05 Setembro 2023
"Mas, com exceção de alguns casos patológicos, ninguém, nem mesmo sob o mais cativante love bombing, colocaria os pés em uma comunidade que se declara 'laical' se soubesse que lá dentro alguém assumiria o direito de decidir quem pode ou deve ser seu cônjuge, o que pode ou não ler, como deve conduzir cada momento de sua vida, ou que sair dessa bolha equivalerá a uma morte civil, ou que o próprio sentido de amizade e de cada relação humana será engolido pelo 'espírito' da comunidade".
O artigo é de Giovanni Salmeri, professor de História do Pensamento Teológico na Universidade de Roma Tor Vergata, publicado por Settimana News, 02-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Alguns acontecimentos recentes no panorama da Igreja Católica, apesar da sua diversidade, abordaram uma questão que é tudo menos pacífica: aquela da identidade dos leigos na Igreja. É claro que continua a ser verdade que com as palavras é possível se comportar exatamente como Humpty Dumpty em Alice através do espelho: “quando eu uso uma palavra ela significa exatamente o que eu quero que signifique!” Basta explicar-se, portanto, e todas as acepções podem ser lícitas. Mas também é verdade que alguns usos podem carregar consigo mal-entendidos e danos nada pequenos: se eu decidir chamar o cianeto de “açúcar”, quem estiver prestes a tomar um café em minha casa e me pedir açúcar provavelmente poderia sofrer consequências desagradáveis.
Mas uma palavra tão comum como “leigo” não tem pelo menos um significado oficial claro e bem definido? Na verdade, não, e este é um primeiro problema.
O Código de Direito Canônico, ao qual é correto recorrer para dirimir dúvidas semelhantes, define “leigos” os membros da Igreja que não são “ministros sagrados” ou seja, “clérigos” (cân. 207, § 1), isto é (cân. 266 e 1.008) que não foram constituídos como tais com o sacramento da Ordem. Essa definição é, sim, clara. O problema é que o mesmo cânone que a propõe acrescenta que tanto dos clérigos como dos leigos “existem fiéis que, pela profissão dos conselhos evangélicos [...] se consagram a Deus de modo peculiar”: e aqui não está muito claro se esse “existem” identifica um grupo distinto.
De fato, a Lumen gentium (que, pode-se dizer, tem autoridade pelo menos igual àquela do Código de Direito Canônico) define os leigos como “todos os cristãos que não são membros da sagrada Ordem e do estado religioso” (Lumen gentium, n. 31). O Código dos Cânones das Igrejas Orientais, além disso, segue explicitamente essa definição (cân. 399).
Parece, portanto, haver pelo menos dois significados distintos do termo “leigo”: um do ponto de vista da estrutura hierárquica da Igreja, estabelecida pelo sacramento da Ordem; outro, mais restrito, do ponto de vista do “estado de vida”, que exclui os religiosos (e talvez também outros consagrados). Inútil dizer que o uso comum está muito mais próximo desse segundo: se informo alguém que “você encontrará uma leiga neste escritório”, o sujeito certamente não espera encontrar ali uma freira.
Mas as dúvidas não param por aí. Apenas um exemplo particularmente interessante: algum tempo atrás a revista Famiglia Cristiana publicou uma discussão interessante e animada em relação aos diáconos permanentes. O casus belli havia sido um artigo em que se presumia que eles seriam "leigos". Mas em que sentido? alguém objetou; eles receberam o sacramento da Ordem exatamente como os padres e os bispos, portanto não o são.
A objeção era obviamente muito bem fundamentada do ponto de vista do léxico canônico, mas, por outro lado, a afirmação original não parecia absurda à primeira vista, porque os diáconos permanentes parecem “como todos os outros”. É claro que desempenham um ministério particular fundado no sacramento da Ordem: mas isso pode parecer menos decisivo do que o modo como vivem.
Na cultura inglesa, é famoso o "teste do pato" (duck test): "Se parece um pato, nada como um pato e grasna como um pato, então provavelmente é um pato." Penso que há boas razões para argumentar que essa pérola da filosofia também seria perfeitamente partilhada por Aristóteles: uma realidade é delimitada das outras pelo conjunto de suas características essenciais. No mínimo, não se pode negar que o bom senso comum aplica continuamente o teste do pato quando se trata de usar as palavras e se fazer entender.
Se espontaneamente (mesmo que, vamos repetir, incorretamente segundo o direito canônico) um diácono permanente é chamado de “leigo”, é simplesmente porque “tem a aparência de um leigo, nada como um leigo e grasna como um leigo”.
Peço desculpas a leigos e diáconos permanentes, que, a rigor, não grasnam. O problema, porém, é precisamente este: em que consiste tal grasnado leigo? Como bem sabem aqueles que já se depararam com o problema, o esforço de uma definição positiva do leigo ocupou uma parte importante da teologia do século XX.
Se, de fato, é relativamente fácil indicar características negativas (“sem sacramento da Ordem”, “sem votos ou consagrações especiais”), elas podem, no entanto, parecer mortificantes. A linha que teve mais sucesso, até pousar na própria Lumen gentium, é aquele que apela à “índole secular”: típica do leigo (por exemplo, pela vida de trabalho ou familiar) seria um tipo de contato com o mundo, em cuja transformação ele se empenha diretamente. Como escreveu esplendidamente Yves Congar, o leigo é aquele “para quem o mundo existe”.
Essa perspectiva, que certamente desempenhou um papel importante no reequilíbrio da visão da Igreja no século XX, não está isenta de problemas: parece mais redescobrir uma característica fundamental do cristão do que uma qualidade específica de uma única categoria, embora obviamente a mais numerosa. É em grande parte por essa razão que o rótulo de “leigo”, durante tantos séculos nada enobrecedor, nas últimas décadas do século XX começa a tornar-se uma medalha preciosa à qual aspirar e, simetricamente, a “fuga do mundo” transforma-se de heroico título de mérito em acusação de pusilanimidade (consultar Marcello Giombini para uma eficaz síntese de dois minutos dessa mudança de mentalidade no fim dos anos 1960).
Afinal, “leigo” significa literalmente apenas “membro do povo”: mas toda a Igreja é povo de Deus! A laicidade indicaria, portanto, esse enraizamento original, que se combina com uma orientação para o mundo que “Deus tanto amou”, uma orientação que precede qualquer distinção de ministério e estado de vida. Até o padre desfrutaria, portanto, de uma "laicidade", tal como a tinha Jesus, que não era um sacerdote (o autor da Carta aos Hebreus teria algo a objetar, mas deixemos o problema entre parênteses). E talvez, para terminar em glória, até “Deus é leigo”.
Essas são considerações sem dúvida interessantes, mas que se afastam cada vez mais da linguagem comum e privam a palavra “leigo” de um significado específico que está longe de ser inútil.
É claro que o critério da “índole laica” parece frágil quando é procurado, por exemplo, na atividade laboral (no que o ensino de latim e grego por um leigo seria mais “secular” do que a mesma atividade desempenhada por um padre ou por um monge, por exemplo, como já aconteceu inúmeras vezes?). No entanto, parece mais sólido e compreensível quando é interpretado a partir da maneira em que nos dirigimos ao mundo: ter a própria família constituída livremente (e com ela uma própria moradia, um próprio espaço no mundo: nesse sentido, mesmo estando sozinho é-se uma família, como sabiamente afirma o registro cartorial); adquirindo e gerindo os bens necessários à subsistência; decidindo dia a dia pessoalmente a sua própria existência (a “orientação da vida”, diz o Código Civil italiano, art. 144).
Essa é uma modalidade para entrar em relação com o mundo diferente de castidade, pobreza e obediência (Código de Direito Canônico, cân. 598), e também da forma de vida típica do padre da Igreja latina. Parece-me que essa pode ser a prova adequada do pato que é usada, ainda que de forma impensada, para dizer “este é um leigo”, “esta é uma leiga”.
Voltando ao exemplo anterior: os diáconos permanentes são geralmente casados, exercem geralmente uma profissão civil, em suma, têm uma existência autônoma que se assemelha àquela de todos os simples cristãos: são, portanto, pelo menos em sentido coloquial, "leigos".
Até agora, toda a discussão pode parecer chata e sem sentido. O fato é que subestimar o que está em jogo pode ter consequências trágicas. Basta, efetivamente, inverter as características que enumeramos para o teste do pato para obter algumas das piores formas de abuso espiritual que vieram à tona na Igreja Católica nas últimas décadas.
Tomo um exemplo pouco conhecido na Itália, mas particularmente significativo (e para mim também um pouco doloroso, pelo motivo que explicarei): aquele da Katholische Integrierte Gemeinde. Resumidamente, trata-se de uma comunidade (“laical”) iniciada por volta de 1968 pela alemã Traudl Wallbrecher (1923-2016) e seu marido, baseada em ideais de radicalismo evangélico.
Além de inúmeras obras na Alemanha e em outros países, tornou-se conhecida graças às pesquisas teológicas que nela se desenvolveram ou colateralmente: Joseph Ratzinger foi seu apoiador nos anos de seu episcopado em Munique, seus membros foram os dois irmãos teólogos Norbert e Gerhard Lohfink, e o leigo Rudolf Pesch (um dos melhores exegetas do século XX, adorado por mim nos meus anos de estudo teológico: finalmente um famoso teólogo leigo! eu pensava).
Em 2009 a Katholische Integrierte Gemeinde desembarcou na Pontifícia Universidade Lateranense e ali estabeleceu a Cátedra para a Teologia do Povo de Deus, um centro inovador de pesquisa e ensino. O epílogo da história é doloroso: em 2019, Reinhard Marx, arcebispo de Munique, começa uma investigação após graves acusações. Os membros, depois de as terem rejeitado como caluniosas (até Jesus foi perseguido!!!) renunciaram em massa (talvez para evitar serem interrogados). Marx, com um ato muito simples, mas tão raro que merece uma ovação de pé, decreta a dissolução.
A Katholische Integrierte Gemeinde tinha reconhecimento independente nas diversas dioceses: uma a uma, todas as comunidades foram dissolvidas pelos respectivos bispos. Nesse ínterim, Bento XVI declara ter sido enganado e que nunca teria apoiado a comunidade se soubesse o que realmente estava acontecendo dentro dela.
O que estava acontecendo de tão grave e que permaneceu oculto por tantos anos? Com base nos relatórios e investigações subsequentes, eis um resumo.
A comunidade se entendia como o retorno da comunidade cristã primitiva e a única em que havia o verdadeiro cristianismo. A comunidade deveria ser considerada pelos membros a neue Familie: a única, portanto não era mais necessário ter relações com a família de origem (assim diz o Evangelho, certo?). Sendo o empenho dos adultos total, também a relação entre eles e os seus filhos era anulada.
A voz da fundadora (e em geral dos responsáveis) era equiparada ao Espírito Santo: portanto, qualquer crítica tornava quem a expressava culpado de falta de fé ou de pecado contra o Espírito Santo.
Ser membro da comunidade exigia uma Ganzhingabe, uma “dedicação total”, isto é, a entrega de todas as decisões da própria vida à comunidade: a escolha do cônjuge, do trabalho, do local de residência (numa casa comunitária, inspirada nos kibutzim), da forma de educação dos filhos, do médico. Bônus: os responsáveis da comunidade também poderiam pressionar para o divórcio e decidiam se as outras pessoas poderiam ter filhos, quantos e quando. Os membros tinham que dar toda a renda para a comunidade (Ananias e Safira foram mortos por um raio, certo?).
Qualquer transgressão do espírito da comunidade tinha que ser confessada publicamente perante a comunidade. Muitos membros viviam, de fato, num mundo paralelo, no qual existiam apenas a comunidade e as suas obras; a saída implicava, portanto, a perda das relações humanas, dos bens e, muitas vezes, também de trabalho.
Tudo isso, obviamente, invisível por trás do rótulo de “cristianismo iluminado e integral”, era descoberto um pouco de cada vez: no início havia apenas o encanto do retorno à “comunidade primitiva”. Alguém poderia argumentar que, de fato, o problema fundamental (o engano, digamos, para simplificar) estava todo aqui: não declarar abertamente qual seria a forma de vida na qual um membro da comunidade seria gradualmente envolvido.
Esse quadro baseia-se nos testemunhos de ex-membros, que, como se sabe, requerem cautela: também deveria ser dado espaço a vozes favoráveis caso interessasse uma avaliação exata do caso específico. Mas aqui estamos preocupados apenas em mostrar como cria uma impressão de dejá vu. Invertendo a famosa abertura de Ana Karenina, pode-se dizer que toda comunidade funcional funciona à sua maneira, enquanto todas as comunidades disfuncionais são parecidas.
A mistura de características sectárias poderá ser diferente, mas o catálogo dos ingredientes é mais ou menos sempre igual. E esse catálogo parece que pode ser obtido simplesmente (vamos repetir) pela negação da forma laical de se relacionar com o mundo, ou seja (que dá no mesmo), de uma caricatura dos votos de castidade, pobreza e obediência.
Uma caricatura: porque as comunidades religiosas e de vida consagrada têm uma tradição que ajuda a conter as degenerações, mecanismos (mesmo canônicos) para remediá-la e, sobretudo (sobretudo!), uma evidência clara do seu próprio modo de vida. Quem entra num convento franciscano como postulante sabe aproximadamente o que o espera e entra precisamente por isso, e talvez também porque conhece uma história secular de santidade e humanidade.
Mas, com exceção de alguns casos patológicos, ninguém, nem mesmo sob o mais cativante love bombing, colocaria os pés em uma comunidade que se declara “laical” se soubesse que lá dentro alguém assumiria o direito de decidir quem pode ou deve ser seu cônjuge, o que pode ou não ler, como deve conduzir cada momento de sua vida, ou que sair dessa bolha equivalerá a uma morte civil, ou que o próprio sentido de amizade e de cada relação humana será engolido pelo “espírito” da comunidade.
Qualquer um, sabendo dessas coisas de antemão, aplicaria inversamente o sábio teste: aquele animal não se parece com um pato, não nada como um pato, não grasna como um pato. Logo, não é um pato.
Andrea Venuta | 2 de setembro de 2023
Obrigado por postar o artigo. Minha opinião é que à luz do NT a palavra leigo não encontra subsistência teológica. Encontramos apenas simplesmente aqueles que invocam o Nome de Jesus, como Paulo define os cristãos, ou seja, a comunidade cristã enriquecida de carismas e ministérios. Ou seja, o que restará em breve ao fim do processo de saída do regime de cristandade e da morte do clericalismo. Então o direito canônico terá que mudar.
Angélico Sibona | 2 de setembro de 2023
O teste do pato também deveria aplicar-se ao CDC, que é o código estrutural da Igreja Católica: se divido claramente uma coisa em duas, e as duas partes são incompatíveis e impermeáveis, então não posso dizer que aquela coisa é uma e que a duas partes estão no mesmo plano. Um sacerdote e um leigo são clara e substancialmente diferentes, não estão no mesmo plano, não são portadores de direitos e deveres iguais. Um leigo será sempre um católico de segunda classe e, apesar de todas as tentativas de juristas e comentadores, a realidade não muda. Certamente o NT fala de diferenças entre papéis e carismas, mas não estabelece diferenças de status entre os crentes. Enquanto existir essa diferença entre leigos e religiosos, sancionada por um direito formulado por homens e sem uma clara evidência evangélica, não podemos falar de uma Igreja “una”, isto é, unida.
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Vida “laical” e abusos de consciência. Artigo de Giovanni Salmeri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU