05 Março 2024
Apenas alguns dias antes do Natal, a ex-presidente húngara Katalin Novák elogiou as relações entre igreja e estado na Hungria.
A reportagem é de Bridget Ryder, publicada por America, 01-03-2024.
"Nestes últimos dois dias, recebi líderes da Igreja húngara de dentro e fora da Hungria", ela escreveu no Twitter. "Esta é uma tradição e claramente indica que na Hungria, o estado e as igrejas, denominações cristãs e judaicas, trabalham bem juntos pelo povo".
As fotos em sua postagem incluíam líderes religiosos apertando as mãos, inclinando suas cabeças em oração e ouvindo atentamente enquanto a Sra. Novák, que desempenhava um papel simbólico e diplomático como presidente húngara, falava de um pódio. Assim como em algumas de suas outras postagens no Twitter, ela se vangloriou sobre a visita do Papa Francisco à Hungria ano passado. Em outra postagem, ela celebrou os últimos dias do Advento, destacando sua presença em uma missa lotada. (A Sra. Novák renunciou em 9 de fevereiro após uma grande indignação pública seguida de revelações de que ela havia concedido perdão a um homem condenado por ajudar a encobrir abusos sexuais em um lar infantil.)
Enquanto a ex-presidente enfatizava uma forte religiosidade na Hungria, algumas respostas no Twitter contestaram sua noção de que as relações entre igreja e estado no país eram percebidas como fortes e mutuamente benéficas entre outros húngaros.
Um dos comentários criticou o cardeal-arcebispo Péter Erdő, à frente da arquidiocese de Esztergom-Budapeste desde 2003, acusando-o de agir como um fantoche do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. Outro acusou que a Sra. Novák estava apenas "fingindo" ser seguidora de Cristo. Um terceiro respondente reclamou que o governo não estava lidando com as preocupações reais dos húngaros, observando que a maioria das pessoas estava mais preocupada com os altos impostos do que com as relações entre igreja e estado.
As respostas sugerem uma relação mais complexa entre igreja e estado na Hungria do que o governo Orbán talvez queira reconhecer. E mesmo enquanto Orbán posiciona seu governo como um dos últimos defensores da cultura cristã na Europa, a filiação religiosa na Hungria atingiu o nível mais baixo já registrado.
A Hungria é um país católico com uma forte presença protestante, mas em seu último censo, publicado no fim do ano passado, a maioria dos húngaros, 57%, não declarou filiação em nenhuma tradição religiosa: 40% não responderam à pergunta sobre filiação, e 17% declararam "nenhuma religião" depois de serem perguntados a qual igreja pertenciam. O resultado do censo marca a primeira vez que a identidade religiosa caiu abaixo de 50% na Hungria.
A Igreja Católica húngara viu a maior perda de membros, diminuindo 30% desde o último censo em 2011. Agora, 1,1 milhão de húngaros a menos se identificam como católicos do que há dez anos. O declínio contemporâneo reflete uma tendência de longo prazo. Duas décadas atrás, mais da metade dos húngaros se identificavam como católicos; hoje, apenas 28% o fazem.
A conferência episcopal católica húngara reconheceu que a Igreja no país está sujeita às mesmas dinâmicas que o restante da Europa - sociedades marcadas por décadas de secularização e declínio na prática religiosa tradicional. "Tendências internacionais também podem ser observadas nos dados do censo, dos quais a Hungria e dentro dela nossas comunidades católicas não são exceção. Isso também é uma tarefa para a Igreja Católica húngara", disseram os bispos em comunicado refletindo sobre os dados do censo.
Gergley Rosta, sociólogo húngaro com formação na Universidade de Munique, concordou com os bispos, chamando os números mais recentes na Hungria de reflexo de uma secularização europeia constante e abrangente que remonta, no caso da Hungria, a mudanças que começaram mesmo antes da era comunista. Ele disse que o avanço secular foi interrompido brevemente no fim da década de 1980 e durante a década seguinte, à medida que a filiação à Igreja crescia, possivelmente como parte de um movimento reacionário contra o comunismo. No entanto, até o final dos anos 1990, a afiliação religiosa se estabilizou antes de retomar um declínio que continua no novo século.
Mas mesmo quando a Igreja Católica na Hungria perdeu significativamente membros sob o governo do Orbán, ela tem sido agraciada com apoio financeiro e prático por parte de seu governo. Botond Feledy é analista político e diretor adjunto do Centro Social Europeu dos Jesuítas em Bruxelas. Ele disse que quando Orbán e seu Partido Fidesz assumiram o governo em 2010, a maioria das propriedades da Igreja nacionalizadas durante o comunismo permaneceu sob o controle do governo húngaro.
Buscando firmar o apoio público para sua agenda política, Orbán procurou primeiro melhorar as relações com grupos religiosos, especialmente a Igreja Católica e a Igreja Reformada Calvinista, a maior denominação protestante do país. Devolver propriedades confiscadas foi uma maneira de melhorar sua posição com as igrejas.
A restauração de propriedades, disse Peter Zachar, cientista político da Universidade Ludovik, foi uma tremenda oportunidade para a Igreja Católica reconstruir suas instituições na era pós-comunista. Segundo ele, de 2010 a 2020 o número de escolas primárias católicas na Hungria quase dobrou, passando de 9,4% de todas as escolas na Hungria para 17%. As escolas secundárias aumentaram de 10,4% para 25% de todas as escolas secundárias.
Para Zachar, essa aliança tem levado a alguma confusão sobre o papel dos líderes religiosos e até mesmo ao ressentimento popular contra a Igreja em um país que, apesar das intenções do governo, continua sendo fundamentalmente um estado e uma sociedade laicos. E, como sugerem as respostas descontentes à Novák, muitos húngaros sentem que as igrejas se deixaram capturar por Orbán.
A realidade é um pouco mais complicada, acredita o Zachar. Retoricamente, as posições do Fidesz frequentemente se sobrepõem com a doutrina católica básica, insistindo, por exemplo, que o casamento só pode ser entre um homem e uma mulher, posição recentemente incluída na constituição húngara pelo governo Orban. Mas mesmo enquanto o Papa Francisco elogiou a Hungria por manter "valores tradicionais", ele criticou veementemente sua oposição em receber refugiados do Oriente Médio e da África.
O governo de Orbán realizou uma campanha pró-vida em 2011, mas, segundo Rosta, "nunca houve uma discussão séria sobre mudar a lei do aborto", que permite seu amplo acesso por até 12 semanas e, em certas circunstâncias, até 24 semanas. Quando ficou claro que restringir o aborto resultaria na perda de votos, Orbán parou de pressionar o assunto, disse ele.
A liberdade de culto é consagrada na constituição húngara, então qualquer denominação pode abrir uma igreja. Mas as igrejas também podem estabelecer um status legal que lhes permite celebrar acordos de prestação de serviços com o governo, receber financiamento a partir dos impostos pagos pelos membros da igreja (dispositivo comum na Europa) ou ensinar religião em escolas públicas. A polêmica Lei das Igrejas, aprovada em 2012, revogou esse status entre muitas igrejas e denominações pequenas e alterou o processo de aprovação.
Anteriormente, o resultado de uma revisão judicial, a aprovação para o mais alto status que permite o ensino em escolas públicas, agora é concedida por maioria de dois terços no parlamento. Muitos veem a lei como uma maneira de Orbán exercer mais controle sobre as igrejas húngaras.
Zachar observa que a autoidentificação cristã do governo Orbán foi fundamentada principalmente em duas questões: manter os requerentes de asilo não europeus e presumivelmente não cristãos fora da Hungria e tomar uma posição contra o casamento gay e questões relacionadas a transexuais. O Fidesz, conhecido por sua máquina de propaganda bem azeitada, alavanca intensamente a guerra cultural para fins políticos que podem ter efeitos secundários negativos sobre a Hungria.
A politização da fé tornou o debate sobre as obras de caridade praticamente impossível, disse Zachar. "As trincheiras políticas existentes se aprofundaram e as barreiras entre diferentes grupos sociais se ergueram ainda mais", diz ele. "A reconciliação tornou-se ainda mais difícil, a possibilidade de compreensão está muito distante".
"As questões LGBTQ estiveram presentes na sociedade húngara desde o [fim do comunismo], mas nunca como questões de tamanha importância que dominassem toda a esfera pública social", disse Zachar. Agora "tornou-se um dos debates mais importantes e uma das questões mais divisoras".
Zachar falou que, ao explorar questões da guerra cultural, o Orbán inundou os húngaros com "propaganda excessiva sobre imigração ilegal e questões LGBTQ". O governo Orbán aprovou uma lei polêmica em 2022 que proíbe exibições públicas de conteúdo LGBTQ para menores. Como resultado de tais campanhas, segundo Zachar, "o público em geral infelizmente confunde a prática de crimes reais com a comunidade LGBTQ".
Segundo o Sr. Rosta, não há evidências diretas ligando a politização da fé e dos valores de Orbán à diminuição da afiliação religiosa, e a Igreja Católica húngara não foi abalada pelos tipos de escândalos que têm demolido a identidade da Igreja em outros estados europeus, como a Irlanda.
Mas pesquisas sociais realizadas ao longo da última década sugerem uma possível fonte de inquietação, disse ele, acompanhando um crescente senso entre os europeus orientais de que as igrejas estão muito envolvidas na política. Um estudo recente do Programa Internacional de Pesquisa Social constatou que os húngaros acreditam cada vez mais que as igrejas têm poder excessivo, posição que vem crescendo constantemente na Hungria desde 2008.
"A proximidade da religião e da política" ao longo da última década e mais, disse Rosta, pode explicar por que muito menos húngaros agora estão dispostos a se descrever como membros de uma igreja contemporânea.
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A Igreja Católica na Hungria está profundamente politizada, e encolhendo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU