19 Setembro 2023
O desenvolvimento da inteligência artificial se faz às custas de uma força de trabalho mal remunerada, encarregada de tarefas repetitivas para treinar as máquinas. Vindas de todo o mundo, as histórias destes “microtrabalhadores” falam desta nova precariedade digital.
A reportagem é de Emma Bougerol, publicada por Basta!, 18-09-2023. A tradução é do Cepat.
Helena é estudante em Pretória, capital administrativa da África do Sul. No início de julho, um gesto um tanto repentino a fez derramar a xícara de chá no computador. Sua ferramenta de aprendizagem não tem conserto. Ela precisa comprar um novo, mas não tem dinheiro. Então, em seu telefone, ela pesquisa “um emprego online que não tome muito tempo” para poder continuar a se concentrar nos trabalhos da escola. Aí, uma sigla aparece em sua tela: UHRS.
UHRS, para “Universal Human Relevance System” (Sistema Universal de Relevância Humana), é o nome de uma plataforma criada pela Microsoft para treinar inteligência artificial (IA). Helena escolheu esta plataforma entre outras, que oferecem aquilo que chamamos de “microtrabalho”. Num estudo do grupo de pesquisa DiPLab, os pesquisadores dão uma definição destas tarefas, definidas como “micro”, porque surgem “da fragmentação das atividades de curta duração, padronizadas e simples, que podem ser realizadas online e que plataformas digitais especializadas externalizam para fornecedores terceirizados, chamados microtrabalhadores”.
A mais conhecida destas plataformas especializadas é o Amazon Mechanical Turk – nomeado em referência ao falso autômato do século XVIII, apresentado como um autômato jogador de xadrez, que na verdade era um homem disfarçado de máquina. Por trás da imagem de uma máquina com um poder computacional fenomenal e autônomo, a inteligência artificial depende em grande parte de “pequenas mãos” muito humanas, que classificam, geram e fornecem milhares de informações essenciais para o bom funcionamento do sistema. Faz você se perguntar quem se tornou o robô de quem...
O microtrabalho consiste em atividades repetitivas, que pagam alguns dólares ou centavos, como anotar imagens, transcrever sons ou avaliar conteúdos. Por exemplo, isso envolve classificar capturas de tela de vídeos “e decidir se são aceitáveis, sangrentas ou prejudiciais”, diz um trabalhador do clique. Às vezes, eles emprestam a voz para ler um texto, ou tiram fotos de si mesmos ou do entorno para alimentar a inteligência robotizada – tudo depende das demandas dos clientes dessas plataformas, que têm necessidades diferentes para treinar suas “máquinas”.
Os pesquisadores Paola Tubaro, Antonio A. Casilli e Marion Coville, em um artigo acadêmico, dividem estas tarefas em três partes: “As atividades de microtrabalho (…) cumprem não apenas uma, mas um continuum de funções cruciais, divididas em três polos que chamamos, respectivamente, de ‘preparação da IA’, ‘verificação da IA’ e ‘personificação da IA’”.
Algumas plataformas de trabalho por clique são especializadas em IA, outras a oferecem como uma atividade entre outras. Muitas vezes, o seu papel é fornecer às empresas “braços virtuais” para treinar a sua IA. Neste caso, falamos também de “crowdsourcing”, onde terceirizamos parte das tarefas a uma massa de trabalhadores anônimos e intercambiáveis.
A aparente facilidade do trabalho e a promessa de poder trabalhar quando quisesse atraíram Helena. “A ideia de ganhar dinheiro me entusiasma, porque já vi outras pessoas anunciarem que podem ganhar quantias significativas de dinheiro na plataforma, algo como 400 dólares [por mês], acrescenta Helena. Como sou nova, ainda estou tentando me familiarizar com as artimanhas do ofício”.
No seu telefone, a estudante sul-africana baixa um aplicativo de microtrabalho. Muito rapidamente, ela encontrou dificuldades: “Comecei há três dias”, diz ela em meados de julho. Mas, para ser sincera, estou completamente perdida”. Ela precisa passar por vários testes para “se qualificar” e assim ter acesso a tarefas remuneradas. A jovem passou várias horas nisso. Tudo isso, no entanto, sem receber qualquer remuneração.
Para ter acesso a cliques remunerados por apenas alguns centavos, os trabalhadores devem treinar e depois fazer um teste. Cada avaliação varia de acordo com a natureza do trabalho solicitado. Se, por exemplo, a tarefa for classificar os alimentos conforme constituam ou não ingredientes de uma determinada receita, o teste de qualificação é semelhante à tarefa a ser realizada na sequência. A diferença é que esse teste não será pago.
Os mecanismos de validação são frequentemente opacos. Nos espaços de discussão entre trabalhadores, alguns arrancam os cabelos tentando entender os requisitos: devemos fazer isso o mais rápido possível ou esperar alguns segundos antes de clicar? Por que, apesar da grande precisão das respostas, o seu trabalho foi invalidado? É difícil encontrar uma resposta, uma vez que cada cliente da plataforma de microworking decide os seus critérios – e alguns são mais exigentes que outros, sublinham os trabalhadores do clique entrevistados.
Um estudo realizado na França por pesquisadores do DiPLab mostra que o rendimento médio dos trabalhadores do clique beira os vinte euros por mês. “O grande número de ‘ocasionais’ faz com que a média desça para cerca de 21 euros por mês, especificam os pesquisadores, enquanto entre os “muito ativos”, algumas pessoas conseguem ganhar até 1.500-2.000 euros por mês através do microtrabalho. O estudo especifica que 22% dos franceses entrevistados vivem abaixo do limiar da pobreza e que a maioria são mulheres.
As pessoas entrevistadas para este artigo, nenhuma delas é francesa, dizem que ganham algumas centenas de dólares num “bom” mês. Saif é paquistanês e trabalha há vários anos nessas plataformas de microtrabalho. Conta que ajuda as pessoas a ganharem algum dinheiro com esta atividade: “As taxas de câmbio do dólar são mais altas no meu país: 1 dólar americano equivale a 280 rúpias na moeda local. Portanto, mesmo 150-200 e, às vezes, 300 dólares são suficientes”.
Poucos dias depois de se cadastrar, Helena ainda não consegue gerar dinheiro: “Me habilitei para duas tarefas, mas assim que me habilitei elas foram excluídas da inscrição, o que me deixou um pouco desanimada”. Ela se juntou a um grupo de trabalhadores do clique do Facebook, trabalhando principalmente para o UHRS, que faz parte da Microsoft e é acessível através de plataformas terceirizadas, como Appen ou Clickworker. Na linha de discussão, todos os dias, dezenas de mensagens de microtrabalhadores de todo o mundo refletem as dificuldades da sua atividade.
Esses trabalhadores do clique usam seus telefones ou computadores. Para alguns é um complemento ao salário, para outros é a única fonte de rendimento. “Era para ser uma atividade complementar, lembra Onah, um nigeriano de 25 anos. Porque nem sempre há coisas para fazer”.
Mas, depois de uma fratura e vários dias parado, o jovem passou os dias ao telefone. “Trabalho oito horas por dia, conta. Se for um dia bom, posso ganhar até 10 dólares… O meu trabalho normal não me paga tanto!” Para quando se recuperar, planeja continuar o microtrabalho paralelamente ao seu trabalho como inspetor de controle de qualidade em uma fábrica.
Se forem rápidos o suficiente e passarem nas qualificações, os trabalhadores do clique podem participar de tarefas remuneradas que pagam centavos de dólar.
Apesar da aparente facilidade das tarefas, elas são definidas por muitos trabalhadores do clique como “entediantes”. São repetitivas, com “instruções muitas vezes (muito) sucintas”, descrevem os pesquisadores do DiPLab. Isto faz com que os trabalhadores tenham uma “perda de tempo” e uma “carga cognitiva”, uma vez que o cumprimento das instruções determina o seu pagamento. Cada clique é avaliado, cronometrado, e as razões para recusar a remuneração são por vezes opacas.
“Parece que o UHRS quis me banir hoje”, diz desesperada uma trabalhadora de um grupo do Facebook. Fui temporariamente suspensa dos cinco “hit apps” [para “tarefa de inteligência humana”, nome dado a tarefas idênticas para um mesmo cliente] em que trabalhei, apesar de uma taxa de precisão superior a 85% e de uma velocidade cautelosa”. Alguns comentários oferecem explicações: “É mais arriscado trabalhar nos fins de semana”, escreve um membro. “As instruções não são suficientemente claras e escondem certos detalhes para eliminar o maior número possível de pessoas”, conta-nos Ebuka, outro jovem nigeriano, muito ativo nesta linha do Facebook. Neste grupo, postagens de pessoas que tiveram suas contas suspensas durante a noite sem explicação são ocorrências diárias.
Tsiri mora em Madagascar. “Trabalho em um serviço de controle, conta. Ganho na média do que se ganha no país, um pouco abaixo do salário de um executivo sênior”. Então, há um ano e meio, recorreu ao microtrabalho para ganhar um pouco mais de dinheiro e realizar projetos pessoais.
“Mas as coisas pioraram em termos de ganhos já há algum tempo”, admite. Ele não consegue se qualificar para muitas tarefas e, principalmente, consegue fazer “a avaliação de mecanismos de busca e a avaliação dos resultados de pesquisa em vídeos”. Apesar da experiência, ele ainda permanece nesta linha: “A coisa mais difícil é não ser bloqueado”.
Além do acesso às tarefas, os trabalhadores do clique competem entre si. Para a mesma tarefa exibida, por exemplo, “100 acessos” pagando US$ 0,05 por unidade, a distribuição é determinada “pelo clique mais rápido”, diz Ebuka, em Lagos (Nigéria). Ele passa seus dias com os olhos grudados na tela para não perder nenhuma tarefa. “Às vezes fico acordado até às 5 horas da manhã, diz o jovem. Quando há eletricidade, trabalho no meu computador. Mas uma vez que falta energia, mudo para o meu telefone”. Em sua primeira semana de trabalho, ganhou 21 dólares. “O que está abaixo das minhas expectativas, enfatiza. Mas o salário mínimo no país é inferior a 50 dólares”.
Acrescenta, irritado: “O valor da nossa moeda continua a se depreciar, mas os salários não aumentam. Não é que eu não quisesse um emprego normal, mas há 5 anos um dólar valia 400 nairas [a moeda nigeriana], e hoje vale 900”. Ele agora quer estudar no Canadá, mas seu pedido de visto foi recusado várias vezes. Assim, ele continua passando os dias na frente da tela por alguns cliques e guardando dinheiro. Ele diz que às vezes passa 20 horas por dia na frente da tela. “Quando sinto que não vai sobrar nada, vou dormir”.
É difícil para esses trabalhadores do clique saberem antecipadamente a renda que receberão. Nos fóruns de discussão online, muitos perguntam por que não têm mais tarefas acessíveis. Ebuka costuma responder a essas postagens com um conciso “depende de onde você mora…”. Alguns mostram extratos de uma semana zerados por não encontrarem tarefas.
Na página inicial do aplicativo da plataforma, aparecem várias ofertas para rentabilizar a sua imagem ou a dos seus filhos por alguns euros.
Por alguns dólares, você também pode vender fotos do seu rosto ou de seus documentos de identidade. Num artigo do Algorithm Watch, a pesquisadora Paola Tubaro explica que, apesar dos receios pela proteção dos seus dados pessoais, “alguns trabalhadores que se encontram fazendo estas tarefas são os mais pobres, que não podem recusar uma demanda que paga 5 dólares”.
No domínio da IA e da “machine learning” (aprendizado de máquina), que permite que estas inteligências virtuais se aperfeiçoem, as desigualdades são gritantes. Neste setor, “aparece uma polarização entre trabalhadores altamente e pouco qualificados”, escrevem os pesquisadores na revista Big Data & Society. Milhares de pequenas mãos permitem que os gigantes do Vale do Silício enriqueçam, mas são em grande parte invisíveis. Sozinhos, sem estatuto nem local de trabalho, espalhados pelos cinco continentes e entre os mais precários, estes trabalhadores não conseguem fazer valer os seus direitos contra multinacionais distantes.
Os únicos locais onde esses trabalhadores do clique se encontram são virtuais. São grupos de Facebook ou Telegram, como aqueles dos quais fazem parte Helena, Ebuka, Onah, Tsiri e outros. Eles são nigerianos, paquistaneses, sul-africanos, malgaxes…
Em inglês, os internautas trocam conselhos e reclamações. Às vezes, alguns até se oferecem para ajudar a passar nos testes. “Aqueles que (…) precisam fazer um teste de voz como inglês, espanhol, alemão, francês, etc. Posso fazer esse teste para você se precisar desses idiomas”, sugere, por exemplo, um usuário de Bangladesh. Abaixo, um usuário queniano simplesmente comenta: “Você é fantástico, meu irmão”.
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Pequenas mãos humanas, precárias e exploradas que tornam a IA e os robôs mais inteligentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU