09 Novembro 2023
O artigo é de Xabier Pikaza, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital, 06-11-2023.
Enrique Dussel foi um grande conhecedor da filosofia ocidental e da história da América Latina, o pensador fundamental da filosofia da libertação, que quis recriar, a partir de uma perspectiva semítica (de fidelidade à história) e de uma experiência dialógica (todo o pensamento é, em sua opinião, um exercício de relacionamento pessoal), recebendo a influência de autores judeus como E. Levinas, e de teóricos cristãos da religião (como R. Girard) interessados em superar o “humanismo ontológico grego” a partir de uma metafísica fundada nas vítimas (estrangeira/viúva/órfã).
Foi o melhor conhecedor e compilador da práxis da Teologia da Libertação, que elaborou a partir de uma perspectiva histórica, como animador e presidente da Comissão de História da Igreja da América Latina (CEHILA), que reinterpretou a história da América, depois da Hispânica conquista, na perspectiva dos derrotados, vencidos e pobres.
Foi um homem brilhante, capaz de um diálogo intelectual especializado a partir dos problemas mais profundos da modernidade ocidental, mantendo, ao mesmo tempo, um forte compromisso ético (bíblico, hebraico e cristão) ao serviço dos despossuídos da sociedade. A sua ética da libertação foi e continua sendo uma das referências básicas do pensamento cristão do século XX.
Entre as suas obras, destacam-se duas que tentaram estabelecer as chaves do humanismo ocidental, grego e semita: cf. Humanismo semítico (Buenos Aires 1968), Humanismo helênico (Buenos Aires, 1975)) e Dualismo na antropologia do cristianismo (1974). Outras obras de Dussel são: Cultura latino-americana e história da Igreja (Buenos Aires, 1968); Humanismo semítico (Buenos Aires, 1968, em diálogo com o pensamento judaico atual); Método para uma filosofia da libertação (Salamanca, 1974); As metáforas teológicas de Marx (Estella, 1993); Ética da libertação na era da globalização e da exclusão (Madri, 1998); Rumo a uma filosofia política crítica (Bilbao, 2002); Ética do discurso e ética da libertação (com KO Apel; Madri, 2005). Foi editor da História Geral da Igreja na América Latina I-XII (Salamanca, 1981-1995).
Há muito que sou leitor regular de E. Dussel, cujas obras citei e apresentei em vários fóruns e revistas em Espanha. Não me considerava de forma alguma um discípulo, mas sim um colega, pela semelhança de nossas abordagens bíblicas, históricas e filosóficas. A partir de diferentes perspectivas, com diferentes biografias, nos interessamos por temas semelhantes, chegando a conclusões convergentes, ele na filosofia da história, eu na teologia bíblica.
Pude confirmar isto em um congresso sobre Teologia da Libertação, realizado na Universidade de Würzburg, em 1984. E. Dussel apresentou um trabalho sobre as comunidades de base no Brasil; outro sobre os fundamentos teológicos da religiosidade popular. Entre os espanhóis também participaram I. Tellechea, S. Vidal, L. Maldonado e A. González Montes.
Dussel e eu tivemos tempo para comparar nossas perspectivas, ligadas pela tentativa de recuperar a “filosofia semítica” da Bíblia e o pensamento de autores básicos como R. Girard, E. Levinas e G. Gutiérrez. Fiquei muito interessado na sua visão “bíblica” da história da libertação na América Latina. Ele se interessou muito pela minha visão libertadora da “filosofia” da Bíblia, como verá quem continuar lendo esta nota.
A cidade de Wüzrburg, na Alemanha. (Foto: Mateo Krossler | Unsplash)
Foi uma refeição e uma noite intensas, numa esplanada com vista para o rio, em Würzburg, em frente às vinhas da colina da outra margem, numa tarde quente de início de verão. Nunca esquecerei os temas, nem a paixão, nem a esperança para o futuro daquela conversa, ele está mais interessado na história libertadora da América, eu estou mais interessado na filosofia de libertação subjacente da Bíblia. Não guardo o texto original em espanhol da minha apresentação. A tradução alemã encontra-se no texto da ata, publicada online por E. Klinger e R. Zerfass, Die Basisgemeinden, Echter V., Würzburg, 1984.
Despedimo-nos com desejos, promessas e projetos colaborativos. Mas ao chegar à Espanha, naquele mesmo verão de 1984, tiraram-me o nihil obstat e tive que deixar de lecionar por alguns anos. Dussel teve que se mudar para o México. A vida mudou de rumo para nós e quase não interagimos desde então. Tenho acompanhado seus escritos. Ele seguiu o meu... mas de longe. Agora, lembrando-me dele após a sua morte, sinto-me honrado por ter sido seu amigo durante alguns dias na conferência em Würzburg, há quase 40 anos... e uma refeição e uma tarde de conversa muito intensa.
Alguns autores, incluindo teólogos, defendem que existe uma filosofia explícita na própria Bíblia, insistindo na importância da práxis. Neste sentido, o exegeta espanhol Xabier Pikaza diz a respeito dos profetas de Israel: “souberam interpretar o curso da história a partir dos pequenos, dos pobres da terra, dos justos perseguidos, etc. Desta forma, a mesma Escritura de Israel passa a ser apresentada como mais filosófica do que a própria filosofia. E pouco depois refere-se à “filosofia ativa da Bíblia” que “sabe que não basta saber em forma de teoria: é preciso agir de forma transformadora” (cf. X. Pikaza, 130, “Os pobres de a Bíblia e a Bíblia dos pobres", Vida Nueva, Madri, n. 1865 [1992], p. 3-9).
A trilogia de Dussel (Pensamento semítico, Pensamento helenístico; Práxis latino-Americana e Filosofia da Libertação, 1983) visou estabelecer as raízes intencionais mais radicais do mundo latino-americano.
Nesse sentido, embora Dussel deva muito a Lévinas, na realidade tanto Lévinas quanto Dussel se inspiram na mesma tradição (a semítica) e criticam a mesma (a grega). Das três obras da trilogia consideramos Humanismo hemítico a mais importante e a mais original. Com efeito, o Humanismo helênico é obra de um pensador ainda imaturo, que depende demais das fontes que glosa.
A trilogia termina com o Dualismo na antropologia do cristianismo. A tese básica que Dussel pretende demonstrar é a seguinte: “A compreensão cristã do homem constituiu-se no horizonte do pensamento hebreu e evoluiu homogeneamente no cristianismo primitivo, porém, originando o cristianismo (que é uma cultura que não deve ser confundida com o cristianismo), devido à helenização da experiência primitiva, a linguagem e os instrumentos lógicos de interpretação e expressão foram alterados, caindo assim num dualismo mitigado” (DAC, 17).
Aqui Dussel confronta a opinião de Werner Jaeger e René Grousset, entre outros, que consideram que a concepção cristã do homem era na verdade uma síntese ou sincretismo entre o semítico e o grego. Dussel considera, ao contrário, que na realidade o que parecia um sincretismo antropológico nada mais era do que a assunção, pelo pensamento cristão primitivo (basicamente o da patrística) de um instrumento lógico e de uma conceituação, a partir dos quais a antropologia cristã será interpretada, mas mantendo os mesmos conteúdos intencionais propriamente semicristãos.
A influência grega deve ser buscada em ferramentas lógicas no "nível ôntico e ontológico, mas não no nível metafísico dos conteúdos intencionais últimos" (Dualismo, 18). Desta forma, embora com uma cobertura linguística grega, o fundamento último e abrangente da metafísica hebraica é mantido na concepção cristã do homem.
O cristianismo assumiu o grego, mas sem abrir mão da sua própria compreensão do ser. As estruturas antropológicas cristãs são apresentadas como uma "compreensão do homem que se apoia numa metafísica implícita, precedente e concomitante" (Dualismo, 20). Daí ele falar de "dualismo mitigado". Em Gregos e semitas, ele agora estuda a síntese do cristianismo.
A Reconquista concluída na Espanha em 1492 se estende até a Conquista da América e da mesma forma que houve um “choque” de culturas entre os gregos e os semitas no cristianismo antigo, haverá um “choque” de culturas entre os cristãos e o americano. Trata-se de analisar o confronto de dois “mundos” diferentes: o indígena e o europeu. Neste chamado “encontro” de dois “mundos” um prevalecerá sobre o outro. Um será o opressor e o outro o oprimido. A cultura ocidental não será apenas “etnocêntrica”, mas também “etnocida”.
Livro de Xabier Pikaza sobre pensadores cristãos. (Foto: Divulgação)
Etnocídio é "a destruição sistemática dos modos de vida e de pensamento de pessoas diferentes daquelas que levam a cabo a destruição", de tal forma que enquanto o genocídio mata pessoas "o etnocídio as mata no seu espírito", de tal forma que enquanto “a supressão física é imediata, a opressão cultural adia os seus efeitos por muito tempo dependendo da capacidade de resistência da minoria oprimida. Mas é ainda mais sangrento quando os oprimidos não são uma minoria, mas sim uma maioria como aconteceu na América e cujos efeitos ainda hoje continuam em forma de dependência e não só cultural, mas também econômica, política, filosófica, etc.
Diante da dependência, a libertação é necessária. Entre 1968 e 1974, o pensamento de Dussel mudou quase radicalmente em termos de humor, abordagem, método e tema. Dussel afirma que após o surgimento da Filosofia da Libertação “toda pesquisa adquire um novo significado, que permaneceu não apenas no nível ôntico, mas não ultrapassou a ontologia, que é a raiz de todo dualismo” (Dualismo, 11).
O método da filosofia dusseliana da libertação será, então, fenomenológico e refletirá sobre a pessoa do Outro, concebido como o pobre, o órfão, a viúva. etc., aos quais o próprio Dussel se referiu na trilogia antes de seu encontro com Levinas. Neste sentido nos parece que estes três livros são algo como uma pré-filosofia de libertação, na medida em que refletem sobre a pessoa que, sendo oprimida, deve ser libertada.
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Enrique Dussel (1934-2023). Um tema pendente: filosofa bíblica, historia da liberação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU