11 Março 2024
Quantas vezes uma pausa diante de um diálogo mudo de amor foi como se sentar em um oásis no centro de uma “cidade inimiga”, buscando alívio na travessia de um deserto interior personalíssimo.
O comentário é do historiador da arte Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado pelo caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 08-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vezes, temos uma relação especial com um quadro, com uma escultura ou com uma arquitetura. Não necessariamente (ou não só) pela sua qualidade, pelo seu estilo, pela sua iconografia: mais frequentemente, isso acontece comigo pela sua localização. Ou seja, pela sua acessibilidade e pelo modo como habita o mundo.
Um desses quadros é a “Aparição da Virgem a São Bernardo”, de Filippino Lippi. Não poderia ser diferente, vocês poderão dizer: é uma grande obra-prima da pintura do Renascimento maduro. É claro, mas sobretudo ainda está em uma igreja: e, portanto, pode ser vista e amada sem filas, ingressos, formalidades. É um cidadão livre, que apenas espera visitas, feliz em recebê-las.
Filippino Lippi, “Aparição da Virgem a São Bernardo”, óleo sobre painel, 1482-1486, Badia Fiorentina (Foto: Wikimedia)
Nem sempre esteve lá, não: porque foi uma guerra que o tornou refugiado de uma pequena igreja suburbana florentina na sua localização atual, na Badia Fiorentina, em frente ao Bargello e a poucos passos do Palazzo Vecchio. Ele ficou um pouco refugiado, na verdade, porque está perto da saída e sem um altar embaixo: ele que é um retábulo quadrado perfeito. Mas está pendurado de forma perfeita para que os raios de sol que caem das janelas o acariciem muitas vezes, fazendo-o explodir de vida.
O mecenas que afundou no abismo, Piero del Pugliese, não parece aquele extraordinário conhecedor de arte que era, mas apenas um fiel quase comum (exceto pelas roupas riquíssimas), mudo e pensativo enquanto tem a sorte de testemunhar uma extraordinária visitação.
A Virgem em pessoa, escoltada por um punhado de anjos adolescentes – quintessencialmente botticellianos, mas despertos e curiosos como só em Filippino – visita seu castíssimo amante Bernardo, para controlar os rascunhos dos elogios exagerados que ele está lhe escrevendo.
E é inesquecível o ambão rústico, como uma tebaida monástica, que Filippino imagina com sua imaginação pirotécnica de um Bernini do fim do século XV. Um mil-folhas de pedra emoldura toda a parafernália iconográfica medieval: monges atarefados e solidários, corujas e diabinhos.
Mas a arquitetura monástica, a paisagem, a natureza morta de livros e objetos de copista falam uma linguagem muito remota daquele mundo: uma língua moderna, já projetada para as formas que acolhem a obra no interior moderno da antiquíssima abadia.
Nas coisas duvidosas, diz a frase que corre no marco inferior, pense em Maria, invoque Maria. Quantas vezes uma pausa diante daquele diálogo mudo de amor foi como se sentar em um oásis no centro de uma “cidade inimiga”, buscando alívio na travessia de um deserto interior personalíssimo... No fundo, não é para isso que servem as obras de arte que amamos?
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A obra-prima refugiada. Artigo de Tomaso Montanari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU