O cosmo com extensão do corpo-casa-território, sentidos de uma bioética. Artigo de Luiz Augusto Passos

Obra "As entidades intergaláticas conversam para decidir o futuro da humanidade", de Jaider Esbell. (Foto: Filipe Berndt | Millan Gallery)

21 Outubro 2023

"Nunca estamos sozinhos no universo! Quando estamos com nossos irmãos nativos desta terra de tronco linguístico aruaque, os Guaranis Kaiowá , seja em suas aldeias originárias ou nas retomadas, começamos a perceber o valor dos elementos da natureza, na sobrevivência da alma/psíquico de sua forma de habitar e viver a corporeidade que se alonga para um universo sem fim. Nesta caminhada de partilha e aprendizagens, seja por ação solidária ou por acampar nas rodovias, pela luta e defesa do seu território, contra a PL 490, dimensões nas quais, Adma – por designação da vida – esteve imersa não apenas apreendendo os processos, mas permitindo com docilidade, e por consonância também dos seus ancestrais, poder dar-me conta de que não era um corpo comungante ao lado de outros tantos corpos, de certa forma essa maneira ritual de aprofundamento da raízes de estar, viver, sofrer era também um exercício de conjunção e comunhão".

O artigo é de Luiz Augusto Passos, filósofo e professor associado da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

Eis o artigo.

Vivemos uma modernidade que nunca foi apenas uma “crise”: se cingiu e se escondeu sob roupagem filosófica que negava sua terrenidade, por medo do contágio. Cingia sua dureza por duros raciocínios terminais, adejados por nuvens perenes, afirmando dogmaticamente sua isenção crítica e a veracidade acerca do cosmo, do mundo, e o medo à toda fragilidade, de um mundo mutante que viesse a relativizá-la. Trouxe dentro dela, o medo de se apresentar em sua fragilidade e nudez, cingida pelo discurso crítico – “incorruptível” – ninado dos filósofos, que odiavam mutações e fragilidades: a dureza os impedia de respirar. Não queriam qualquer contato com a carne, com o sangue, com o trabalho e o suor: eis o porquê esta filosofia se definia metafísica!

Filosofia esta que se despediu do corpo, do suor e do trabalho. Escondia-se do que viesse exprimir sua condição cósmico-terrena, tiravam o pó ardido da terra, colada em suas peles. Curtiam a necessidade de trilhar toda massa do chão do mundo, para reafirmar a rejeição de toda alteridade, salvo a reiteração da mesmidade abstrata como padrão irretorquível, por que negar? Quase invisível aos olhos que não podem enxergar a verdade sem esconder o medo e a fragilidade.

A imaterialidade do pensamento expresso em categorias filosóficas, permutava o suor e a carne, pela sutileza incomensurável do espírito. À natureza permanente da criação material, se contrapunha a alteridade espiritual, supostamente superior, do sujeito humano. E, é desta filosofia esvai das dobras guerreiras que se empresta a desigualdade, entre o corpo material amassado pelo delírio da grandeza das coisas do espírito.

O corpo nu, disposto e exposto à carne considerada fraca será escondida por contrapor a primazia do eu – consciente – da psique na diferença étnico-racial, para nunca mais misturar a identidade do trigo de não apodrecer com o joio – estabelecendo a diferença entre o nu, o explícito e o cingido: o segundo sempre maior porque aperta! Diante da negação do outro, por não entender a pluralidade cultural em que este eu está inserido, por mais que pareça igual, somos tod@s/es singulares que emergem da condição humana única para tod@s/es, condição, aquela que Merleau-Ponty denomina – Corps Propre (Corpo próprio), por nossa indissociável singularidade que não se extingue de sua completa idiossincrasia. Todavia é o mesmo Merleau-Ponty que rejeitando as díades irreconciliáveis da escolástica, e, inclusive corrigindo-a, ao mesmo tempo, - que a contradição não é um estágio de anemia e que soaria a Kant como contraditório, e, contudo, nunca foi e não o é! O Corpo próprio com sua singularidade não tem medo de estar  enredado terminalmente, também, na universalidade de sermos, com todas as outras coisas do universo, manifestação da mistura de um elemento comum de todos/as/es, sem quaisquer exceções: que o filósofo Ponty denomina Carne [1].  

Maurice Merleau-Ponty dizia que somos únicos singularmente diversos (Corps Propre). Ninguém é igual a ninguém; mas, ao mesmo tempo, somos uma universalidade pela nossa identidade enquanto espécie (Carne): com todas as outras Criaturas. Essa mescla que nos tira da alienação de ter que escolher entre um polo ou o outro da dialética, e poder sequestrá-la de um monismo voltado a um lado só, jamais será verdadeiro. Somos, inacreditavelmente – mistura!

A continuidade da nossa existência está conectada indissociadamente ao ecossistema, posto que não somos sem ele. Precisamos mudar nossas conquistas, nossos estilos comportamentais, nossas agendas sociais e políticas. É urgente a necessidade da ressignificação, do fazer existencial. Precisamos nos permitir viver os olhares de outr@/es, sem pré-julgamentos estabelecidos gerados pela sociedade do consumo, não permitindo que a assepsia kantiana, privatizada do poder do colonizador que poderá sempre fazer escolhas a partir do seu controle unitário, e fazer concessões comprometendo em parte o futuro da humanidade, sacrificando o bem-viver, a comunhão, a bem-querença e a dialética viva dos contrários. Deixemos Kant descansar!

Ao pensar em uma sociedade enferma, precisamos refletir e entender dos limites da moralidade, e da ética humana, imposta pelos códigos normas positivistas, reserva de privilégio para brancos, ricos, sequestradores das terras, determinação da justiça de um lado só, contra a condição primária da nossa existência humana, em partilha com a universalidade.

A relação da ética é complexa e tem como lastro três dimensões: a epistemologia, o desejo, e a emancipação. É complexa porque precisa ser uma coisa viva que excede aprendizagem, maturidade e temporalidade, para ser concebido, com o sentido do respeito à solidariedade dos bens ao coletivo.

Cada ser humano é fruto da construção história da humanidade. Carrega em si próprio uma finalidade de poder ser, ele mesmo um si mesmo, por meio da sua ex-sis-t-ência, que o desafia a cada segundo no desequilíbrio das certezas.

Constrói, solidário, o caminho, o pensamento dos seres humanos e poderão avaliar o que farão com os relacionamentos estabelecidos entre si, como tod@s/es. É preciso que nossa vontade, ações e lutas produzam uma mudança de consciência capaz de levarem, sem sustos, formas compartilhadas com a história da sociedade, com as necessidades urgentes dos diversos movimentos em vista da efetiva transformação da vida, do sentido, do amor, da esperança de ter valido a pena.

A representação desses movimentos-macros é demonstrada por meio da cultura, da materialização da vida, e da sua prática cotidiana, dos conflitos e tensões internas e externas o qual produzem os bens materiais, na sociedade. Na verdade, a vida diária, a vida cotidiana, a vida de pé no chão, sabe que o conjunto das propostas das ciências não podem a longo prazo se verificar sem grandes perdas. Ao mesmo tempo, a natureza mostra que há um fator, que Freud incluía em sua Psicanálise, tanto quanto as considerações de Jung, que havia uma dimensão incomensurável de energia no corpo vivido, que se movimentava muito mais por dimensões instintivas, não domináveis que abria, como esperança que dobrava fatores frágeis.

Jung mostrava o quanto aquilo que foi chamado também na psicanálise como fator determinante, pois emerge de certas formas arquetípicas, instintivas, que ultrapassavam o movimento lerdo ou excessivamente rápido com que se produzia atividades desalinhadas, consumindo muitas forças, que se gastavam – e sem a resposta eficaz à necessidade cotidiana – da demanda exigida pela saúde. Jung definiu a existência de um processo considerado talassa, que era uma energia ancestral, pela qual indivíduos que realizavam corridas, em busca de alcançar a sobrevivência de pessoas, em alta velocidade, que não poderia ser obtido, pelos processos normais de locomoção. Aceitavam, por isso a dor, a raiva, o desespero, a acima de tudo a fome de sobrevivência, quando açoitados produzindo um instinto de sobrevivência, que não raro, triplicavam sua força física e psíquica, para levarem ou trazer coisas que garantiriam uma performance em favor da sobrevivência coletiva! Não se pode esquecer nos limites o talassa!

A categorização pela homogeneidade, e o hábito cotidiano, e a repetição enclausura a subjetividade, a criatividade; invertem o valor do ser em detrimento da materialidade do capital social. Reduzem-e-reconduzem pela violência o conceito das nações, pela adesão do consumo fruto da perspectiva eurocêntrica, alimentando a pedagogia da morte (tânatus/thanatos) via o ter, o poder e o valer, das relações que apelidamos civilidade, como expressão de diferentes formas de racialização étnico-cultural.  

É preciso que se afirme: Direitos são todas as formas relativas à vida do universo, que nos precederam a nós mesmos, e nos precedem pois somos anteriores a nós próprios. Fundam nossa ex-si-stência; isso é a exteriorização da vida que será vivida, ‘ex-posta’ para fora de nós, entre um conjunto de criaturas que buscam comunhão de subsistência em favor da vida de todos/as. Verdade dura, mesmo para aquelas pessoas, que nunca iremos ver, mas se encontram-se anastomosados conosco no planeta, e são nossos irmãos-e-irmãs, de todo e qualquer reino do Universo.

Temos com el@/es/os, queiramos ou não, sob condição de poder continuar a ex-sis-tir de considerar os antecedentes, os primaciais, os fundantes das nossas próprias ex-sistências. Neste sentido, a cultura – da humanidade e de cada pessoa humana, – precisa acertar as contas com a convivialidade de tudo, todos e tod@s/es, mas ainda mais com aqueles que também ainda não foram considerados como humanos, húmus da terra. Teremos, efetivamente, virado nossas costas a tudo o que não nos diz respeito; mas sobretudo, desinteresse e menosprezo a tudo que possui uma diversidade discrepante. Mais!  Julgamos primitivo e grotesco, tudo que nos é Diverso & Diversa. Temos adotado a prática comum de destruir, as diversidades de coisas, seres e pessoas. Gostemos ou não: aqueles que menos vemos, são mais fundamentais de nossa possibilidade de poder continuar no Universo ou não.

Não se legitimará jamais, uma precedência ingênua de que somos todos independentes, autônomos, e que poderemos gestar regras de sobrevivência endógenas aos processos de continuidade ou não, de toda e qualquer vida. E, não se trata de processos organizativos extrínsecos e exteriores. Nem se trata de formas legais, ou jurídico-políticas, a partir das cabeças e das criações que não ouvem os sentidos e sentires da natureza, que são aqueles que nos alimentam, códigos que amamentam nossas infâncias e nos fazem crescer, quando sequer tínhamos consciência de nossa absoluta inocência sobre o mistério que se continua vivo, reformulando e sobrevivendo, por assim dizer, sem nós.

Há, porém, muito mais do que esta singularidade que recebemos do universo. Existe um conjunto de outros seres, que colaboram com nossas existências e eventual sobrevivência. De certa forma buscando compensá-las, sobretudo no que tange a moderar nossa destrutividade. A relação da pessoa com o movimento histórico o constitui como existência, da modernidade, ou que procure nos conceber como pós-modernos, relação ligada a pessoa humana que sofre (caos) em sua construção! Produz o ser da subjetividade que isola a pessoa humana, e não raro, a ameaça de exclusão.

A pessoa moderna nesta transição para a pós-modernidade, nega a DI-versidade, a DES-igualdade e a Rel-ação, com todos os outros seres que estamos a cada segundo, fazendo-nos imaginar que aprenderemos o tempo todo, exclusivamente, por nossa fragilidade.

Criamos a possibilidade da autodestruição da ‘tal’ civilidade, do determinismo científico, – pese o que por si só não deu –; e, não dá conta de explicar as mazelas universais, colhidas pela manutenção da barbárie, das leis hetero-normatividade estabelecidas para a guerra de escravização constituída, estruturada e perpetuada, secularmente, voltada à barbárie que nos confere a colonização, e a cultura da colonialidade.

O problema talvez seja a centralização do olhar da ciência, da fragmentação, do conhecimento, categorização reducionista das leis, dos artefatos culturais, tratados como se fossem coisas (res), que nada é, no universo!

As contradições históricas de sobrevivência da humanidade vão além da validação experimental, cronológica; elas estão inseridas numa dimensão atemporal, pois a contradição/conflito é imprescindível nas relações internas e externas da vivência humana. O paradoxo ambivalente entre o ser e o ter são dimensões, entre o Kronos esvanecido pela atemporalidade que nos confere sentidos em face do construto da criação/criatividade/descoberta/inovação: circularidades esperançosas (e ingênuas?) de que: nada do que é, ficará eternamente como está!

Estas dimensões brincantes da colonialidade que se travestem de um teo-geo-antropocentrismo que lateja de forma ambígua, entre a inclusão e exclusão da humanidade da ameaça, dificilmente consolidável, ou na direção de um caos estabelecido definitivamente! Salvo, o caos considerado sagrado – aquele sobre o qual Peter Berger brinca, considerado como endurecido pelas culturas/povos tradicionais, necessárias para compreender caminhos, a serem seguidos na relação um bem viver eco-bio-psicossocial, pergunta o autor: isso é a decadência, decepção e morte?

Não, isso é, efetivamente, uma história sempre aberta, latejante, que nos permite inovar cada segundo de nossa ex-sistênciaestar fora de nós – e, de nos experimentar pessoas criativas com outras tantas criaturas que produzem e se refazem, por desejo do universo. Parte delas, se escondem e sequer as percebamos, mas elas, aqui, e ao contrário, conosco estão!

O cosmo com extensão do corpo-casa-território, sentidos de uma bioética 

Ética se constitui como uma prática adquirida de relação com toda a alteridade conferindo-nos, não apenas um lócus, que nos qualifica a partir do(s) valor(es) que se estruturam em nós, compromissos advindos da responsabilidade dos que acolhemos. Sempre dançantes, e nos fazemos sempre diversos, em face dos desafios da ex-sis-tência, que são momentos de latejos do pulsar entre o ser-e-não-ser.

Esta dimensão é sempre mais viva, quando abrange dimensões diferenciadas, como as etnias dos povos guarani-kaiowá que lutam pelo por seus territórios, nesta luta pela continuidade da existência dos ainda presentes e daquel@s/es circunstanciados ou ausentes na dimensão terrena. Aprendemos muito no divã da vida, das entrevistas, aprendemos o valor do silêncio que jamais emudece, há um dever ser necessário para a saúde (salus) que se complementa no termo teológico de salvação. Deve-se ter a escuta do silêncio cuja prática permanente, fala, explica, significa, o que não poderá ser dito de modo falante, menos ainda, sem uma relação aprendente; e, mais – isso implica de certa forma carregar o peso do compromisso com nossa própria humanidade que se estrutura em face da relação com as alteridades que buscam sempre nos acolher.

A relação do silêncio nas culturas Guarani Kaiowá, significa aprendizagem, estar sobre orientação (nandesi) das forças ancestrais que nos incluem. E, que de certa forma, nelas, queiramos ou não, nos pautamos, por aquilo que o conjunto de articulações de responsabilidade de vida, sempre ultrapassará nossas pessoas individuais, e se estenderá a um horizonte que suplante de longe a dimensão de um compromisso com uma singularidade isolada, que se trama com a vida do cosmos.

Corpo-casa-cosmos: paradoxos de bioética

As nações indígenas tradicionais respeitam a leitura do universo, como extensão de seus corpos, nada fragmentados, e sempre parturizados. Todos com sua singularidade seu abraço, desde sempre na existência do tempo, de um viver que espocou em nós, com um cosmos que nos antecede, abraça, contribui e me enriquece. Viver o cosmo que nos antecede, em suas possibilidades em infinitas aberturas à perscrutação. Ele não está apartado da pessoa humana. Ele é um ‘corpo-habitado’, vivo, dinâmico, e que sob sua intervenção constitui a concretude do devir que jamais se fecha, cristaliza ou abandona. Nunca estamos sozinhos no universo! Quando estamos com nossos irmãos nativos desta terra de tronco linguístico aruaque, os Guaranis Kaiowá , seja em suas aldeias originárias ou nas retomadas, começamos a perceber o valor dos elementos da natureza, na sobrevivência da alma/psíquico de sua forma de habitar e viver a corporeidade que se alonga para um universo sem fim.

Nesta caminhada de partilha e aprendizagens, seja por ação solidária ou por acampar nas rodovias, pela luta e defesa do seu território, contra a PL 490, dimensões nas quais, Adma – por designação da vida – esteve imersa não apenas apreendendo os processos, mas permitindo com docilidade, e por consonância também dos seus ancestrais, poder dar-me conta de que não era um corpo comungante ao lado de outros tantos corpos, de certa forma essa maneira ritual de aprofundamento da raízes de estar, viver, sofrer era também um exercício de conjunção e comunhão Era visível que não era, nestas ocasiões um adereço exterior, nem uma estrangeira de fora, mas parte de um corpo animado pela emoção, desejo, comunhão que se não se apartava dos outros corpos-aprendentes. Compreendo, então, o valor deste cosmo que é a terra, cosmo que para os Guarani Kaiowá, se faz onipresente na simbologia do pintaquá, dos maracas, dos guachires, tapuas, nas batidas compassadas de intensidade de pés descalços no asfalto e na terra vermelha. Isso tudo é energização, ligação também presente, na africanidade universal quando se bate o pé, em um terreiro simbólico, para acordar os Orixás e eles intervirem em favor daqueles e daquelas que carecem de seu cuidado.

A energização não é um imaginário distante, ou uma lembrança a tiracolo; é também o que alimenta de energia e confere fortaleza, energiza o imaginário deste povo ancestral resistente que se amalgama com os corpos presentes, sem que nenhum deles esteja justaposto ou seja secundário. Já não são mundos separados, mas vivos e mortos partilham de uma mesma energia ancestral que confere saberes, intuições, caminhos – forma de nos amalgamar ao cosmos, no sentido também dos povos chineses e japoneses – o que se chama do DO.

É interessante que estes irmãos Guaranis/Kaiowá criaram códigos e significados culturais obrigatórios e necessários para perpetuação, proteção e identificação da sua existência. Aprendi com eles, que existem cosmogonias e cosmologias, pertencentes ao seu universo psíquico. Corpo originário é sagrado. Entre eles, homens e mulheres ninguém e nada fica isento da “contaminação” ou “contágio” de uns nos outr@s/es, também seres de-e-no-mundo isentos que só realizam por sua existência na conjunção com outros seres diferentes cujas ações e decisões deles afetam as nossas, e também as outras pessoas – seres do universo. Este movimento configura a comunicação, é resultado da circularidade milenar, da coexistência de princípio ecológico.

O vivido por mim, não é uma narrativa apenas minha, isolada, de um ponto de vista que não afete também minha presença e vivência entre os Guaranis e Kaiowá. Não há um segundo da minha existência pessoal que não esteja ‘em rede e contaminada’ por este princípio que eles e elas vivendo, não viessem em mim, afetar-me, inteiramente. Neste sentido a solidariedade universal tem implicações no ethos, uma forma de viva colada ao compromisso de reverberações ilimitadas, nas práticas, na veneração, no abandono, e na comunhão até o fim, entre eles e eu. Fortalece-me saber pela minha forma originária religiosa que não digo nada que também não espelhe em grande parte hoje nas igrejas cristãs, uma prática de convite a comunhão com consequência de trabalho, aprendizagem, luta, vida, espiritualidade que não corresponda à mesma comunhão com o gesto de Jesus Cristo; bem como as tradições apostólicas que nos unem, como um selo semelhante a comunhão de vida e de morte; comunhão entre eles e a gente, que não se aparta do compromisso ecológico com a terra em toda a sua abrangência nem na ampla comunhão de todas as criaturas. Não se legitimará jamais, uma precedência ingênua de que somos todos independentes, autônomos, e que não existam regras de sobrevivência endógenas aos processos de continuidade ou não, de toda e qualquer vida. E, não se trata de processos organizativos extrínsecos e exteriores. Nem se trata de formas legais, ou jurídicas, a partir das cabeças e das criações que não ouvem os sentidos e sentires da natureza, que são aqueles que nos alimentam, amamentam em nossas infâncias e nos fazem crescer. Há mais no universo. Um conjunto de outros seres que co-laboram com nossa eventual sobrevivência, de certa forma buscando compensar nossas violências e destrutividade. Não basta, pois, um programa tirado de um mundo similar a ideias de estado burguês, que tem fortificado e muito, a direção suicida de nosso trajeto (in)comum.

Nunca foi tão importante superar as formas patriarcais, as formas de desmantelamento cultural realizado contra toda a diferença. Toda a diferença subsiste em nós, queiramos ou não. Não somos o sujeito moderno da filosofia. Que perdeu – caso tivesse existido um roteiro prévio de sua trajetória no mundo. Não existe nem trajetória, nem roteiro. Terá que ser inventado. E, precisará buscar a harmonia possível a todos os roteiros em fabricação viva, pois não há pro-jecto (pro-jactum) pois ninguém jogou nada à frente de si mesmo, sem antes aceitar o desafio de jamais copiar dos outros e outras, que também se procuram. Há caminhos? Talvez vias de possibilidade de afinar (afinidade) com a harmonia possível no improviso de tentar se achar e se dizer na relação com todas as outras coisas que também. Elas buscam a si próprias no caos gerado por nós. O Papa Francisco fala de “re-almar” a natureza. Devolver a ela o sentido que temos retirado, negado e nossa impostura em caminhos de violência e destruição.

Nada nos difere de qualquer outra criatura. Somos feitos da mesma carne. Há, um segundo conceito de Merleau-Ponty que complementa este, o conceito corpo próprio – corpo próprio, isso é o corpo singular. Neste sentido nenhum corpo na natureza pode ter a mesma identidade. Somos únicos. Singulares. Irrepetíveis. Juntando, pois, estas duas naturezas: carne & corpo próprio, elas estarão em oposição contrastiva; mas conectadas, atadas, enfaixadas, abraçadas. Somos, pois, contradição. Neste sentido: um termo abre espaço afirmativo, de contradição dialética de um para com o outro. Somos pela carne absolutamente universais e somos pelo corpo próprio absolutamente singulares. Implica isso, também, que não existirá na dialética merleau-pontyana, momento algum de trégua. Somos movimento. Somos contraditórios. Somos inacabados. Pode-se e, se deve sim afirmar que, não há na dialética merleau-pontyana, uma síntese estática. Nem sequer uma pacificação. A morte de um polo da dialética, por exemplo vencedora, significaria a i-n-e-x-i-s-t-ê-n-c-i-a do movimento e da vida que não se fecha – neste sentido o fim da história. Somos o campo de luta somente porque somos ao mesmo tempo diferença, tensividade, e vitalidade com abertura ao tempo e à diferença; sem também sermos uma expressão de identidade absoluta com todas as coisas de mundo, que é nossa dimensão de carne, de sermos também o que é toda a Criatura.

Concluo que neste artigo trançado por dificuldades de saúde, de acompanhamento de minha família, de expectativas de meus colegas de profissão também pela paixão da psicologia que nos aproxima das escolhas feitas por meus alunos, alunas, pela minha comunidade de referência imersa como eu, em anos de convivialidade e estudos acerca da trajetória minha como professora militante e pesquisadora engolfada no sofrimento compartilhado dia e noite dos Kaiowá Guaranis, sobretudo na conquista do já perdido, mas vivenciado como um compromisso de vida e com os mortos que partiram e estão ainda hoje em comunhão na luta pela liberdade em seus territórios. O vínculo psíquico é apenas um lugar de espelhamento e de comunhão na busca de um mundo novo que está vindo a cada momento, nos arquejos do parto de todos os seres abraçados em comunhão. Sempre estaremos juntos. E o sofrimento longo não cansa. E a vida doada compensa na resistência de cada um/a que adere à dança, ao canto, às maracas, à xixá e aos bijus.

Adma usa de sua doçura negra, afro, indígena até o fim, por sua corporificação que induz o que é fundamental em Merleau-Ponty. Não é o pensar... é o corpo que exprime os milagres que de fazer viver a vida com sentido. Merleau-Ponty diz explicitamente temos um corpo antes do corpo.  E é dele que a vida, a criação, a vivência, o sentir, a paixão se exprime.

Notas

[1]Deus é o Deus de toda Carne” correspondente ao conceito bíblico SARKS.

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