15 Fevereiro 2024
"Na Encíclica Fratelli Tutti, o Papa convida a fazer uma experiência de 'um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço' (n.1). Ele também lança um desafio que de algum modo perpassa as indicações do Texto-Base da Campanha da Fraternidade", comenta Dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e do Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (Celam).
A entrevista é de Marcos Corbari, publicada por Brasil de Fato, 15-02-2024.
Dom Jaime Spengler explicou sobre o sentido da quaresma, aprofundou a reflexão da CF, mencionou o respeito às diferenças, o aprendizado da ciência, o risco de ruptura institucional no país e posicionou-se frente os ataques que padres conservadores têm feito ao Papa Francisco.
A conversa centrou-se na Campanha da Fraternidade, que inicia nesta quarta-feira (14/02) e se estende durante os 40 dias que antecedem a Páscoa (31/03), mas outros temas também foram mencionados, como a saúde do Papa Francisco, a situação frente aos padres conservadores que tem atacado o Sumo Pontífice e os desafios para se construir a “Amizade Social” evocada pela campanha em meio a um país dividido.
O lançamento oficial da CF aconteceu na sede da CNBB, em Brasília, em missa presidida pelo secretário-geral da CNBB, dom Ricardo Hoepers, na Capela Nossa Senhora Aparecida, precedendo a cerimônia de abertura no Auditório Dom Helder Câmara. Em 2024 o tema da CF é “Fraternidade e Amizade Social” e o lema “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8), diretamente relacionada à Carta Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, por sua vez inspirada pela vida de São Francisco de Assis. Conforme a assessoria da CNBB informou, na oportunidade também foi apresentado um vídeo com a mensagem do Papa Francisco.
Dom Jaime, para iniciar essa conversa é importante explicar o sentido da Quaresma para os cristãos-católicos, esses 40 dias entre a Quarta-feira de Cinzas e a Páscoa.
A Quaresma é este período que a Igreja nos oferece para nos preparar dignamente para a celebração maior: a Páscoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. São quarenta dias – número que a Bíblia associa a períodos de espera, de esforço, de penitência e luta contra o mal – em que os cristãos são chamados a assumir de forma ainda mais determinada o caminho da própria transformação em Cristo Jesus, por meio dos exercícios do jejum, da esmola e da oração.
Neste tempo do Ano litúrgico somos convidados a redescobrir a nossa própria verdade e autenticidade; é um tempo para redescobrir a verdade do próprio ser, de nossa identidade: somos filhos/as, e, portanto, irmãos/ãs. Neste contexto vale recordar o que diz a Carta aos Hebreus: “Jesus não veio em auxílio de anjos” (Hb 2,16); e nós não somos anjos! É também oportunidade para refletir sobre o cerne da vida cristã: a caridade!
Somos, pois, exortados, de forma especial neste tempo, a realizar um itinerário de autêntica con-versão, de retorno a Deus e o projeto do Reino anunciado e testemunhado por Jesus de Nazaré. Isto requer atenção particular, pois ídolos sedutores sempre e de novo, isto é, sempre e de forma nova, se apresentam entre nós de muitos modos. A Igreja reconhece a incapacidade humana de viver, de suportar a tensão entre a proposta do Reino de Deus e as propostas de ídolos sedutores.
A Quaresma é este tempo no qual somos convidados a resgatar o foco de nossas vidas: somos cristãos/ãs, discípulos e discípulas do ‘homem que passou por entre nós fazendo o bem (At 10,38), e que fazia bem todas as coisas (Mc 7,37).
A Campanha da Fraternidade nos parece trazer uma proposta de reflexão e ação vinculada a Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco. Ele aborda esse conceito de "amizade social" no texto. Essa relação existe mesmo? Qual os objetivos da CNBB em propor essa reflexão?
O objetivo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em propor uma reflexão em torno deste tema está bem expressa na própria apresentação do Texto-Base: trazer à fala as situações de inimizade que geram divisões, violência e destroem a dignidade dos filhos e filhas de Deus; buscar iluminar a partir do Evangelho do Crucificado-Ressuscitado o que nos une como família e resgata o sentido das relações humanas baseados no respeito e na reciprocidade do bem comum; indicar possíveis iniciativas em vista de uma mudança, não só pessoal, mas também comunitária e social (= con-versão!) em busca de uma sociedade mais amiga, justa, solidária e fraterna.
A Encíclica Fratelli Tutti, do Papa Francisco, é inspiradora neste itinerário quaresmal – mas não só! – proposto pela CNBB para todas as Igreja Particulares no Brasil. Há vários elementos na história recente do Brasil que encontram reflexo no texto do Santo Padre. Vale destacar o aprendizado coletivo de valorizar a ciência após o doloroso período de tempo da pandemia do Coronavírus (COVID-19), a importância da boa colaboração de setores da imprensa, a dedicação de tantos agentes públicos de saúde. Também não podemos esquecer a recente tensão alimentada por setores que desejaram – e talvez ainda desejem! – uma ruptura institucional, com suas consequências imprevisíveis. As tentativas, por exemplo, de cerceamento da liberdade são sempre perigosas! Não podemos jamais esquecer que liberdade é uma palavra relacional. Ser livre significa originariamente estar com amigos! Jesus mesmo denomina seus discípulos de ‘amigos’ (Jo 15,15). Cuidar e promover a comunidade, segundo as indicações da tradição cristã, é tarefa dos discípulos do Senhor, pois a comunidade é o lugar da liberdade pessoal. “É para a liberdade que Cristo vos libertou”(Gl 5,1).
Estamos passando por um prolongado período de muitas divergências entre as pessoas, brigas, inimizades, a sociedade parece cada vez mais dividida. Até mesmo na igreja notamos existir polarização de opiniões que levam a debates acalorados. Nesse sentido há um desafio grande para a Campanha da Fraternidade enfrentar. Na sua avaliação, a amizade social pode ser um caminho de volta para que valorizemos mais as semelhanças que nos aproximam como irmãos e irmãs em detrimento das diferenças que nos distanciam como adversários?
O respeito pelas diferenças marca o convívio social. Respeito, respeitar significa cultivar apreço, consideração, deferência. Isto não significa simplesmente concordar com a posição alheia, mas permite que o outro manifeste livremente sua posição desde que não cause dano aos demais membros da comunidade. Respeito requer reciprocidade! Cada ser humano é diferente! Daí a importância de algo que já os antigos tinham ciência: “conhece-te a ti mesmo”. Entramos aqui num âmbito delicado, pois o respeito pelas diferenças é limitado aos nossos próprios limites. Por isso, numa sociedade plural o respeito exige direitos sociais efetivos, leis que garantam a convivência pacífica e que promovam verdadeiramente o bem comum. Para que tal seja realidade, urge promover a tarefa ética da política e da educação.
Em nível eclesial é doloroso constatar ataques, críticas e suspeitas contra o magistério, e de forma particular contra o Papa, “princípio e fundamento perpétuo e visível de unidade” (LG 23). Há sinais de uma animosidade orquestrada que fere profundamente a comunhão e a unidade da própria Igreja. Neste sentido vale recordar qual a função do magistério: “A função do Magistério não é algo extrínseco à verdade cristã ou algo sobreposto à fé; pelo contrário, é algo que nasce da própria economia da fé, uma vez que o Magistério, no seu serviço à Palavra de Deus, é uma instituição positivamente desejado por Cristo como elemento constitutivo da Igreja. O serviço que o Magistério presta à verdade cristã é realizado em benefício de todo o Povo de Deus, que é chamado a ser introduzido na liberdade da verdade que Deus revelou em Cristo” (J. Ratzinger).
Tendo presente o que foi acima explicitado, creio que a Campanha da Fraternidade se propõe uma tarefa urgente e necessária: compreender as principais causas da atual mentalidade de oposição e conflito, geradora da incapacidade de ver nas outras pessoas um irmão e irmã; conscientizar sobre a necessidade de construir a unidade em meio à pluralidade, superando divisões e polarizações; estimular a espiritualidade, os processos, os hábitos e as estruturas de comunhão na Igreja e na sociedade.
Na passagem do Evangelho que motiva a CF, Jesus chama seus discípulos de amigos e não de servos. Como podemos trazer essa reflexão para os nossos dias?
Jesus nos considera amigos! Mesmo nas próprias situações de ambiguidade que podemos viver, Ele demonstra o seu amor gratuito e inegável. A amizade eleva, por assim dizer, a própria relação: respondendo ao amor com amor, nos tornamos como Deus! Somos de fato amigos de Jesus se respondemos ao seu amor agindo como ele agiu: “Por toda parte, ele andou fazendo o bem” (At 10,38), e “fazia bem todas as coisas” (Mc 7,37). Jesus não nos quer servos, mas amigos, iguais a Ele! Por isso, somos vocacionados a viver na liberdade de filhos amados. Ora, o mandamento do amor não é um mandamento que se acrescenta aos demais! Não! É o mandamento que inclui todos os demais!
Na Encíclica Fratelli Tutti, o Papa convida a fazer uma experiência de “um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (n.1). Ele também lança um desafio que de algum modo perpassa as indicações do Texto-Base da Campanha da Fraternidade: “O amor, o bem, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos” (n. 11). Estas indicações são preciosas, pois apontam para uma tarefa que deve perpassar a vida de todos os discípulos e discípulas do Crucificado-Ressuscitado. Trata-se de uma tarefa que sempre e de novo, isto é, sempre e de forma nova cada geração precisa realizar. Portanto, o tema proposto pela Campanha da Fraternidade não se esgota num tempo determinado – no caso, Quaresma de 2024! Ele marca, por assim dizer, o cotidiano de todos os batizados!
O senhor esteve recentemente no Vaticano. Como está a saúde do Papa Francisco? E seu ânimo para conduzir a Igreja em um tempo de tantas divergências e conflitos?
É sempre motivo de alegria poder encontrar o Bispo de Roma, sucessor do Apóstolo Pedro, garante da unidade da Igreja. Na pessoa do Papa encontramos a segurança da unidade, da comunhão, da atualidade do Magistério, atendendo às exigências do tempo presente, em vista de um futuro sempre mais marcado pelos valores do Evangelho, mesmo que em meio a divergências, oposições, críticas, dissensos... Isto sempre houve na Igreja! Ousaria dizer que tal realidade faz parte da vida ordinária da Igreja situada no tempo.
Papa Francisco é um homem de 87 anos; traz as marcas da idade avançada. No entanto, como ele mesmo afirma, ele conduz a Igreja com a cabeça, não com as pernas! Se as pernas estão frágeis, a mente está ótima! Ao mesmo tempo, vale salientar seu estado de espírito: sagaz, atento, perspicaz! Como não recordar seu sempre pedido de orações a seu favor – não contra! Isto também aponta para um espírito de humor saudável.
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Em nível eclesial é doloroso constatar ataques, críticas e suspeitas contra o magistério, e de forma particular contra o Papa, “princípio e fundamento perpétuo e visível de unidade” (LG 23). Há sinais de uma animosidade orquestrada que fere profundamente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU