10 Novembro 2023
"Talvez a contribuição mais importante e criativa de Dussel seja a sua contribuição para a filosofia da libertação sobre a qual o filósofo mexicano Leopoldo Zea, a quem ele identifica como 'o grande mestre do pensamento latino-americano', teve uma influência fundamental. Foi ele, nas palavras de Jorge Zúñiga, quem 'despertou Dussel do sonho eurocêntrico, tornando o pensamento do filósofo mexicano parte integrante da sua filosofia de libertação, conduzindo-o por caminhos de maior complexidade conceptual e reflexiva'", escreve Juan José Tamayo, emérito da cátedra “Ignacio Ellacuría” de Teologia e Ciências da Religião, teólogo da libertação e autor de "Teologias do Sul: a virada descolonizadora" (Editorial Trotta), em artigo publicado por Religión Digital, 08-11-2023.
No dia 5 de novembro, morreu Enrique Dussel, um dos intelectuais mais criativos do nosso tempo nas diferentes disciplinas que cultivou: filosofia, teologia, ética, história e ciência política, figura-chave da teologia e da filosofia da libertação na América Latina e um dos as principais referências da virada decolonial e, no campo político, da esquerda latino-americana. Nascido em Mendoza, Argentina, em 1934, doutorou-se em Filosofia pela Universidade Complutense, de Madri, formou-se em Teologia no Instituto Católico, de Paris, e obteve o doutorado em História na Sorbonne. Viveu dois anos em Nazaré, cidade de Jesus de Nazaré, onde seguiu a espiritualidade da pobreza e do desapego de Charles de Foucault e Paul Gauthier e trabalhou como carpinteiro numa cooperativa árabe.
"1959-1961", comenta Dussel, "são os dois anos mais gratificantes da minha vida”. Trabalho manual 10 horas por dia. Oração intensa. Camaradagem como nos tempos do fundador do cristianismo. Estudo vivo de hebraico; lendo na língua de Jesus. Visita semanal à sinagoga, onde [Jesus], desenroscando o pergaminho, lia: 'Ruach Adonai alay...!' (O Espírito do Senhor está sobre mim e me ungiu para dar a boa nova aos pobres…!) […]. Tudo o que a teologia da libertação mais tarde expressará teoricamente, eu vivi antecipadamente com Paulo em Nazaré […] Todo o resto da minha vida, nos últimos 60 anos, tem as suas raízes em Nazaré. Uma bela memória fundadora da longa vida de Enrique Dessel.
Retornando à Argentina, lecionou durante vários anos como professor universitário até que, depois que ele e sua família sofreram um atentado a bomba em sua casa e foram expulsos junto com outros colegas da Universidade de Mendoza, exilou-se no México em 1975, onde lecionou em diversas universidades e obteve o merecido reconhecimento intelectual não só em nível latino-americano, mas mundial.
Tendo em conta a sua formação e investigação interdisciplinar, foram numerosos os campos em que brilhou com luz própria. Destacarei aqui quatro que exerceram uma influência importante na teologia mundial europeia e na minha própria teologia: a história da Igreja Latino-Americana, a teologia da libertação, a virada decolonial e a filosofia da libertação.
Dussel é justamente considerado um dos principais inspiradores da nova história do cristianismo latino-americano, cuja primeira obra foi hipótese para uma História da Igreja na América Latina, escrita em Münster, enquanto acompanhava as aulas de Joseph Ratzinger, publicada pela editora Nova Terra em 1967 e ampliada na segunda edição alguns anos depois com o novo título: História da Igreja na América Latina: colonização e libertação 1492-1973.
Posteriormente, participou da criação da Comissão de História da Igreja na América Latina (CEHILA), entidade que presidiu de 1973 a 1993 e para a qual escreveu Introdução geral à história da Igreja na América Latina, volume I. O projeto conta com numerosos volumes, cuidadosamente editados pela Sígueme, nos quais colaboram prestigiados historiadores latino-americanos e caribenhos. É uma história completa, que recupera os marcos mais importantes do cristianismo libertador latino-americano e suas figuras proféticas mais relevantes, de Bartolomé de Las Casas ao arcebispo martirizado de San Salvador, Dom Romero, bem como a práxis dos cristãos nos movimentos de lançamento. É escrito a partir dos pobres como lugar social e hermenêutico e como critério ético a partir do qual julgar os colonizadores.
Dussel pertence à primeira geração de teólogos da libertação latino-americanos, que cultivaram ininterruptamente durante 60 anos e parte do que a realidade mostra e revela: por um lado, o fato generalizado da opressão das maiorias populares; por outro, a defesa dos direitos de pessoas e grupos a quem são sistematicamente negados. É uma teologia que surge da práxis da libertação, uma teologia ética, pensada a partir da periferia e crítica da presunção da teologia europeia por ser possuidora de “uma universalidade unívoca” e por se recusar a ouvir os outros, que considera “bárbaros”.
Ele é o teólogo latino-americano que refletiu de forma mais rigorosa e sistemática sobre o impulso de Marx e do marxismo ao discurso teológico e considera que a crítica de Marx à religião é uma crítica fetichista que recupera as tradições anti-idólatras do antigo Israel, um cristianismo profético e libertador. Na sua opinião, Marx mantém objetivamente um discurso teológico implícito que é negativo e metafórico, mas não menos relevante por esse motivo. As Metáforas teológicas de Marx são sua obra mais emblemática sobre o assunto.
A principal contribuição de Dussel para a virada decolonial é a sua proposta de transmodernidade em oposição ao pós-modernismo de alguns intelectuais do Norte. Dussel não acredita que seja possível aplicar, imitar ou desenvolver a Modernidade em outras culturas, uma vez que ela é indissociável da colonialidade e constitui a dominação das culturas periféricas e coloniais. Ele acredita que é necessário superar radicalmente a Modernidade e convergir para uma nova Era da humanidade, na qual as culturas terão de ser respeitadas como iguais numa cultura mundial pluriversal que possa articular todas as culturas existentes em semelhança. Para isso, propõe um diálogo filosófico das culturas do Sul, Sul-Sul e Sul-Norte. O resultado é a descolonização da cultura, da epistemologia e da tecnologia. Ele também defende a descolonização epistemológica da teologia.
Mas talvez a contribuição mais importante e criativa de Dussel seja a sua contribuição para a filosofia da libertação sobre a qual o filósofo mexicano Leopoldo Zea, a quem ele identifica como “o grande mestre do pensamento latino-americano”, teve uma influência fundamental. Foi ele, nas palavras de Jorge Zúñiga, quem “despertou Dussel do sonho eurocêntrico, tornando o pensamento do filósofo mexicano parte integrante da sua filosofia de libertação, conduzindo-o por caminhos de maior complexidade conceptual e reflexiva”.
A filosofia latino-americana de libertação é, nas próprias palavras de Dussel, “a primeira europeidade verdadeiramente pós-moderna e superadora [...], uma filosofia de libertação da miséria do homem latino-americano”, que é, ao mesmo tempo, “ateísmo”, do Deus burguês e a possibilidade de pensar num Deus criativo, fonte da própria libertação”. Felizmente temos hoje o seu trabalho completo sobre filosofia da libertação no livro editado por Akal Philosophy of Liberation. Antologia.
A ética e a política são dois dos grandes temas da reflexão filosófica e teológica de Dussel em diálogo crítico e simétrico com alguns dos pensadores mais relevantes do nosso tempo: Lévinas, Ricouer, Apel, Vattimo, Taylor... Esse é sem dúvida um dos legados mais importantes que nos deixa e que podemos ler em obras como Ética da libertação na era da globalização e política de libertação, editada por Trotta.
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Enrique Dussel: filósofo e teólogo da libertação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU