Eólicas miram lotes da reforma agrária para expandir energia dos ventos no Rio Grande do Norte

Foto: Canva Pro | Tokarsky

13 Janeiro 2024

Quase metade dos parques eólicos no estado é vizinho de assentamentos rurais, segundo levantamento da Repórter Brasil. Interesse das empresas por terras da reforma agrária divide trabalhadores. 

A reportagem é de Hélen Freitas, publicada por Repórter Brasil, 05-01-2024.

Quase metade dos parques de energia eólica do Rio Grande do Norte (RN) está no entorno de assentamentos da reforma agrária, segundo levantamento exclusivo da Repórter Brasil. As empresas do setor buscam expandir suas operações sobre essas terras, o que levanta dúvidas sobre o impacto nas comunidades agrícolas.

O Rio Grande do Norte lidera a produção nacional de energia gerada por ventos. São 386 parques em operação ou em construção, sendo 48% destes a menos de 1,5 km de assentamentos rurais.

Essa proximidade não só vem mudando a paisagem local, como também tem exposto os agricultores vizinhos dos parques eólicos ao barulho das enormes torres e à poeira do fluxo intenso de caminhões. Agora, porém, as empresas já miram áreas no interior dos assentamentos.

Esse movimento ficou mais intenso a partir de 2022, após entrar em vigor a Instrução Normativa nº 112 do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A regra autoriza o órgão a negociar o uso dos lotes para instalações eólicas, em troca de projetos de renda para os assentados.

Os acordos podem envolver tanto os assentamentos de reforma agrária – desde que haja aval do Incra – como também as terras já tituladas. Neste último caso, as negociações se dão diretamente com os agricultores, que possuem o título definitivo do lote e, portanto, não são mais atendidos pelas políticas de reforma agrária.

Para especialistas ouvidos pela reportagem, o interesse das eólicas por essas áreas representa uma ameaça aos empregos no campo e à produção de alimentos na região.

A pesquisadora Mariana Traldi, do Instituto Federal de São Paulo (IF-SP), avalia que os contratos de arrendamento eólico contradizem o objetivo da reforma agrária, pois concentram terras nas mãos de empresas, em detrimento do trabalhador rural. “Se a reforma agrária tem como principal objetivo democratizar o acesso à terra, esses contratos fazem o oposto”, opina.

Essa nova dinâmica terá ainda mais incentivo caso o Congresso passe o Projeto de Lei 3266/21, já aprovado no Senado. O texto altera a Lei da Reforma Agrária e autoriza projetos eólicos a ocuparem até 30% da área dos assentamentos, sem a necessidade de aprovação do Incra, como é hoje.

Cássio Carvalho, assessor do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), argumenta que o limite de 30% é significativo e pode “desconfigurar” as características da reforma agrária, além de criar estímulos para o êxodo rural, sobretudo no semiárido.

Carvalho alerta ainda que a nova regra do Incra e a eventual mudança legislativa podem colocar em xeque os benefícios previdenciários dos assentados, considerados “segurados especiais” pelo INSS.

“Os acordos de arrendamento podem acabar comprometendo a previdência social deles, uma vez que o segurado especial de reforma agrária vai possuir uma outra fonte de renda, e a lei deixa claro que isso não é permitido”, diz o assessor do Inesc.

O Incra declarou, em nota, que a construção das torres nos assentamentos da reforma agrária está condicionada ao cumprimento da lei e à autorização do órgão. A nota ressalta que as negociações feitas diretamente com assentados não titulados “não têm respaldo legal”.

 (Fonte: Repórter Brasil)

Resistência

Em dois anos de vigência da resolução do Incra, apenas dois assentamentos fecharam acordo para arrendar terras às eólicas: o Projeto de Assentamento Zumbi, em Rio do Fogo – primeiro do tipo no país –, e o Projeto de Assentamento Chico Mendes, em Touros.

Mas há também conversas avançadas com outras comunidades. Na tentativa de convencer os agricultores, as empresas oferecem até apoio para obtenção do título da terra.

É o caso do Projeto de Assentamento (PA) Canto da Ilha de Cima, em São Miguel do Gostoso. Criada em 1996, a comunidade vive um período de divergências internas e pressão das empresas para abrir espaço aos aerogeradores.

A paisagem da região começou a mudar nos anos 2010. “Eles destruíram muitas dunas e partes da mata quando chegaram aqui”, conta Francisco Clemente Ferreira, um dos fundadores do assentamento, enquanto observa as torres instaladas em uma fazenda vizinha.

O agricultor relata que o Complexo Eólico Morro dos Ventos, hoje controlado pelo grupo Serveng, chegou nos arredores sem muita conversa com as comunidades, iniciando a operação em 2014. Os equipamentos ficaram a cerca de 200 metros das casas, incomodando os moradores.

“Temos vizinhos que no início não conseguiam dormir com a zoada da torre. Tem noite que ela perturba bastante”, reclama o agricultor Josafá Antonio dos Santos, presidente da associação do assentamento.

Há cerca de três anos, as famílias dizem ter recebido uma proposta para arrendar integralmente os 2.238 hectares do assentamento para a construção de um novo parque, a ser administrado pela empresa Neoenergia. A companhia informa que o contato foi feito somente após a publicação da normativa do Incra, em 2022.

De acordo com Santos, a oferta inicial era que cada família recebesse R$ 1.000 por ano durante o período de construção. Mas a promessa mudou recentemente para R$ 1.200. “Alguns companheiros até se animaram. Mas eu não fui muito a favor, porque eu acho que R$ 100 por mês hoje não dá nem para eu pagar minha energia”, diz.

Caso aceite a proposta, a comunidade terá de deixar de produzir mandioca, caju, milho, couve e frango, entre outros cultivos e criações. Mas o assunto ainda não foi definido e continua em debate. Das 89 famílias que vivem na comunidade, 19 estariam inclinadas a aceitar a proposta da Neoenergia, dizem as lideranças.

A desconfiança faz sentido. Agricultores do Rio Grande do Norte têm se decepcionado com os valores pagos pelas empresas eólicas, como mostrou a Repórter Brasil na reportagem sobre os “Latifundiários do vento”. Muitos trabalhadores não entendem os detalhes dos acordos que assinam e, em alguns casos, as promessas das empresas não são cumpridas.

“O Rio Grande do Norte se vende como grande potência energética do país. E é porque implantou vários parques eólicos de forma totalmente desenfreada. Mas que tipo de exemplo é esse? Potência energética a que custo? A custo humano mesmo. As pessoas, as comunidades, elas foram muito prejudicadas nesse processo de implantação das eólicas aqui no estado”, opina Ravena Alves da CPT.

Dentre as promessas da Neoenergia ao PA Canto da Ilha de Cima está o título definitivo da terra. Mas os assentados são céticos. “Quem dá o título é o Incra, não uma empresa de energia eólica. Isso não existe. Como é que tu vai me dar uma coisa que tu não tem?“, questiona Ferreira.

Os assentados dizem que tentaram dialogar com o Incra e a empresa para tomar uma decisão. Em outubro, marcaram uma reunião com todos os interessados, porém, dois dias antes do encontro, a Neoenergia desmarcou a conversa.

Mesmo sem a presença de representantes da companhia, o Incra teria demonstrado preocupação quanto ao empreendimento, de acordo com Santos. Isso porque os assentados perderão acesso aos benefícios da reforma agrária – como os créditos produtivos e a assistência técnica, além da aposentadoria especial rural –, caso se tornem titulares da terra e fechem o acordo com a empresa.

“Depois que a gente assinar, eles é que vão comandar”, prevê o presidente da associação. O Incra foi questionado sobre essa negociação, mas não comentou.

Por meio de nota, a Neoenergia disse que a concessão do título definitivo é responsabilidade do Incra, não da empresa, mas ressaltou que a norma do Incra abre margem para essa negociação. “A companhia tem como princípio manter um diálogo com todos as partes interessadas no desenvolvimento sustentável baseado na transição energética limpa, renovável e justa”. Leia a resposta na íntegra.

Vento a favor

Por outro lado, alguns assentados veem com bons olhos as ofertas das empresas eólicas.

No PA Chico Mendes, em Touros, a empresa Casa dos Ventos também fez a mesma proposta de facilitar a obtenção do título definitivo da terra, em 2011, quando assinaram o primeiro contrato com os agricultores.

Embora a promessa não constasse do contrato, o agricultor Laércio Ribeiro, presidente da associação local, chegou a ter inclusive viagens pagas pela companhia a São Paulo e a Brasília para resolver o problema da titulação no Incra.

Assim que o Instituto emitiu o título de domínio, em 2018, a empresa garantiu o pagamento de toda documentação aos assentados. “A empresa pagou todas as causas que tinha lá no título. Pagou tudo, não descontou nada da gente”, diz o agricultor.

Em nota, a Casa dos Ventos ressaltou a importância dos projetos eólicos para os assentamentos, diz que se trata de uma atuação “harmoniosa” e que a publicação da instrução normativa do Incra é um exemplo da importância desses projetos para os assentados.

Outro assentamento que vê com bons olhos a chegada dos parques eólicos é o PA Brinco de Ouro. O local tem 2.655 hectares de área e é abraçado por parques eólicos. De qualquer casa, é possível ver as torres de energia.

O agricultor Severino Antônio da Silva considera que a instalação dos empreendimentos fez as comunidades da região se desenvolverem, além de ter ajudado na reestruturação das rendas das famílias, já que alguns continuam trabalhando na implantação de parques em outros municípios do Rio Grande do Norte e também de Ceará, Bahia e Santa Catarina. “Tudo favoreceu a comunidade”.

Silva vem tentando conseguir que os parques sejam instalados na área comunitária do assentamento. Os projetos não saíram do papel pela falta do título de domínio, concedido em junho deste ano. “Agora nós já podemos negociar”, conta.

Para a pesquisadora Mariana Traldi, a vulnerabilidade das populações e a falta de políticas públicas têm feito com que as comunidades aceitem condições pouco vantajosas, a fim de garantir sua subsistência. “A vida no campo para estas populações é muito difícil. É completamente compreensível que elas, ainda quando conscientes dos baixos valores pagos ou das condições abusivas, aceitem e assinem os contratos”, afirma.

Para Silva, que ainda está na fase de negociação, a expectativa é alta. “Tendo um salário fixo, com certeza ia melhorar muito. O pequeno agricultor vive porque vive, né? Trabalha aqui, lá, mas dentro da agricultura, na nossa região, não dá pra manter a família”, afirma.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil

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