desejo pela nuvem do desconhecimento para além do conhecimento e pelo silêncio para além do discurso”.
O curso do desenvolvimento de Lispector, desde os primeiros romances até às últimas obras experimentais, é exatamente esse movimento rumo ao que está além do discurso. “Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco”, escreveu ela certa vez, “cheio do maior silêncio”.
Lispector descreveu a escrita como “uma maldição, mas uma maldição que salva”. A inveja do silêncio está fortemente presente em sua obra. Mas, ao contrário de Rimbaud ou do jovem Wittgenstein, ela não era uma renunciante, nem mesmo, como Beckett, uma grande negadora.
Em vez disso, o que vemos em sua obra é uma linguagem que tenta transcender a si mesmo por meio de um prolongado desarranjo e desarticulação. Esse também foi o caminho dos surrealistas, a “desorganização ilimitada e sistematizada de todos os sentidos”, como disse Rimbaud.
“A maçã no escuro” deleita-se generosamente com seu próprio desconhecimento, com sua prosa semelhante a um koan, com o simbolismo contundente de suas passagens abstratas que, apesar de seu carácter declaratório, nunca parecem chegar a nada de concreto.
De fato, a própria Lispector parecia não compreender completamente o romance que estava escrevendo: “Eu quero dizer uma coisa e não sei ainda bem ao certo”, confessou ela, enquanto trabalhava nele. O romance aparentemente passou por 11 rascunhos, pois, como ela disse, “copiando eu vou me entendendo”. Assim como os escribas monásticos copiavam os salmos até internalizá-los, assim também Martim procura “copiar para a realidade o ser que ele era”.
A inversão do relato bíblico da criação no romance é bastante clara: o homem cria a si mesmo e depois cria Deus à sua própria imagem. Mas ele é muito mais heterodoxo do que isso. Ele não só oferece uma nova definição do que significa ser “decaído”, como também rejeita claramente a noção cristã da Palavra. Isto é, a Palavra como fonte de criação, redenção e salvação.
Nas páginas finais do romance, Martim alegra-se com esta rejeição:
“Martim já não pedia mais o nome das coisas. Bastava-lhe reconhecê-las no escuro. E rejubilar-se, desajeitado. E depois? Depois, quando saísse para a claridade, veria as coisas pressentidas com a mão, e veria essas coisas com seus falsos nomes.”
O romance de Lispector sugere que somente quando a Palavra é rejeitada é que a maçã pode ser agarrada, sem vergonha, na escuridão, onde conhecemos as coisas como elas realmente são.
“A maçã no escuro” foi descrito como um romance alegórico, mas talvez isso seja simples demais. Assim como Kafka e Beckett, Lispector aborda o alegórico, mas nos priva das interpretações fáceis a que a alegoria costuma se prestar. Se estiver falando de outra coisa, não podemos ter certeza do quê. Talvez esteja falando da ausência do próprio Deus, ou talvez daquilo que se esconde à nossa vista, por trás do brilho velado que Martim considera como nada mais do que “a outra face do silêncio”.
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Clarice Lispector e o outro lado do silêncio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU