08 Fevereiro 2024
“O que está por trás de todos esses incêndios no Chile e da crise ambiental é uma separação histórica entre cultura e natureza, que pode ter trazido um enorme salto tecnológico, mas à custa da morte e destruição de comunidades e territórios inteiros. Tudo em nome do progresso, revolução e desenvolvimento, mas em detrimento de outras formas de vida muito mais harmônicas com os ecossistemas e a reprodução da vida na Terra”, escreve Andrés Kogan Valderrama, sociólogo, em artigo publicado por OPLAS, 06-02-2024. A tradução é do Cepat.
A tragédia que vivemos no Chile, em consequência dos enormes incêndios na Região de Valparaíso, com mais de 100 mortos, 300 desaparecidos, mais de 3.000 casas queimadas, muitos animais de estimação perdidos e milhares de hectares queimados, foi devastadora para o país. O governo de Gabriel Boric decretou estado de emergência e luto nacional.
Tudo se concentrou em apagar os incêndios e prestar a correspondente ajuda a todas as famílias afetadas, que estão em um verdadeiro inferno, especialmente em cidades como Viña del Mar, Quilpué, Villa Alemana e Limache, onde as autoridades, bombeiros e diferentes organizações da sociedade civil estão completamente empenhadas frente a estas circunstâncias dramáticas.
No entanto, em relação às causas desses incêndios, a catástrofe também vem sendo acompanhada por um fraco debate público nos meios de comunicação tradicionais e nas redes sociais, concentrando-se na intencionalidade de determinados grupos em sua propagação, não nas causas históricas e estruturais e na falta de políticas socioambientais que possam oferecer respostas sistêmicas a tudo isso.
Sendo assim, falou-se que os incêndios foram provocados por grupos políticos, vândalos e até por um cartel do setor imobiliário, que estaria usando o terror como meio para gerar desestabilização institucional e benefícios econômicos com a tragédia, esquecendo-se que faz parte de um contexto de crise climática e aumento da temperatura do planeta, sem dar ao fenômeno o peso que deveria receber.
Abordo esta questão, sem negar a intencionalidade de muitos incêndios, bem como a necessária investigação por parte do sistema de justiça quanto aos responsáveis, pois sinto que não estamos dando peso como sociedade à relação histórica que nós, seres humanos, temos com o fogo e um sistema de vida hegemônico que é completamente insustentável no cuidado da vida no planeta, que é a verdadeira causa do que está acontecendo conosco no Chile e em todo o mundo.
É o que destaca diversos pesquisadores, como Stephen J. Pyne [1], que afirma que a nossa relação com o fogo assentou as bases para uma forma de nos relacionarmos com o nosso ambiente que saiu do controle, desde a sua descoberta e uso, há 1 milhão de anos, depois com o seu domínio, com a revolução neolítica e o surgimento das primeiras grandes civilizações, e finalmente com a sua conquista total, com a chegada da modernidade ocidental, capitalista e industrial.
Em outras palavras, é o que Pyne chama de Piroceno, que, assim como a noção de Antropoceno, mostra-nos o modo como a nossa evolução como seres humanos trouxe uma diferenciação cada vez maior com o nosso ambiente. No caso do fogo, embora trouxe enormes desenvolvimentos para as nossas vidas (alimentação, aquecimento), trouxe também o seu uso para batalhas, guerras e massacres entre seres humanos e a conquista da natureza, atingindo o seu ponto mais alto com a queima de combustíveis fósseis e a expansão desenfreada do capitalismo.
Consequentemente, o que está por trás de todos esses incêndios e da crise ambiental é uma separação histórica entre cultura e natureza, que pode ter trazido um enorme salto tecnológico, mas à custa da morte e destruição de comunidades e territórios inteiros. Tudo em nome do progresso, revolução e desenvolvimento, mas em detrimento de outras formas de vida muito mais harmônicas com os ecossistemas e a reprodução da vida na Terra.
Parece-me que estamos caindo novamente no mesmo erro da pandemia, quando nos concentramos em como combatê-la e até utilizamos teorias da conspiração sobre quem supostamente criou a covid-19, em vez de também vê-la como um processo histórico, herdeira da separação entre cultura e natureza, e como resposta a um sistema-mundo capitalista que, com a ideia delirante de crescimento econômico ilimitado, está nos levando a um colapso civilizacional [2].
Dito tudo isso, e voltando ao que está acontecendo neste momento no Chile com os incêndios, espero que o debate deixe de se concentrar simplesmente sobre a segurança e de modo conspiratório, tanto pela esquerda como pela direita, e que estejamos abertos a vê-lo em uma perspectiva ampla e holística, que entenda que o que está acontecendo está ligado ao modo daninho como, há muito tempo, nós nos vinculamos aos territórios e ao planeta, sem percebermos.
Por esta razão, bem-vindas todas as visões e medidas que levantem críticas a um modelo extrativista florestal, imobiliário e consumista imperante, mas também a alternativas concentradas em oferecer respostas sustentáveis e de cuidado ao que chamamos de meio ambiente, por meio de políticas de reflorestamento, restauração de solos, ordenamento territorial e uma urgente educação socioambiental, que gere uma mudança profunda na forma como nos relacionamos com a vida.
[1] https://www.youtube.com/watch?v=-zP7MD2y7T8&t=136s
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O Piroceno veio para ficar no Chile e no planeta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU