19 Abril 2024
Estudo mostra que restam menos de 20% de Floresta Amazônica na Bacia do Rio Pindaré (MA) e que essa pequena porção conservada se encontra completamente dentro de Terras Indígenas.
A reportagem é de Cassio Bezerra, publicada por ((o))eco, 16-04-2024.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Pindaré (CBH – Pindaré) reuniu-se às vésperas do Dia Mundial da Água, 22 de março passado, sem motivos para comemorar. O encontro foi realizado em Viana, cidade da Baixada Maranhense, a 217 quilômetros da capital, São Luís, em meio à notícia de contaminação das águas do Rio Pindaré por níveis de fósforo acima do recomendado pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que é de 0,1 mg por litro. Além disso, durante a reunião, o doutor Walter Luis Muedas Yauri, professor do Curso de Oceanografia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e membro do CBH – Pindaré, deu detalhes de estudo no qual analisa o desmatamento da Floresta Amazônica no Vale do Pindaré ao longo de 30 anos e as consequências desastrosas desse processo.
A notícia de contaminação das águas do Pindaré vem do estudo “Aspectos Qualitativos da Água do Rio Pindaré na Amazônia Maranhense”, publicado em 2023 por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA).
Para além da contaminação da água, e da pressão fundiária sobre territórios indígenas, outros danos ao Rio Pindaré e às cidades e populações ribeirinhas estão destacados no estudo ainda inédito do doutor Walter Luis Muedas Yauri, resultado da sua pesquisa de pós-doutorado na Wageningen University, da Holanda. O trabalho, intitulado “O Desmatamento da Floresta Amazônica no Vale do Pindaré”, está em processo de revisão para publicação em uma revista científica. O professor Muedas, que também é representante da UFMA no Comitê, apresentou detalhes da pesquisa durante a reunião, no dia 21 de março.
A partir da análise de imagens do satélite LandSat-5, da Nasa, o professor Muedas observou toda a evolução do desmatamento da floresta na região da Bacia do Rio Pindaré. As primeiras fotografias analisadas datam de 1984. Uma das conclusões do estudo é que restam menos 20% da floresta inicialmente observada, que está dividida em blocos isolados e localizados dentro das Terras Indígenas Alto Turiaçu, Awá, Caru, Rio Pindaré, Araribóia, Governador e Krikati.
“Temos menos de 20% de floresta nativa e as áreas que mais têm floresta são as áreas indígenas, porque vocês sabem que os indígenas protegem essas áreas com suas vidas. São as áreas que estão mais preservadas, digamos assim, graças aos territórios indígenas que existem dentro da Bacia do Rio Pindaré. Esse fato poderia se generalizar também às demais áreas indígenas da Amazônia, que são as áreas preservadas. Então, quando você pega os restos de floresta nas últimas fotografias tiradas pelo satélite e faz uma sobreposição de imagens, você vai ver que as manchas de floresta coincidem com as áreas de Terras Indígenas”, explicou Muedas.
Cidade de Monção na margem ao fundo. A margem em primeiro plano fica no município de Pindaré-Mirim. Águas do Rio Pindaré durante a estiagem, em setembro de 2023. (Foto: Cássio Bezerra | Acervo ISPN)
Cidade de Pindaré-Mirim na margem ao fundo. Águas do Rio Pindaré durante a cheia, em abril de 2024. (Foto: Cássio Bezerra | Acervo ISPN)
A reunião do CBH Pindaré foi realizada no Fórum de Justiça de Viana, que é um dos mais de 30 municípios que a Bacia do Rio Pindaré abrange. Com seu curso de aproximadamente 600 km, o Rio Pindaré é fundamental para uma população de centenas de milhares de pessoas no Maranhão. E, apesar disso, como reforça o estudo do professor Muedas, apenas os povos indígenas, efetivamente, conservam a floresta que mantém o Rio Pindaré vivo.
Na prática, os indígenas fazem a proteção ativa e sistemática da floresta. Na Terra Indígena Caru, em Bom Jardim, um grupo de 40 homens Guajajara faz o monitoramento do território para combater desde o desmatamento feito por madeireiros e invasores, a caça e a pesca predatória, até mesmo o cultivo de maconha por traficantes. Esse grupo, chamado Guardiões da Floresta, existe desde 2013. “Nós estamos há 11 anos nessa organização, dos Guardiões, mas a luta já vem há muito tempo. Sempre fizemos esse trabalho de proteger, de lutar contra o desmatamento”, afirma Cláudio José da Silva, um dos fundadores e coordenador geral dos Guardiões da Floresta da Terra Caru.
Os Guardiões realizam expedições para verificar a presença de invasores ou de atividades ilícitas dentro do território indígena e, se necessário, acionam os órgãos competentes. “O nosso trabalho é de monitoramento e vigilância. Um trabalho de ver os ilícitos que estão acontecendo dentro do território e colocar num levantamento as regiões onde isso mais acontece. Dependendo da gravidade, a gente faz um relatório e envia para Polícia Federal, para a Funai, Ibama”, explica Cláudio da Silva. Ele avalia que alguns problemas ainda persistem: principalmente, a ação de caçadores e pescadores. Mas, segundo ele, o desmatamento da floresta diminuiu drasticamente e as invasões praticamente cessaram, depois do trabalho dos Guardiões.
Na Terra Rio Pindaré, também em Bom Jardim, onde há outro grupo de Guardiões da Floresta, com 24 homens Guajajara, os resultados são ainda mais evidentes com a recuperação da fauna e da flora. Márcio Brito Silva Guajajara, da Aldeia Novo Planeta, coordenador de equipe dos Guardiões, enumera vários pontos positivos do trabalho de monitoramento do território e inibição de invasores, caçadores e pescadores.
“A gente vê o aumento populacional das aves. O aumento também das caças que têm se multiplicado. Os lagos também não têm secado, como antigamente. Até uns três anos atrás, eles secavam devido ao desmatamento em volta, ao fogo, às queimadas. Isso a gente está vendo na Rio Pindaré. Recentemente, a gente fez um diagnóstico florestal e viu também que a mata está voltando. Isso é resultado da vigilância, do monitoramento do nosso território”, avalia Márcio Guajajara.
Ação dos Guardiões da Floresta na Aldeia Januária, Terra Indígena Rio Pindaré, em Bom Jardim, para retirada de redes de pesca ilegal. Com apoio da Funai e da Força Nacional, a ação foi realizada durante o período da piracema, em 11 de março de 2024. (Foto: Cássio Bezerra | Acervo ISPN)
Contudo, o Rio Pindaré continua dando sinais de que não está bem. “A gente observa que há várias mudanças no Rio Pindaré, inclusive, que alguns tipos de peixes estão ausentes por conta de todo esse desmatamento no entorno [fora das Terras Indígenas] e dos empreendimentos que contribuem para a devastação ao redor e dentro do próprio rio”, afirma Taynara Caragiu Guajajara, da Aldeia Januária, Terra Indígena Rio Pindaré, representante da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (COAPIMA) no CBH – Pindaré.
O professor Walter Muedas alerta que esses blocos remanescentes de floresta conservada nas Terras Indígenas precisam ser reconectados ou continuarão ameaçados. Ele defende, ainda, a criação de corredores ecológicos na Bacia Hidrográfica para interligar o que resta da vegetação nativa. Em sua pesquisa, o professor analisou como se deu o processo de desmatamento e suas consequências para o meio ambiente e para a população da Bacia do Rio Pindaré. “Dentro desse âmbito geográfico enorme [a Bacia do Rio Pindaré], se determina quais são as macro influências que trazem como consequência o desmatamento ao longo de 30 anos”, explica.
A principal origem do desmatamento desde 1984, ou a principal macro influência para o desmatamento, conforme o professor Muedas, foi a abertura da Estrada de Ferro Carajás e, em seguida, a alimentação dos altos fornos das indústrias siderúrgicas de ferro gusa. Principal matéria-prima do aço, o ferro gusa é o ferro fundido que resulta do beneficiamento do minério de ferro. Para a produção do ferro gusa são necessárias grandes quantidades de carvão e ar quente.
No processo de desmatamento, a madeira de lei era retirada da floresta e vendida, enquanto a mata secundária virava carvão para alimentar as guseiras. A indústria siderúrgica chegou à Bacia do Pindaré na década de 80, no município de Açailândia, para transformar o minério de ferro vindo do Pará em ferro gusa, o qual sempre foi exportado para produção de aço em outros países.
Depois de devastada, parte da floresta foi substituída pelo pasto e pelo gado. Hoje, o Maranhão é grande produtor de gado, mas a substituição da vegetação amazônica pela atividade pecuária trouxe consequências desastrosas sobre as cidades e as populações ribeirinhas. Esse processo causou a lixiviação do solo, que é a retirada de nutrientes pela ação da água em áreas sem cobertura vegetal. O carreamento desse material orgânico e fértil provocou o assoreamento do Rio Pindaré, que perdeu profundidade e se tornou mais largo. Como consequência, o rio deixou de ser navegável e as cheias nas estações chuvosas passaram a provocar inundações nas cidades.
Rio Pindaré, no município de Pindaré-mirim, nas proximidades do assentamento Novo Pindaré. Registro da estiagem, em setembro de 2023. (Foto: Cássio Bezerra | Acervo ISPN)
A salinização de mananciais de água doce é outra consequência desse processo de desmatamento da floresta e assessoramento do Pindaré, que desemboca no Oceano Atlântico, no Golfão Maranhense. Conforme Muedas, as macro marés, típicas do Golfão, com mais de seis metros de amplitude, passaram a introduzir mais água salgada rio adentro, o que afetou, por exemplo, os lagos de Viana, onde o cultivo tradicional de arroz ficou prejudicado.
As guseiras continuaram funcionando e, onde a floresta não foi substituída por pasto e gado, foram cultivadas plantações de eucalipto para alimentar de carvão as siderúrgicas. Espécie exótica, o eucalipto também causa danos ao Bioma Amazônico por ser completamente desconhecido da fauna nativa. “O eucalipto é uma planta originária da Austrália e ela é totalmente desconhecida pela fauna local, de maneira que, se você for visitar uma floresta de eucaliptos, existe um silêncio, um deserto; sem animais, sem pássaros, nem sequer insetos. Daí a necessidade de fazermos programas dentro do Comitê da Bacia do Pindaré para o reflorestamento dessas áreas. Sem a floresta, o rio não sobreviverá”.
Plantação de Eucalipto no município de Buriticupu, na Região da Bacia do Rio Pindaré, em novembro de 2023. (Foto: Cássio Bezerra | Acervo ISPN)
Outra conclusão do estudo do professor Muedas é relativa à ligação da Bacia do Rio Pindaré com a Bacia do Rio Mearim, outro importante rio maranhense. No site do Núcleo Geoambiental da Universidade Estadual do Maranhão (NUGEO/UEMA), não consta a Bacia Hidrográfica do Pindaré. O site do NUGEO mostra a Bacia do Rio Mearim, a maior bacia hidrográfica do Estado, e o Rio Pindaré aparece como afluente do Mearim. O professor Muedas discorda dessa configuração: “Com esse trabalho, a gente viu que, realmente, se tratam de duas bacias independentes, que apenas se unem no seu trecho final, na saída para a Baía de São Marcos”, afirma.
O presidente do CBH – Pindaré, Nonato Moraes, informou que o Comitê iniciou um processo de desmembramento da Bacia do Pindaré da Bacia do Mearim, em termos burocráticos. “Nós procuramos a UEMA e vamos à Assembleia Legislativa para conversar com a Comissão de Meio Ambiente e cumprir tudo que for necessário para que a Bacia do Pindaré seja reconhecida como independente da Bacia do Mearim”, afirmou.
Os Comitês de Bacias Hidrográficas são órgãos colegiados consultivos e deliberativos empenhados na construção de políticas públicas para os recursos hídricos e que possuem também a função de garantir a participação da sociedade civil organizada nesse processo. O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) integra o CBH – Pindaré.
“O acompanhamento do ISPN nas discussões da Bacia Hidrográfica do Pindaré vem ocorrendo desde 2019, quando, no planejamento estratégico, elegemos como prioridade essa temática, dada a importância dessa Bacia para o Maranhão e para os povos e comunidades tradicionais com as quais nos relacionamos. Desde então, temos acompanhado as discussões e agendas, bem como, estimulado e apoiado a participação dos povos indígenas da região do vale do Pindaré”, explica a coordenadora do Programa Maranhão do ISPN, Ruthiane Pereira.
O ISPN executa o Plano Básico Ambiental do Componente Indígena Awá e Guajajara (PBA – CI) da duplicação da Estrada de Ferro Carajás (EFC), empreendimento da mineradora Vale. O cumprimento do PBA-CI é uma obrigação da Vale cujo objetivo é mitigar impactos dentre os que o professor Muedas cita em seu estudo. Isso ocorre por meio do planejamento de ações para o gerenciamento das questões ambientais relativas à EFC. A preparação e execução do PBA-CI também é condição para a emissão da licença de instalação e operação do empreendimento.
Entre os subprogramas previstos no PBA-CI da Ferrovia Carajás está o de Proteção Territorial das Terras Indígenas Alto Turiaçu, Awá, Caru e Rio Pindaré que, desde 2016, ajuda as comunidades indígenas a encontrar soluções para monitorar e preservar os limites de seus territórios.
O subprograma atua com o protagonismo dos indígenas. Apoia, por exemplo, o grupo Guardiões da Floresta no planejamento de ações nas áreas mais pressionadas por invasores, caçadores, pescadores, fazendeiros, etc. Nas Terras Indígenas Caru e Rio Pindaré, também apoia as Campanhas de Sensibilização do Entorno, atividade idealizada pelo grupo de mulheres Guerreiras da Floresta, similar aos Guardiões, para conscientizar comunidades situadas nos limites da Terra Indígena. As Campanhas de Sensibilização levam palestras educativas e informativas sobre os povos indígenas e a conservação do meio ambiente, o que aproxima indígenas e não indígenas, reduz conflitos e protege o território. As Campanhas de Sensibilização contam sempre com a participação de órgãos como FUNAI, ICMBio, Polícia Militar, entre outros.
O subprograma também organiza capacitações em Proteção Territorial, realiza diagnósticos ambientais e apoia o transporte para atividades dentro e fora dos territórios. Para o antropólogo Pedro Maciel, que é coordenador do subprograma de Proteção Territorial do PBA-CI e representante do ISPN no CBH – Pindaré, a participação dos indígenas no Comitê é fundamental para a preservação das águas do Rio Pindaré. “A gente trabalha com povos indígenas que vivem, sobrevivem, cuidam e protegem o Rio Pindaré. Então, nós também fortalecemos a participação dos indígenas nas decisões e discussões sobre os recursos do rio; na tentativa de defender seus territórios e proteger a fauna e a flora, que também protegem esse rio”, afirma.
Para os indígenas, o Rio Pindaré representa muito mais do que uma fonte de sobrevivência. Venerar o rio e a floresta, dar o devido valor à natureza, é a grande lição que os não indígenas precisam aprender, se quiserem construir um futuro sustentável. “O Rio Pindaré foi um rio em que se via fartura de peixes, que a água era de boa qualidade e hoje, infelizmente, com tantas violências contra a natureza, contra as matas ciliares, ele se encontra pedindo socorro. O rio representa história para o Povo Guajajara, representa a vida e nos fortalece espiritualmente. Falar da Terra Indígena Rio Pindaré, da Aldeia Januária, dos povos que ali habitam, é falar do Rio Pindaré”, afirma Taynara Caragiu Guajajara.
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Indígenas conservam floresta que protege rio de 600 km no Maranhão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU