23 Março 2024
"A mulher russa que se inclina sobre a barreira de proteção para jogar uma flor no caixão de Alexei Navalny e os eleitores que mostram a cédula onde escreveram o nome do dissidente morto há um mês numa prisão no meio do círculo polar ártico: existe uma imagem da coragem humana mais significativa e mais simbolicamente poderosa do que esses inauditos gestos individuais?"
O artigo é de Luigi Mancon, jornalista italiano, publicado por Repubblica, 20-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O termo “coragem” é usado muitas vezes sem parcimônia, ao ponto do desperdício, dentro do nosso sistema político e do nosso sistema mediático, de modo a torná-lo uma epopeia quotidiana, tão medíocre quanto obsessiva.
Alguns exemplos: a corajosa Giorgia Meloni que luta contra os seus fantasmas e do seu partido, enquanto o corajoso Matteo Salvini se opõe à primazia política dos Fratelli d’Itália e o corajoso Giuseppe Conte compete com o Partido Democrático pela liderança do centro-esquerda.
Isso é, claramente, um uso impróprio da palavra coragem para definir conotações comuns da ação política, que não têm nada de heroico nem particularmente emocionante. A coragem está em outro lugar: e isso exigiria também a preservação do seu nome para evitar a banalização e a progressiva perda de sentido de uma expressão tão exigente.
Não só isso. Pessoalmente tenho grande estima pelas chamadas mulheres de coragem, algumas das quais aprecio demais (Lucia Uva, Patrizia Moretti Aldrovandi, Ilaria Cucchi, Elisa Rocchelli...), mas as virtudes que tornaram possíveis as suas preciosas ações civis não descendem da coragem. Mas resumem-se, ao contrário, na sábia capacidade de traduzir um luto privado e particular numa disputa pública.
Na arena mundial há muitos exemplos de coragem. Penso nas mulheres afegãs que organizam a resistência contra o “apartheid de gênero”; e nas jovens iranianas que mostram o rosto sem o véu diante do ódio e do sadismo da polícia moral.
E há um exemplo entre milhares que, talvez, constitua o ponto mais alto da coragem nos tempos contemporâneos, se tal classificação fosse possível e plausível.
Era 5 de junho de 1989 quando, em absoluta solidão, um “rebelde desconhecido”, segurando duas sacolas de compras em uma das mãos, opôs-se várias vezes ao avanço de um comboio de tanques do exército chinês na Avenida Chang'an, perto da Praça Tiananmen. O homem primeiro enfrenta o tanque, depois sobe nele, fala pela escotilha com os soldados que estão lá dentro, discute com o oficial e desce. E repete aquela ação uma segunda vez até ser arrastado embora.
A surpreendente simplicidade (as sacolas de compras!) daqueles atos é revelada por um detalhe marcante que torna a coragem do homem ainda mais rara: e aproxima-o daqueles gestos destinados ao anonimato e à obscuridade – e por isso mesmo de valor inestimável - realizados pelas mulheres afegãs. O "rebelde desconhecido" chinês certamente não poderia imaginar que aquela sua delgada figura teria sido vista em todo o mundo e, provavelmente, a sua ação estava destinada a viver da exclusiva relação entre ele mesmo, os poucos transeuntes e aquele tanque.
O efeito do testemunho trágico e sublime era totalmente imprevisível. Isso não só nos ajuda a refletir sobre o que realmente é a virtude da coragem, mas – no mundo globalizado e midiatizado – contribui para explicar como lidar com a enorme questão das vítimas na sua relação com o espaço e com o tempo. Em outras palavras, a vítima é em primeiro lugar quem é hoje vítima. Um exemplo.
A história política de Navalny, as suas posições hipernacionalistas do passado, os seus fracassos e os seus erros constituem algo insignificante em comparação com a relevância de sua presente condição de vítima de envenenamento e, depois, de injusta detenção, de acusações absurdas, de deportação para a Sibéria e, por fim, de morte na cela de uma prisão especial.
O que mais importa é isso, e é sempre isso que revela inequivocamente a natureza autêntica e profunda da tirania de Vladimir Putin. Este último vem do passado e domina o passado, extraindo dele tradições e inventando mitos destinados a fortalecer o seu despotismo.
Mas a sua relevância é a do oficial do KGB como era trinta e cinco anos atrás e como será no final deste último mandato em 2030.
Um raciocínio semelhante vale para a Ucrânia. Eu também tenho uma diferença pessoal com o sistema político daquele país porque sou amigo dos pais de Andy Rocchelli, um fotojornalista de Pavia morto no Donbass em 2014 por membros da Guarda Nacional. E não ignoro o fato de existirem grupos neonazistas na Ucrânia, mesmo entre setores do exército; e por fim não esqueço algumas tendências autoritárias do atual executivo. Mas, aqui está o ponto, novamente o conceito da relevância das vítimas, como elaborado pelo teólogo Johann Baptist Metz, leva-me a ficar do lado do Presidente Volodymyr Zelensky e do seu povo.
Porque hoje a história e a geografia (que também importam, e muito) estão subsumidas pela violência, pelas relações de força entre os opressores e os oprimidos, pela máquina criminosa da agressão e da invasão. A coragem das vítimas reside, no que diz respeito às mulheres afegãs, em mostrar-se clandestinamente às vítimas que pertencem ao mesmo gênero e ao mesmo sofrimento; a coragem dos cidadãos russos manifesta-se no gesto de se apresentarem despudoradamente ao mundo inteiro como indefesos e derrotados em torno de um caixão e de um rito eleitoral igualmente fúnebre.
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A coragem das vítimas. Artigo de Luigi Mancon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU