A morte e o luto, após uma vida bem-aventurada. Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria

E a morte na guerra, na Terra Santa? (MT 5,1-12)

Foto: Andra C. Taylor | Unsplash

02 Novembro 2023

"A morte faz parte da finitude de nossa vida. A vida é uma arte, um eterno rodízio do nascer e morrer. Uns vão e outros vêm. E a vida continua o seu curso. A morte, no entanto, é o princípio de sabedoria para quem entendeu o seu sentido. Entenda isso, e a dor da morte natural vai ser mais amena, vai passar".

A reflexão é de frei Jacir de Freitas Faria, OFM, doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH), mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e professor de Exegese Bíblica. É membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB), padre franciscano e autor de dez livros e coautor de quinze.

Eis o artigo.

O Dia de Finados é sempre um tempo propício para pensar sobre a morte, os mortos e o luto. Depois de uma vida bem-aventurada, chegaremos todos à Morada Celeste. O texto inspirador de nossa reflexão é o das bem-aventuranças de Mt 5,1-12.

A morte faz parte de condição humana. Ser um bem-aventurado é um estar a caminho. Por que morremos? Quem já não sofreu com a morte de um amor, de um pai, de uma mãe, de um parente ou de um amigo? Só quem passou por isso sabe o quanto dói. Eu vivi intensamente essa dor, com a Páscoa de meus pais. E a guerra que mata inocentes no conflito entre o Hamas (Palestina) e os sionistas (Israel)? Esse tipo de morte também merece nossa reflexão.

No passado, a morte era celebrada com intensidade. Nas casas, o falecido estava rodeado dos parentes. Na última agonia, uma vela era colocada nas mãos do falecido, daí a expressão velório à luz de velas. Os familiares expressam o sofrimento por meio roupas pretas ou tarjas pretas na roupa. O caixão era produzido pelos familiares. O tempo passou, surgiram as funerárias para preparar o corpo no caixão. A morte passou a ocorrer nos hospitais, nos Centro de Tratamento Intensivo (CTI). O falecido é velado em velórios públicos. O enterro é rápido. Parece que o morto perdeu sua dignidade e deve ser esquecido logo. É a vida pós-moderna!

Já as mortes no Oriente Médio vêm de longa data. Ela tem raízes bíblicas na vida de povos descendentes da Abraão: judeus, palestinos e árabes. Esse conflito entre Israel e a Palestina revela a herança do pensamento bíblico de que se pode matar em nome do Sagrado. Guerra é fruto da violência humana. A violência gera violência. Outros terroristas surgem. Outros violentos matam. O Hamas e Israel estão agindo com violência. Em ambos os lados têm surgido grupos radicais religiosos judaicos e muçulmanos. A atitude terrorista do Hamas é indefensável e inadmissível. O Hamas não representa o pensamento da grande maioria do povo palestino. O sionismo do atual governo de Israel é uma doutrina racista de supremacia judaica que coloniza tirando as terras dos palestinos destinada à criação do Estado da Palestina. O sionismo foi movimento iniciado no final do sec. XIX, por Theodor Herzl com o objetivo de ter uma pátria para os judeus dispersos pelo mundo. A Palestina, ocupada por árabes, foi escolhida, em 1897, no Congresso Sionista.

O nazismo cercou os judeus em campos de concentração e os matou. Uma barbárie! O hoje do Israel sionista repete a cena ao cercar os palestinos em Belém e na Faixa de Gaza, Israel e Hamas matam. Triste sina da terra, onde o palestino Jesus de Nazaré nasceu.

Ele que nos ensinou a viver em paz, a ser um bem-aventurado, a estar em marcha pela paz. Ele ensinou: “Em marcha os que têm sede e fome de justiça, porque serão saciados. Em marcha os que lutam pela paz!” Continuem lutando, mas sem a arma que mata, sem a guerra.

Quem está em marcha é um bem-aventurado, pois está no caminho. O caminho é sempre uma marcha que não para nunca. O caminho se faz caminhando, dizem os poetas. A vida é sempre uma marcha. Ai de nós se não soubermos caminhar para o Bem. Ai daqueles que perdem o bonde da história. Tudo passa rápido. O que é hoje, amanhã não será! Nessa perspectiva, reflitamos sobre a morte natural, o luto e a vida pós-morte.

A morte faz parte da condição humana, embora que, em tempos pós-modernos, nós a ignoramos. Quando ela chega, os corações dos vivos dilaceram numa dor que parece ser interminável. Bate no peito, a cada segundo, o desejo incomensurável de ver quem amamos, mesmo sabendo que no espaço, no tempo físico, na vida terrena, isso nunca mais será possível.

No jogo da vida, as cartas mudam de posição. Os mortos, contemplando a Deus, nos veem de outra forma, em outro tempo, em outro modo de amar. Para os mortos, o nosso tempo deixa de existir. Já o tempo dos vivos se resume em viver a dor do luto. Passar pelo luto para romper o tempo da morte.

O luto é uma experiência forte para muitos de nós! O entardecer de um enlutado é uma dor doída. E como eu senti isso. Quando o dia se fecha nas suas energias vitais, uma dor súbita chega sempre com um vigor inexplicável. E como dói saber que não há o que fazer, a não ser sentir a dor e canalizá-la para a memória do falecido, rezar e seguir a faina do dia que parece declinar como a morte. Quem sabe o dia seguinte será diferente? Não! Não será, pelo menos nos primeiros dias, semanas e meses. Quando o outro dia amanhece, a dor é a mesma. Tudo gira em torno do trágico da vida, e perguntas sem fim acompanham o dia a dia: Por que isso está acontecendo comigo? Por que eu não agi desse ou daquele modo? Por que eu me descuidei na assistência devida? Por que eu não amei mais? Os porquês se tornam infinitos. Nada de resposta convincente, mas apenas possibilidades que não são mais passíveis de realização. Tudo passa, e o que podia ter feito não mais poderá ser realizado. Eu podia ter amado mais, mas não amei. Eu podia, mas não posso mais. Agora, tudo é passado. E como dói perguntar sem poder voltar ao túnel do tempo.

Todos nós devemos encontrar o seu modo para fechar o luto. Caso contrário, adoecemos e morremos, ainda que permaneçamos vivos. Entra em depressão, pois fica o tempo todo buscando a felicidade onde ela não mais existe, no “amor” de sua vida que já foi embora. O falecido não mais vai resolver os meus problemas, ele não mais vai completar o dia, as horas de solidão, o recarregar as energias. Fechei o luto por minha mãe com fé e escrevendo a minha experiência de enlutado.

Fechar o luto com fé na ressurreição para se abrir ao amor de quem partiu, de modo que o amor dele permaneça unido a nós como teias de fios que se entrelaçam, invisivelmente, na eternidade do tempo; como uma borboleta que sai do casulo/corpo, que nos unia fisicamente, para estar em todos os espaços e tempo, espalhando o amor. O olhar de quem morre atravessa o tempo e o espaço, pois eles pertencem ao tempo de Deus.

Com o tempo, a própria condição humana se encarrega de amenizar a dor, mas libertar-se dela é impossível. A dor transforma-se em saudade, em memórias de um bom tempo vivido. O ainda vivente parece conversar com o falecido, estreitar laços que nunca foram alinhados. Lembranças de um tempo que já passou e não volta mais. Lembranças! Somente lembranças! E nada mais! Com a morte, o falecido devolve a Deus o dom da vida recebido dele. Para nós, resta seguir o caminho das flores que oferecemos aos nossos mortos. Flores de amor eterno que transformam nossas lágrimas em altares de morte/vida/ressurreição na eternidade no tempo, no amor e no perdão.

A vida é uma viagem de trem no túnel do tempo cronológico. Viajamos em comboio, vagões da vida se entrelaçam em uma única corrente, em destinos variados, mas todos chegam à estação final. No entanto, no decorrer do existir, na viagem de nossas vidas, os lugares vão sendo ocupados com esposo(a), filhos(as), amigos(as), parentes e por aqueles que não conhecemos.

No decorrer da vida, por circunstâncias diversas, os amores mudam, conhecidos vão mudando de vagão, mas seguem a viagem. Outros deixam de ser amigos e mudam de vagão. Uns viajam ao nosso lado e nem nos damos conta. Assim parece ser a vida até o dia em que os amores verdadeiros descem definitivamente para nunca mais embarcarem: mãe, pai, filho(a), esposa(o). Eles descem do “trem” da vida. O comboio segue. A vida continua e não há mais nada a fazer, a não ser conviver com a dor da partida, aceitar a morte dos outros e esperar a própria morte, aumentar a fé e pedir a Deus que nos conforte. Seguir a viagem, apesar do sofrimento, com a mesma fé e a esperança de reencontrar nossos mortos na eternidade que não passa, no encontro definitivo com Deus, no Amor e sem sofrimentos.

A morte! A morte faz parte da finitude de nossa vida. A vida é uma arte, um eterno rodízio do nascer e morrer. Uns vão e outros vêm. E a vida continua o seu curso. A morte, no entanto, é o princípio de sabedoria para quem entendeu o seu sentido. Entenda isso, e a dor da morte natural vai ser mais amena, vai passar. Receba-a como irmã morte, como ensinou São Francisco de Assis. No entanto, na marcha da vida, nunca diga sim à morte que vem das guerras. E serás um bem-aventurado!

Notas

[1] Confira a nossa aula sobre o porquê desse conflito o Hamas (Palestina) e os sionistas (Israel) no nosso canal Bíblia e apócrifos com Frei Jacir.

[2] Para compreender o sentido da morte, permita-me sugerir o meu livro: FARIA, Jacir de Freitas. O medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte. Petrópolis: Vozes, 2019.

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