01 Dezembro 2023
A emergência rápida e voraz da inteligência artificial (IA) é a força motriz por trás de inúmeras mudanças e fonte de alguma polêmica. A IA está passando pelos poros de diversos setores, sendo a cultura um dos seus maiores impactos. Se está gerando polêmicas depende em grande parte da velocidade com que expande os seus tentáculos, não deixando muita margem ou tempo para perceber até que ponto está modificando cada área e qual a melhor forma de a regular.
A reportagem é de Laura Garcia Higueras, publicada por El Diario, 29-11-2023.
A própria União Europeia, liderada pela Espanha, procura ser pioneira nisso, vendo a IA como uma oportunidade, mas também como um desafio em termos de segurança. Eles estão atualmente em negociações para fechar a nova lei antes do fim do ano. Uma intenção que se complicou esta semana após o desencontro da França, da Itália e da Alemanha, que com a sua decisão convulsionaram as negociações naquela que se esperava ser a reta final. Entretanto, cada setor está a tentar adaptar-se e compreender as suas implicações.
A tradução literária é uma delas, pois foram desenvolvidos softwares que podem acabar substituindo seus profissionais. O filólogo e professor da Universidade Pompeu Fabra, José Francisco Ruiz Casanova, refletiu sobre isso em ¿Sueñan los traductores con ovejas eléctricas? (Cátedra). Um ensaio que lança luz sobre as suas implicações para além desta profissão, devido à forma como o âmbito da IA irá redefinir a estrutura da indústria editorial e dos seus meios de produção, bem como “a forma como será lida no futuro e o ensino da tradução nas universidades”.
O especialista lembra a este jornal que a tecnologia já era utilizada há algum tempo para traduzir outros tipos de textos, como os econômicos, mas que foi a sua incursão na literatura que fez disparar “sinos de alarme”. Por trás de tudo estão interesses econômicos que vão além do papel ou da importância dada à pureza da própria cultura: “Será mais barato traduzir com máquinas do que com pessoas”.
Embora isso exija que a IA execute mais algumas etapas. Neste momento, não tem em conta o tipo de escrita ou o estilo, não trata informações relacionadas com a autoria dos textos ou a sua formação, nem sequer é capaz de compreender ironias, metáforas e outros recursos linguísticos.
Ruiz Casanova descreve, portanto, o presente como “uma espécie de infância da IA. Esta criatura ainda não tem memória ou consciência de quem está falando com ela. Alimenta-se de textos e imagens, mas não consegue dizer que “num lugar de La Mancha” pertence a Cervantes e o que isso significa. Para a IA, é simplesmente uma frase a ser imitada. Falta a parte de identificação dos traços humanos por trás da linguagem. Nem tudo está decodificado em uns e zeros”.
Esta é uma das razões pelas quais o ensaio não prevê o apocalipse da tradução literária, afirma que o que vai acontecer é uma transformação do seu modus operandi até então, de tal forma que os tradutores passarão a ser os “revisores da tradução literária, do trabalho realizado pelas máquinas”.
“Não vale a pena perder tempo resistindo. Deve ser investido na modificação dos comportamentos ou formas de compreensão necessárias para poder resolver isso. Não está nas mãos daqueles que serão afetados ao interrompê-lo. Há razões muito mais poderosas e tecnológicas aliadas a razões econômicas”, defende. Mas insiste: “Não é que os tradutores vão desaparecer, vão ter que assumir outro papel que já assumem noutras áreas”.
Outra questão que o professor investiga é que a IA se alimenta de conteúdos que devem ser digitalizados. Isto implica que tudo o que é analógico seria deixado de fora. “Existe um risco enorme de perder parte da memória da língua e da cultura. Uma parte pode ser omitida ou esquecida por não ser digital”, alerta. É verdade que cada vez mais se digitaliza, mas não está claro se algum tipo de limite será estabelecido, visto que “há sempre alguém que decide o que é digitalizado e o que não é”. Contexto que, “tomado como ferramenta política”, corre o risco de terminar em “censura”.
Além dos tradutores, o outro grande impacto da IA é a produção editorial. Ruiz Casanova se surpreende com a opacidade com que as empresas devem estar “conduzindo seus experimentos” para testar como se adaptar aos novos tempos: “Estou alarmado que não haja uma declaração pública clara dos grandes grupos editoriais dizendo onde vão colocar seu dinheiro ou para onde vão. Acho difícil acreditar que a Penguin Random House ou a Planeta não estejam considerando que isto é uma reconfiguração do seu próprio negócio. E eles têm que manter os olhos bem abertos porque isso não é uma moda passageira”.
O filólogo partilha que o novo cenário vem acompanhado de argumentos que vão ser “irrefutáveis”, como o de voltar a circular em grande escala o livro eletrônico: “Há uma produção editorial enorme que acaba por ser desfiada. Se você consegue produzir digitalmente e integrar ferramentas de tradução, você mata dois coelhos com uma cajadada só: o problema de armazenamento e a disponibilidade imediata. E sem prejudicar o planeta”.
Quando se trata de compreender como a IA está destinada a reconfigurar não só o negócio da tradução, mas também o mercado editorial como um todo, a sua influência nas leis de propriedade intelectual deve ser tida em conta. Pode ser que cópias de livros em inglês possam ser distribuídas diretamente na Espanha com dispositivos eletrônicos que incluam software que os traduz para o idioma desejado com o apertar de um botão.
“Podemos acabar numa espécie de nacionalização brutal em que as próprias regras e leis terão de mudar. Não será necessário que a Planeta compre os direitos de determinados autores, eles os venderão de qualquer lugar. Isto afetará a questão das grandes e pequenas culturas, devido a uma questão de poder econômico. O inglês não é a língua mais falada, mas terá mais presença que o espanhol num mundo editorial assim configurado”, avança o filólogo.
A possibilidade de traduzir qualquer texto com o clique de um botão significará que deixaremos de estudar outros idiomas? “Se não for necessário aprender línguas estrangeiras porque os nossos dispositivos serão capazes de traduzir todos os discursos, orais e escritos, para a nossa língua, a consciência da diversidade não se perderá mas esta será mais do que nunca alteridade, algo estrangeiro e isso nem sequer nos diz respeito, não nos diz respeito nem, para aprofundar o argumento, não nos interessa”, reflete Ruiz Casanova no ensaio sobre outro dos derivados do desenvolvimento da tecnologia. “Vamos ‘ouvir’ outras línguas faladas e ‘ ver’ suas palavras escritas, um segundo antes de a IA nos devolver a imagem e o som familiares, os nossos”, aponta sobre o possível cenário futuro.
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Inteligência artificial sacode o negócio da tradução: “Máquinas são mais baratas que pessoas” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU