26 Março 2024
Aquecimento global e desmatamento estão entre os fatores que podem influenciar no aumento de frequência das secas, que afetam populações ribeirinhas, a fauna amazônica e a agricultura brasileira.
A reportagem é de Davi Caldas, publicada por Jornal da USP, 22-03-2024.
Os rios amazônicos possuem grande importância no Brasil, seja para o abastecimento de cidades, desenvolvimento agrícola e pecuário, ou modo de vida das populações ribeirinhas. Assim, secas em seus cursos d’água, como a que ocorreu no ano passado, no rio Negro, um dos maiores afluentes do rio Amazonas — sendo uma das secas mais intensas já registradas, com o rio atingindo 12,70 metros, sua pior marca em 121 anos, desde que as medições hidrológicas foram instaladas —, são extremamente prejudiciais.
De acordo com Cleide Rodrigues, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, os rios podem ser classificados como efêmeros (ocorrem nos eventos chuvosos apenas), intermitentes (ocorrem sazonalmente) ou perenes (ocorrem o ano todo), dependendo da localização geográfica, ordem hierárquica de rios e bacias hidrográficas, além de fatores estruturais e geomorfológicos. “Os rios amazônicos são, em sua maioria, classificados como do último tipo, em função da localização de suas bacias predominantemente no clima tropical úmido”, afirma.
“De forma equivocada, o senso comum interpreta essa condição de perenidade marcante e das altas magnitudes das vazões fluviais amazônicas como sendo a marca de regimes regulares e de alta previsibilidade. Contudo, nas últimas décadas, houve acúmulo de dados primários climatológicos e fluviométricos associados a informações de satélite suficientes para bem reconhecer a grande variabilidade espacial de regimes anuais entre as diversas bacias que compõem os rios amazônicos, bem como a grande amplitude anual das vazões fluviais, sejam bacias da margem esquerda ou direita”, explica a docente.
Cleide ainda afirma que a bacia do rio Negro, fazendo parte da margem esquerda da bacia amazônica, está inserida em uma área de menor impacto antrópico, comparativamente ao restante da Amazônia. “Ela também é caracterizada por essa condição de regime fluvial anual de sazonalidade marcante, bem como de alta magnitude de variação de cotas. Essas variações, ao longo do ano hidrológico, são esperadas e são bem características, estando fortemente associadas à vida cotidiana de populações ribeirinhas e fazendo parte de saberes de povos tradicionais. Contudo, o que alguns estudiosos vêm observando é um aumento na frequência de eventos extremos de estiagem e de cheias nas duas últimas décadas, ainda que tenhamos séries temporais de aproximadamente 100 anos ou menos”, adiciona.
A geógrafa ainda explica que em rios amazônicos, como o rio Negro, há correlações bem estabelecidas entre processos hidrológicos extremos e sistemas atmosféricos globais — como La Niña e El Niño —, no que se refere à atuação deles e de seus efeitos nos movimentos sazonais da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT). Nesse sentido, Wagner Costa Ribeiro, professor da FFLCH e pesquisador no Instituto de Estudos Avançados (IEA), também da USP, comenta que existem causas múltiplas que levam a essa seca na Amazônia e que, segundo alguns estudos, ela deveria ocorrer a cada 350 anos.
“Alguns trabalhos associam ao fenômeno do El Niño, que é o aquecimento das águas do Pacífico, outros trabalhos vão dizer que o que ocorreu, na verdade, foi um aquecimento das águas do Atlântico, e que isso geraria essa anomalia climática. Aí nós temos o desmatamento, que é acelerado e também contribui muito para o aumento da temperatura local, e essa soma de fatores faz com que nós tenhamos a diminuição das chuvas”, complementa. Segundo o docente, a retirada da cobertura vegetal ao longo de corpos d’água impede diversos benefícios que as árvores trazem — produzindo sombreamento, protegendo as margens dos rios e realizando a evapotranspiração — e se junta ao aquecimento global — que muda a dinâmica atmosférica, a distribuição e intensidade de chuvas — como as possíveis causas do aumento da frequências dessas secas.
Nathália Nascimento, pesquisadora e pós-doutoranda no IEA-USP, afirma que já há evidências científicas que comprovam a origem antrópica nas secas mais recentes na Amazônia, influenciadas pelas mudanças no clima — sobretudo o aumento da temperatura e diminuição das chuvas na região. “Por exemplo, em todo o século 20 nós tivemos oito secas, e de 2000 a 2023 nós já tivemos cinco secas, sendo a de 2023 a mais intensa. Então, hoje, a gente já sabe que, além dessas secas estarem sendo influenciadas pelas mudanças no clima, a tendência é que elas aumentem, tanto de frequência quanto de intensidade de impacto”, comenta.
A pesquisadora explica que, primeiramente, é importante entender que as populações tradicionais e as comunidades extrativistas da Amazônia têm uma relação de coexistência muito particular com a natureza. “Então, as comunidades que vivem ao longo dos rios Amazônicos, por exemplo, têm no rio não só a sua fonte de água, mas também a sua fonte de alimento, a sua rota de transporte, o seu espaço de lazer. É o movimento desse rio, de cheia e de vazante, que determina quando se planta e quando se colhe”, informa.
“Quando você tem um evento de seca tão extremo como o que nós temos observado desde o ano passado, essa população, que depende diretamente desse recurso hídrico para os mais variados fins, acaba entrando em uma situação de insegurança hídrica, insegurança alimentar, incapacidade de locomoção para outras regiões, comunidades ou cidades mais próximas”, adiciona. Nathália afirma que isso também afeta a capacidade de reprodução do modo de vida dessa população, pois a rotina de agricultura e de pesca é comprometida após a perda de recursos e espaços em que essas atividades podem ser desenvolvidas e ensinadas para outras gerações.
A pós-doutoranda explica que, apesar da previsão de aumento na frequência dessas secas e na intensificação do seu impacto na população ribeirinha, migrações em massa são difíceis de ocorrer devido à forte relação desses povos com os rios, com um valor simbólico e até sagrado com o território em que vivem. “Então, a migração dessa população na Amazônia para outras regiões ou cidades é muito complexa. Eu desconheço que tenha iniciado alguma migração do tipo ocasionada por seca, mas isso não é impossível de acontecer no futuro”, complementa.
Sobre os impactos regionais e nacionais, Ribeiro afirma: “Ao ter uma evapotranspiração da floresta com maior intensidade, se perde parte dessa água, e aí aquele fluxo natural que nós conhecemos, chamados de rios voadores, deixa de ocorrer com a intensidade conhecida. Grande parte dessa umidade vem da evapotranspiração associada às chuvas da Amazônia, forma um volume de água muito rico, muito grande, que encontra-se com a Cordilheira dos Andes e dirige-se à esquerda, trazendo essa umidade até o Sul e Sudeste do País”. Dessa maneira, ele diz que a evaporação da água diminui a capacidade de produção da agricultura, caracterizando uma seca agrícola, que afeta não só em escala local, como também Sul e Sudeste.
Agustín Camacho, pesquisador no Instituto de Biociências (IB) da USP, explica que a bacia amazônica está naturalmente sujeita a fortes oscilações no nível das águas. “Períodos de seca se sucedem com períodos de chuvas fortes, e é isto que causa tais oscilações. Hoje, as mudanças climáticas e a desflorestação parecem estar aumentando essas oscilações”, informa.
“Na floresta amazônica tem muitos organismos, e cada um deles tem tolerâncias específicas que determinam as condições nas quais estes organismos podem sobreviver. Quando a seca chega, ela impõe dois tipos de estresse nos organismos: por um lado, obviamente, reduz a disponibilidade de água, mas, por outro, as temperaturas também ficam mais extremas, isso quer dizer que os organismos devem fazer frente a ambos desafios no mesmo tempo”, afirma.
Dessa maneira, Camacho explica que produziu uma pesquisa para entender como a tolerância de alguns animais a altas temperaturas varia com a falta de água. “Os resultados dos estudos mostraram que a desidratação causada pela seca torna esses animais menos tolerantes e muito mais vulneráveis aos incrementos de temperatura. Para se ter uma ideia, ao considerar o efeito combinado da desidratação e das altas temperaturas sobre lagartos amazônicos, o número de populações esperadamente vulneráveis ao aquecimento climático se triplicou por toda a Amazônia”, relata.
Ribeiro diz que a diminuição do desmatamento no Brasil no ano passado é insuficiente, apesar de ser um bom caminho para evitar o acirramento dos fenômenos climáticos extremos. “Nós também precisamos combater as mudanças climáticas para evitar que esse outro fator, mais macro, traga efeitos desastrosos para a Amazônia. É um conjunto bastante grande de atores que devem, o quanto antes, propor uma pauta de redução de emissões”, conclui.
Nathália afirma que as perspectivas futuras não são boas, caso não haja uma mudança urgente de atitude, e comenta que um futuro com secas cada vez mais frequentes e intensas iria trazer um cenário caótico, em que a própria floresta perderia a sua capacidade de crescimento e de sobrevivência, implicando em impactos sobre os recursos hídricos e em situações climáticas desfavoráveis à própria sobrevivência humana. “Nós precisamos agir com responsabilidade na proteção das florestas, na restauração de áreas que foram e estão sendo desmatadas”, finaliza.
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Seca em rios amazônicos impacta não só povos locais como também todo o território nacional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU