18 Novembro 2023
"Mesmo diante de tantas adversidades, os africanos deixaram uma herança que moldou nossa identidade e contribuiu significativamente para a construção de um Brasil riquíssimo em diversidade cultural", escreve Eduardo Nunes, diretor de conteúdo da Alter, em artigo publicado na newsletter da Alter Comunicação, 17-11-2023.
Eis o artigo.
Às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra, é imperativo cobrar a conta que o nosso país tem com a população negra, uma dívida que se acumula ao longo de mais de 523 anos de escravidão. Ao contextualizarmos essa história de pós-colonização, de mais de cinco séculos, é inescapável perceber que é a população mais afetada por condições adversas. O Brasil foi a região que mais recebeu escravos no período de 1501 a 1900: 4,86 milhões de pessoas. Essa herança sombria da escravidão é refletida nas condições atuais, onde as comunidades – majoritariamente composta pela população negra – enfrentam as piores condições de habitação, saneamento, trabalho, educação, saúde...
Essas profundas disparidades que persistem saltam aos olhos ao analisar a realidade sanitária de milhões dos brasileiros. Estudo do Trata Brasil divulgado pelo Jornal Nacional indica que quase metade das moradias brasileiras enfrenta pelo menos uma privação nessa área, e a esmagadora maioria dessas pessoas reside nas regiões Norte e Nordeste, onde as condições de habitação são mais precárias. Nessas casas, via de regra, vive uma família composta por três ou quatro pessoas. Eles são pobres, negros e têm baixa formação escolar. É uma ironia dolorosa que, em 19 de novembro, celebraremos o Dia Mundial do Banheiro, enquanto milhões de brasileiros vivem sem esse elemento essencial de dignidade.
Mesmo diante de tantas adversidades, os africanos deixaram uma herança que moldou nossa identidade e contribuiu significativamente para a construção de um Brasil riquíssimo em diversidade cultural. O legado africano se manifesta em inúmeros aspectos de nossa sociedade, desde a culinária até a linguagem. O sociólogo Gilberto Freyre, em "Casa-grande & senzala", apontou a africanização dos hábitos e costumes do Brasil colonial, ressaltando a influência na língua portuguesa:
"Que brasileiro, pelo menos do Norte, sente algum exotismo em palavras como caçamba, canga, dengo, cafuné, Lubambo, mulambo, caçula, quitute, mandinga, moleque, camundongo, munganga, cafajeste, quibebe, quengo, batuque, banzo, mucambo, banguê, bozô, mocotó, bunda, zumbi, vatapá, caruru, banzé, jiló, mucama, quindim, catinga, mugunzá, malungo, berimbau, tanga, cachimbo, candomblé? [...] São palavras que correspondem melhor que as portuguesas à nossa experiência, ao nosso paladar, aos nossos sentidos, às nossas emoções." Assim, além da dívida histórica com a população negra, é crucial reconhecer a extraordinária contribuição cultural que ela trouxe para a formação da identidade brasileira.
Ao enfrentar os desafios sanitários e sociais, é fundamental trabalhar para construir um Brasil onde todos, sem exceção, tenham acesso igualitário aos elementos básicos de dignidade. É preciso empenhar esforços que vão além do reconhecimento. Mas que permitam corrigir as injustiças que mantêm quase 9 milhões de domicílios sem acesso à rede de água; mais de 16 milhões sem abastecimento frequente; 11 milhões sem um reservatório – a caixa d’água – e 22 milhões sem coleta de esgoto.
Esses números não são apenas estatísticas frias. São parte de uma conta que o Brasil precisa pagar; são a expressão concreta de uma desigualdade enraizada que perpetua a vulnerabilidade de comunidades historicamente marginalizadas.
Leia mais
- “Precisamos de uma ministra negra para o STF começar a dar respostas ao racismo estrutural no país”. Entrevista com Ingrid Farias
- Maioria dos mortos pela polícia no país são negros e jovens. Entrevista com Robson Sávio Reis de Souza
- Pesquisa aponta que 65% dos pais negros já se sentiram discriminados ao cuidarem de seus filhos
- Os 'Oito de Janeiro' do Povo Negro ou uma carta aberta ao Presidente Lula
- “O feminismo negro não divide”. Entrevista com Djamila Ribeiro
- O negro no Brasil é um lugar móvel. Entrevista com Muniz Sodré
- Movimento negro cobra maior representatividade sob Lula
- Equipe de transição de Lula não possui negros nordestinos
- O racismo nosso de cada dia é a negação do Atlântico Negro
- Só a radicalização salva os negros. Artigo de Ricardo Corrêa
- ‘Parem de nos matar’: articulação negra convoca ato em Porto Alegre (RS) contra o racismo e a violência policial
- Brasileiros reconhecem racismo, mas negam ser racistas
- Judiciário e democracia, uma conciliação difícil no Brasil
- Para arejar a cúpula do nosso Judiciário
- Um mergulho nas filosofias africanas
- Do samba ao funk, o Brasil que reprime manifestações culturais de origem negra e periférica
- Vencemos a escravidão formal, mas não o escravismo. Artigo de Fernando Horta
- “Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas”. Entrevista com Laurentino Gomes
- Escravidão, e não corrupção, define sociedade brasileira, diz Jessé Souza
- Talvez a escravidão nunca tenha sido abolida no Brasil, diz juiz do trabalho
FECHAR
Comunicar erro.
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Tá na hora de pagar a conta! Artigo de Eduardo Nunes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU