02 Setembro 2023
"O sistema alimentar mundial traz inflação, fome e desperdício", escreve Pete Dolack, jornalista e escritor estadunidense, autor de It’s Not Over: Learning From the Socialist Experiment, em artigo publicado originalmente por Counterpunch e republicado por A Terra é Redonda, 30-08-2023. A tradução é de Eleutério F. S. Prado.
Os fundamentalistas de mercado querem fazer acreditar no seguinte: se se deixa o suprimento de todas as necessidades humanas às ternas misericórdias dos mercados desregulados, uma cornucópia de riqueza fabulosa chegará a todos. Um poderoso sistema de propaganda proclama isso incessantemente. E ele é amplamente financiado por aqueles cujo interesse reside em acumular riqueza ilimitada sem levar em conta os danos sociais ou ambientais.
Friedrich Hayek, ao propagar a Escola Austríaca de Economia, precursora da Escola de Chicago de Milton Friedman, chegou a afirmar que a solidariedade, a benevolência e o desejo de trabalhar para a melhoria da comunidade são “instintos primitivos” e que a civilização humana consiste em uma longa luta contra esses ideais, e que a “disciplina do mercado” é a verdadeira provedora da civilização e do progresso.
Milton Friedman, venerado por aqueles que se tornaram cada vez mais ricos e poderosos por meio do aprofundamento do controle corporativo da sociedade, promoveu a ideia de que a única consideração séria para as corporações consiste em maximizar os lucros para os acionistas; fazer qualquer outra coisa – disse – seria “imoral”. Essa ideologia extremista é tão difundida que as corporações nos EUA são rotineiramente processadas por “acionistas ativistas” por não conseguirem extrair todo o dinheiro possível por todos os meios necessários, certamente incluindo instituir uma sistemática de demissões, mesmo que a empresa já seja altamente lucrativa.
A terrível desigualdade, as guerras, o imperialismo, os bilhões sem trabalho regular, as favelas e uma série de outros males, entre os quais o aquecimento global, são produtos dessa permissão dada às corporações: os “mercados” devem determinar cada vez mais os resultados sociais; devem tornar cada vez mais as necessidades humanas mercadorias, sem excluir mesmo as mais básicas como água e moradia.
Mas, a alimentação também? Junto com a água e o abrigo, nada é mais necessário do que a comida. Talvez aqui possamos encontrar um lado positivo na conquista corporativa do mundo? A agricultura fez enormes progressos ao longo do último século. As fazendas nunca foram tão produtivas e uma grande variedade de alimentos nunca esteve tão disponível nos supermercados.
No entanto, a comida é também mercadoria em uma economia capitalista. A inflação, como certamente se percebeu agora, não poupou os alimentos. A alimentação ficou muito mais cara nos últimos dois anos e isso se refletiu nas compras nos supermercados e nas contas dos restaurantes, os quais estão agora significativamente mais altos.
Em geral, a ideologia corporativa de direita, que domina completamente os meios de comunicação de massa, raramente perde a chance de culpar os aumentos salariais por qualquer surto de inflação. Sim, são os trabalhadores gananciosos que acreditam que devem receber um salário suficiente em troca de trabalho para poder viver dignamente. Raramente, ou nunca, são apresentadas evidências para apoiar essas alegações. Pelo contrário, elas são apresentas como um fato incontestável da vida moderna.
E assim tem sido nos últimos dois anos: a inflação se espalhou mais uma vez pelo mundo, como tem sido rotina há décadas.
Tudo se passa como se as interrupções da pandemia de Covid-19 não tivessem nada a ver com interrupções na cadeia de suprimentos da produção de mercadorias, ou que a ganância dos financistas e dos executivos das corporações para aumentar os preços não pudesse ser um fator decisivo nesse processo. Os preços dos alimentos não estão isentos desse padrão gerencial. Portanto, embora existam várias razões por trás do aumento da inflação, os fatores acima não podem ser descartados. Além disso, há a questão muito mais ampla, e mais duradoura, do fornecimento de alimentos para o mundo.
Vamos tentar abordar, primeiro, o problema da oferta de alimentos. Como afirma o relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) de 2023, denominado The state of food security and nutrition in the world (O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo), “a fome global em 2022, medida pela prevalência de subnutrição, permaneceu muito acima dos níveis antes da pandemia”. O relatório da FAO estima que cerca de 10% da população mundial “enfrenta fome crônica” – cerca de 122 milhões de pessoas a mais estavam nessa categoria em 2022 do que em 2019, ou seja, um ano antes da pandemia.
Usando uma medida mais ampla, mais de um quarto da população mundial está em “insegurança alimentar” e esse padrão tem, sim, um viés de gênero. O relatório afirma que “a insegurança prevalece mais entre as mulheres adultas do que entre os homens em todas as regiões do mundo, embora a diferença tenha diminuído consideravelmente em nível global de 2021 a 2022. Em 2022, 27,8% das mulheres adultas estavam em insegurança alimentar moderada ou grave, em comparação com 25,4% dos homens. Ademais, a proporção de mulheres enfrentando insegurança alimentar grave foi de 10,6% em comparação com 9,5% dos homens.
E embora a prevalência de baixa estatura entre crianças menores de cinco anos de idade devido à desnutrição tenha diminuído, estima-se, no entanto, que o total dessas crianças maltratadas tenha sido de 148,1 milhões, em 2022, ou 22,3% da corte etária global. Um sistema que leva a resultados tão desumanos e indesculpáveis não pode ser considerado eficiente. Seria correto dizer que tal sistema é um fracasso abismal. Mas os números acima, por mais assustadores que sejam, provavelmente subestimam a escala real da fome.
O relatório da FAO, The State of Food Security and Nutrition in the World (O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo), publicado em 2021, foi escrito sob a advertência de que o mundo está numa situação alimentar crítica. Embora observe que entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas enfrentam a fome, ele afirma que muito mais gente estava em uma posição precária no acesso aos alimentos. “Quase uma em cada três pessoas no mundo (2,37 bilhões) não teve acesso a alimentos adequados em 2020 – isso é um aumento de quase 320 milhões de pessoas em apenas um ano” – diz o relatório. Um terço das pessoas do mundo! Além disso, um número ainda maior de pessoas não tem condições de pagar por uma alimentação saudável – e a isso ainda retomado aqui neste artigo.
Eric Holt-Giménez, ex-diretor executivo da Food First em Oakland, Califórnia, e que lecionou em várias universidades, incluindo a Universidade da Califórnia, argumenta que a extensão da fome mundial é subestimada. Em um artigo, “Capitalism, Food, and Social Movements: The Political Economy of Food System Transformation” (Capitalismo, alimentos e movimentos sociais: a economia política da transformação do sistema alimentar), publicado no Journal of Agriculture, Food Systems, and Community Development (“Jornal” da agricultura, sistema alimentar e desenvolvimento comunitário), revisado por pares, disse que um sétimo da população mundial passa fome.
A maioria das pessoas famintas no mundo são mulheres agricultoras. (Foto: Kelly | Pexels)
Ao mesmo tempo, observa que uma vez e meia a mais de comida é produzida no mundo como um todo. Logo, em princípio, há comida suficiente para todos. De qualquer modo, mesmo se a produção de alimentos é bem grande, o relatório considera que a estimativa de um bilhão de pessoas famintas “é provavelmente uma subestimação grosseira”.
O Dr. Holt-Giménez escreveu que o número total de pessoas famintas é subestimado por causa da forma como a fome tem sido definida. Ele escreveu que, explicitamente, “isso se deve à maneira como a fome é medida. As pessoas só são identificadas como famintas se passarem fome 12 meses por ano. Se eles experimentam fome por apenas 11 meses do ano, eles não são contados como famintos.
Em segundo lugar, essa medida é baseada na ingestão calórica. Ora, pode-se imaginar que o número necessário de calorias que um indivíduo deve consumir varia substancialmente de acordo com a altura, sexo, ocupação, idade etc. O limiar de ingestão calórica para determinar a fome (cerca de 2000 quilocalorias) é bom se você se sentar tranquilamente atrás de um computador por 8 horas por dia. Mas a maioria das pessoas famintas no mundo são mulheres agricultoras. No mundo em desenvolvimento, elas trabalham sob um sol quente durante todo o dia; ademais, muitas vezes elas estão amamentando, assim como cuidando de uma ou mais crianças. Eles precisam de até 5000 quilocalorias por dia. As estimativas oficiais não espelham a verdadeira realidade.”
Independentemente de como se apresenta o fato, é indiscutível que a agricultura capitalista é um fracasso. Certamente, mesmo se “apenas” centenas de milhões de pessoas, em vez de bilhões, não têm acesso suficiente a alimentos. De qualquer modo, tem-se um fracasso monumental por qualquer medida com teor humanista.
Aqueles que procuram tirar qualquer responsabilidade do “sujeito mercado”, são céleres em apontar para outro culpado: mediante sussurros de inspiração malthusiana, afirmam então que o problema se encontra na superpopulação. Essa é a resposta favorita dos cínicos que defendem esse “sujeito”. Mas essas desculpas são apenas isso – desculpas. Os agricultores do mundo realmente produzem alimentos suficientes para todos na Terra. O problema raiz está, entretanto, na acessibilidade e na eficiência da repartição. E isso nos leva à questão do desperdício de alimentos.
Sobre isso, ouve-se quase sempre apenas o mantra capitalista. A “magia do mercado” garantirá que todos tenham comida suficiente – é o repete incessantemente os fundamentalistas do mercado. Essa é a promessa feita pelos donos da produção de alimentos no mundo. Entretanto, observa-se o seguinte: e se bilhões de pessoas não puderem comprar comida? E se a comida não puder chegar a quem deseja comê-la? Ora, são justamente os “mercados” que estão por trás desse fracasso em prover um grande número de pessoas com comida insuficiente.
O Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos 2021 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente estima que “o desperdício de alimentos em residências, estabelecimentos de varejo e na indústria de serviços de alimentação totaliza 931 milhões de toneladas a cada ano”. E isso equivale a 17% da produção global total de mantimentos. Um relatório da FAO de 2011, no entanto, estimou que cerca de um terço dos alimentos produzidos globalmente foram perdidos ou desperdiçados.
Esses estudos das Nações Unidas, no entanto, podem estar subestimando a verdadeira extensão do desperdício de alimentos. Como se sabe, colocam a culpa de tudo, indevidamente, no comportamento pessoal. Um estudo de seis cientistas liderados por Peter Alexander, da Universidade de Edimburgo, calculou que quase metade dos alimentos do mundo é desperdiçada. Os autores, conforme publicação feita na Agricultural Systems, Losses, Inefficiencies and Waste in the Global Food System (Sistemas de agricultura, perdas, ineficiências e desperdícios no sistema global da produção de alimentos), argumentam que o “consumo excessivo de alimentos” por parte da população abastada deve ser incluído como desperdício.
Eis o que eles escrevem: “Se o consumo excessivo humano, definido como o consumo de alimentos acima das necessidades nutricionais, for incluído como uma ineficiência adicional, 48,4% das culturas colhidas foram produzidas para serem perdidas (o que representa 53,2% de energia e 42,3% de proteína). Descobriu-se que comer em excesso dá uma grande contribuição às perdas tanto do sistema alimentar quanto ao desperdício de alimentos do consumidor.”
O consumo excessivo por parte de seres humanos aqui é definido como o consumo de alimentos acima das necessidades nutricionais. Mas, crucialmente, as perdas de alimentos antes que pudessem ser consumidos compreendem de longe a maior parte desse total: “As perdas das culturas colhidas também foram consideradas substanciais, com 44,0% da matéria seca das culturas (36,9% de energia e 50,1% de proteína) perdida antes do consumo humano” – escreveram.
Essa perda extensiva de safra é um ponto crucial porque a opinião padrão tende a colocar a maior parte da responsabilidade pelo desperdício de alimentos no comportamento do consumidor. Ao culpar as pessoas, ignora-se as causas sistêmicas e isso pode ser muito conveniente para a obtenção de lucros sem-vergonha.
E embora os alimentos sejam certamente desperdiçados ao nível do consumidor, e também ao nível do comércio, o estudo da Agricultural Systems, um dos poucos a analisar sistematicamente essa questão, indica que soluções podem de ser encontradas examinando melhor as ineficiências da produção agrícola. O simples aumento das áreas agrícolas ou a busca de maiores rendimentos por meio do uso de maior quantidade insumos (como fertilizantes, pesticidas ou água) pode causar mais aquecimento global, deterioração da qualidade do solo, escassez de água e perda de biodiversidade.
Mudanças nos níveis de consumo de carne, laticínios e ovos podem afetar substancialmente a eficiência geral do sistema alimentar. (Foto: Stijn te Straje | Unsplash
Os autores escreveram: “Os resultados demonstram que as ineficiências da produção agrícola (tanto na lavoura quanto na pecuária) respondem de modo dominante pelas perdas globais dentro do sistema alimentar, especialmente quando são consideradas as culturas colhidas ou todas as biomassas. (…) Tanto a taxa total de produção primária quanto o percentual que é colhido vêm aumentando ao longo do tempo, em grande parte devido ao aumento da produtividade das culturas. As eficiências de produção pecuária também têm aumentado ao longo do tempo, mas ainda são responsáveis por uma perda substancial. (…) Tanto o comportamento do consumidor quanto as práticas de produção desempenham papéis cruciais na eficiência do sistema alimentar”.
Eis como complementam esse resultado: “As maiores taxas de perda foram associadas à produção animal. Consequentemente, as mudanças nos níveis de consumo de carne, laticínios e ovos podem afetar substancialmente a eficiência geral do sistema alimentar, assim como podem produzir impactos ambientais associados (por exemplo, emissões de gases de efeito estufa).
É, portanto, lamentável, do ponto de vista ambiental e de segurança alimentar, que as taxas de consumo de carne e laticínios continuem a aumentar à medida que a renda média aumenta, potencialmente reduzindo a eficiência do sistema alimentar geral, bem como aumentando as implicações negativas associadas à saúde (por exemplo, diabetes e doenças cardíacas).” O artigo diz que a produção pecuária muitas vezes não é incluída em estudos de perda e desperdício de alimentos. E isso faz com que os seus autores encontrem resultados melhores.
Afirmam, em conclusão, que as “mudanças que influenciam o comportamento do consumidor, tais como, por exemplo, comer menos produtos de origem animal, reduzir o desperdício de alimentos e reduzir o consumo per capita para estar mais próximo das necessidades de nutrientes ajudam a fornecer à crescente população global segurança alimentar de forma sustentável”.
O desperdício de alimentos não é nem inevitável nem é necessariamente uma consequência de falhas humanas básicas – mesmo se se tem de tolerar alguns desperdícios ao nível do consumidor e do varejo. Holt-Giménez, ex-diretor executivo da Food First, o qual foi citado anteriormente neste artigo, afirma que o desperdício de alimentos é inerente ao capitalismo, já que é uma consequência inevitável da concorrência implacável que caracteriza esse sistema. Ele escreveu em seu artigo “Capitalism, food, and social movements” algo que precisa ser ressaltado: “Costuma-se dizer que reduzir o desperdício de alimentos pode eliminar a fome. Embora isso seja conceitualmente verdadeiro, essa afirmação ignora o desempenho ineficaz do próprio sistema alimentar capitalista.
O desperdício de alimentos faz parte desse sistema. A agricultura industrial, a agricultura capitalista, tem que produzir excessivamente para o bom funcionamento dos mercados; assim, o desperdício de alimentos vem como consequência. "A agricultura capitalista é particularmente suscetível à superprodução porque os agricultores são induzidos a produzir mais quando os preços das safras caem, porque precisam cobrir os pesados custos fixos; ademais, também são induzidos a produzir mais em anos bons para compensar os inevitáveis anos de colheita ruim" – escreveu Holt-Giménez. Os agricultores não podem plantar menos em anos ruins nem mover suas fazendas.
Agravando todas essas desigualdades está a disparidade nacional. Os países do Sul Global, onde os agricultores empobrecidos e as populações famintas são encontrados em grande número, estão do lado mais fraco da dinâmica imperialista. O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional são dois veículos primários da dominação e do saque e que apoiam institucionalmente essa dinâmica.
À medida que os governos do Sul se endividam, eles tomam empréstimos e estes não vêm sem requisitos: privatizar ativos públicos (que podem ser vendidos muito abaixo do valor de mercado para empresas multinacionais); cortar redes de proteção social; reduzir drasticamente o escopo dos serviços governamentais; eliminar regulamentações; abrir as economias ao capital multinacional, mesmo que isso signifique a destruição da indústria e da agricultura locais.
Pequenos agricultores do Sul Global sofrem as piores consequências das especulações ligadas ao sistema de agricultura capitalista. (Foto: Pexels)
Esse processo faz com que o endividamento produza sempre mais endividamento. E isso dá às empresas multinacionais e ao FMI ainda mais alavancagem para impor controle externo adicional, o que inclui exigências para enfraquecer as leis ambientais e as trabalhistas. Ademais, os alimentos subsidiados do Norte são exportados para o Sul sob os “diktats” do Banco Mundial e do FMI ou sob os chamados acordos de “livre comércio”. Essas imposições do livre mercado levam à falência os agricultores do Sul, já que eles não podem competir com o sistema mais capitalizado do Norte.
Eis aqui um exemplo: quase cinco milhões de agricultores familiares mexicanos foram deslocados nas duas primeiras décadas do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta); assim, o número de mexicanos vivendo abaixo da linha da pobreza aumentou em 14 milhões. O milho subsidiado dos Estados Unidos inundou o México, pois foi vendido abaixo dos custos enfrentados pelos pequenos agricultores mexicanos.
As importações de milho dos EUA aumentaram cinco vezes e as importações de carne suína dos EUA por parte do México aumentaram mais de 20 vezes, de acordo com um relatório escrito por David Bacon no site Truthout. Como resultado, os agricultores mexicanos foram forçados a deixar as suas terras; tornaram-se então ou trabalhadores sazonais em fazendas agrícolas ou passaram a procurar trabalho nas cidades ou ainda migraram para o norte.
Sob acordos de “livre comércio”, a superprodução agrícola no Norte, subsidiada com recursos vindos de impostos sobre a população em geral, foi despejada no Sul – escreveu Holt-Giménez. “Essencialmente, assim, por meio dessa coação dita de mercado, ocorreu a destruição dos sistemas alimentares do Sul Global para que o Big Grain pudesse ganhar seu dinheiro. (…) Na década de 1970, o Sul Global gerou cerca de um bilhão de dólares de superávit anual com a produção de alimentos. No final do século, isso mudou para um déficit anual de aproximadamente 11 bilhões de dólares.”
Além desse caso do México, muitos outros exemplos poderiam ser citados, mas, para economizar espaço, serão citados aqui apenas mais dois casos e eles se referem a dois países africanos muito pobres, Zâmbia e Quênia. Os termos ditados pelo Banco Mundial e pelo FMI em empréstimos emergenciais, conhecidos por esses credores como “programas de ajuste estrutural”, forçaram os pequenos agricultores dessas duas nações a se integrarem nos mercados globais de alimentos em detrimento deles próprios.
Os programas desse tipo “significaram que os países endividados em todo o Sul Global tiveram que passar por uma conversão: ao invés de priorizar as culturas nativas das quais a população local dependia para sobreviver, tiveram que produzir safras para exportação porque são estas que rendem divisas necessárias para pagar os empréstimos feitos” – explicou Adele Walton, da Progressive International: “Como resultado desse declínio na acessibilidade aos alimentos – e devido aos efeitos ecológicos negativos – as populações locais e os agricultores tornaram-se mais vulneráveis à escassez de alimentos”.
O artigo de Adele Walton afirma que “o capitalismo está causando a crise alimentar – e não a guerra – em países como Zâmbia e Quênia”. A agenda de ajuste estrutural incluiu a privatização e liberalização do sistema de sementes, levando a um declínio no apoio às cooperativas de agricultores. Os agricultores zambianos foram forçados a priorizar o milho como uma cultura de rendimento, diminuindo a variedade de culturas locais, o que resultou em menos fontes de alimentos.
“O controle corporativo da agricultura está enfraquecendo a segurança alimentar” – escreveu Adele Walton. “Os sistemas de sementes deixaram de ser liderados pelas cooperativas (o que dá aos agricultores mais controle e preços mais justos) para serem liderados por empresas (que priorizam os lucros)”. A maioria dos pequenos agricultores da Zâmbia não tem recursos para comprar sementes ao preço comercial. Com mais agricultores forçados a cultivar culturas que produzem dinheiro, as quais podem ser mais suscetíveis às mudanças climáticas, cerca de metade dos zambianos se tornaram incapazes de atender às necessidades calóricas mínimas.
Os agricultores quenianos não se saíram melhor sob este ataque da agricultura capitalista que lhes impôs condições duríssimas de sobrevivência. O uso excessivo de fertilizantes químicos está causando agora degradação da terra e isso prejudica a produção de alimentos. “Em Zâmbia, o culpado pelo legado desastroso cabe também aos programas de ajuste estrutural” – explicou Adele Walton.
“Em 1980, o Quênia foi um dos primeiros países a receber um empréstimo de ajuste estrutural do Banco Mundial. Este exigia, como condicionante, uma redução dos subsídios essenciais para insumos agrícolas, tais como os fertilizantes. Esse processo produziu uma mudança na agricultura, pois foi incentivada as culturas para exportação que rendem dólares, tais como chá, café e tabaco, em vez de cultivar itens básicos essenciais para a população local, como milho, trigo e arroz.”
Como resultado da imposição do FMI, os agricultores passaram a ter que pagar, caso tivessem condições, para obter insumos agrícolas que antes eram gratuitos; em consequência, 3,5 milhões de pessoas no Quênia passaram a sofrer níveis de fome antes não existentes. Há projeções segundo as quais o número subirá para 5 milhões e elas estão no relatório da Save the Children e da Oxfam. Dá aí a conclusão de Adele Walton: “O ajuste estrutural transformou o Quênia em um exportador de alimentos [enquanto] a desnutrição permanece alta”. Não é simplesmente a falta de alimentos que é um problema. A inacessibilidade de alimentos saudáveis cria e piora os problemas de saúde.
Em um exame de 11 países africanos, o relatório da FAO de segurança alimentar, relativo ao ano de 2023, observou que “o custo de uma dieta saudável excede o gasto alimentar médio para famílias de baixa e média renda em países de alto e baixo orçamento alimentar nos 11 países analisados. As famílias de baixa renda que vivem nas periferias urbanas e nas áreas rurais são especialmente desfavorecidas, pois precisariam mais do que dobrar seus gastos atuais com alimentos para garantir uma dieta saudável.”
Em todo o mundo, há 3 bilhões de pessoas que não podem pagar por uma dieta saudável, de acordo com o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos de 2021 da ONU. A baixa renda também torna extremamente difícil para os agricultores na África, e em outros lugares do Sul Global, manter os seus sítios e, assim, obter os meios de subsistência necessários. Os pequenos agricultores, que são em sua maioria mulheres, produzem mais da metade dos alimentos do mundo, de acordo com Holt-Giménez.
Mas, como estão à mercê de práticas capitalistas predatórias, ele escreve: “Embora os camponeses pobres produzam a maior parte dos alimentos do mundo, a maioria deles está passando fome. Suas parcelas de terra são muito pequenas. O que eles recebem pelos produtos é muito pouco. Eles vendem logo que colhem porque são pobres e precisam de dinheiro. Seis meses depois, eles estão comprando comida de volta a preços mais altos; como não têm dinheiro suficiente, passam fome. As mulheres e as meninas que alimentam a maior parte do mundo representam 70% do contingente que têm fome. E essas pequenas propriedades estão ficando menores. (…) Estamos condenando a maioria dessas mulheres agricultoras à pobreza porque suas fazendas são muito pequenas”.
Muitos desses pequenos agricultores em dificuldades são africanos, mesmo assim são vistos como oportunidades financeiras pelas corporações dos países capitalistas avançados. A África chama a maior parte da atenção quando se discute a fome global, embora a maioria dos famintos do mundo esteja na região da Ásia-Pacífico, de acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
E essa atenção especial não é por razões altruístas. Ora, Holt-Giménez explica o porquê: “Há uma razão para a grande visibilidade dada à questão da fome na África em relação à da Ásia. A abordagem para acabar com a fome rotineiramente adotada é a “revolução verde”: produzir mais alimentos com mais produtos químicos e variedades de sementes de alto rendimento. A Ásia já teve a sua “revolução verde” e, consequentemente, está saturada de fertilizantes químicos, transgênicos e máquinas agrícolas modernas”.
“Embora essa transição não tenha eliminado a fome na região, ela pôs para cima, dinamizou o mercado de máquinas, produtos químicos e sementes industriais. No entanto, a África é ainda um mercado aberto para uma “revolução verde”; há, pois, perspectivas de lucros a serem obtidos vendendo essas tecnologias. E embora seja importante falar sobre a questão da fome na África, veja-se que a fome nesta região recebe muito mais atenção em relação à Ásia simplesmente porque promete mais lucros.”
Considere-se de novo a inflação dos preços dos alimentos, algo que todo humano que precisa comer não deixou de experimentar nos últimos dois anos. Essa rodada de inflação de alimentos não é a primeira que ocorre nas duas últimas décadas. De fato, houve um aumento notável nos preços dos alimentos após a crise financeira de 2008. Os preços dos alimentos, então, aumentaram em 80% em 18 meses; em consequência, o número de famintos foi estimado em mais de um bilhão. Depois de uma queda nos preços, o ano de 2011 viu uma outra rodada de aumentos de preços. A especulação financeira estava por trás desse novo surto inflacionário – é o que relata Murray Worthy no relatório do World Development Movement. Aí ele escreveu: “Os especuladores financeiros agora dominam o mercado, detendo mais de 60% de alguns mercados, em comparação com apenas 12% há 15 anos. Somente nos últimos 5 anos, os ativos totais dos especuladores financeiros nesses mercados quase dobraram, passando de US$ 65 bilhões, em 2006, para US$ 126 bilhões, em 2011. Este dinheiro é puramente especulativo; nada dele é ou foi investido na agricultura; entretanto, ele soma agora 20 vezes mais do que o montante total das ajudas concedidas globalmente para a agricultura”.
“A sua atuação fez com que os preços deixassem de ser impulsionados pela oferta e procura de alimentos, pois passou a depender do 'faro' dos especuladores financeiros e do desempenho dos seus investimentos em geral. Isso criou uma enorme pressão inflacionária no mercado, forçando os preços dos alimentos a subir. As consequências foram devastadoras. Só nos últimos seis meses de 2010, 44 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza extrema por causa do aumento dos preços dos alimentos.”
Os “contratos futuros”, dispositivos frequentemente usados agora por bancos de investimento e outros especuladores financeiros para lucrar com alimentos, foram criados, no século XIX, como uma forma de proteção para os agricultores. Visava restringir a volatilidade dos preços das commodities alimentares, permitindo-lhes travar um preço específico para suas safras. O governo Roosevelt, na década de 1930, promulgou regulamentos para limitar e conter a especulação que já então se manifestava; entretanto, os regulamentos foram enfraquecidos na década de 1990 e no início dos anos 2000, em parte em resposta ao lobby do Goldman Sachs.
Como resultado, a especulação aumentou drasticamente e isso teve efeitos desastrosos na oferta e nos preços dos alimentos. “O número de contratos de derivativos em commodities alimentares aumentou em mais de 500% entre 2002 e meados de 2008” – escreveu Tim Jones, do World Developments Movement, em um artigo intitulado The great hunger lottery: how banking speculation causes food crises (A grande loteria da fome: com a especulação bancária causou crises alimentares). Os especuladores passaram a dominar posições compradas em commodities alimentares – e não mais os próprios produtores de alimentos. “Por exemplo, os especuladores detinham 65% dos contratos longos de milho, 68% da soja e 80% do trigo” – relatou Tim Jones.
“Já em abril de 2006, a Merrill Lynch estimou que a especulação estava fazendo com que os preços das commodities fossem negociados em valores 50% mais altos do que se fossem baseados apenas na oferta e demanda fundamentais.” Isso mostra como essas operações são altamente lucrativas para os especuladores. O Goldman Sachs, o vampiro com tentáculos que avançam onde quer que um dólar possa ser extraído, faturou cerca de US$ 5 bilhões com o comércio de commodities em 2009 e estima-se que o Royal Bank of Scotland tenha obtido mais de US$ 1 bilhão.
Tim Jones também explicou isso: a situação, provavelmente, foi mais bem resumida pelo famoso empresário George Soros, ele próprio um capitalista não estranho à especulação financeira. Em uma entrevista à Stern Magazine publicada no verão de 2008, Soros refletiu sobre a natureza da crise: “toda especulação também se encontra enraizada na realidade. (…) São os especuladores é que criam as bolhas e estas são reais. As suas expectativas, as suas apostas em futuros ajudam a elevar os preços; eis que os seus negócios distorcem os valores de venda das mercadorias, o que é especialmente verdadeiro para as commodities. É como acumular comida no meio de uma fome generalizada, apenas para lucrar com o aumento dos preços. Isso não deveria ser possível'”.
Em um mundo racional, isso não seria possível. A especulação, no entanto, só tem se acelerado nos últimos tempos. O índice de preços de alimentos da FAO subiu 58% durante 2021 e no primeiro semestre de 2022, permanecendo bem acima dos preços anteriores à pandemia, mesmo com algumas flexibilizações subsequentes.
Embora a guerra na Ucrânia e os gargalos da cadeia de suprimentos da era da pandemia contribuam para a inflação dos preços dos alimentos, a especulação desempenha um grande papel na elevação dos preços. “Enquanto a disparada dos preços dos alimentos ameaça a segurança alimentar globalmente, grandes empresas de comércio de alimentos estão lucrando” – escreveu Sophie van Huellen, da Universidade de Manchester. “Essas empresas apostam na subida dos preços dos alimentos, armazenando ou negociando quantidades substanciais de mercadorias – obtendo assim grandes ganhos financeiros como resultado.”
Um ex-diretor da Comissão de Negociação de Futuros de Commodities dos EUA, Michael Greenberger, estima que até 25% – possivelmente até mais – do preço do trigo “é ditado por atividade especulativa desregulamentada” envolvendo mercados futuros e derivativos. Ele afirmou que, na verdade, “tem-se um mercado em que os especuladores atuam para elevar os preços”.
O que fazer? A longo prazo, é necessário deixar de fazer dos alimentos uma mercadoria. E isso é possível apenas mediante a abolição do sistema capitalista. Isso não acontecerá, porém, em breve. Logo, são necessárias soluções práticas que possam começar a ser implementadas hoje. A FAO, em seu relatório de Segurança Alimentar de 2023, oferece apenas curativos liberais sem grande eficácia, tal como a construção de infraestrutura rural e o uso da “ciência comportamental” como “uma inovação essencial (…) visando desenvolver abordagens baseadas em evidências”. Nada de errado com esses objetivos, mas eles não tocam nas raízes causais do fenômeno.
Um conjunto muito mais abrangente de ideias foi apresentado em um relatório encomendado pela WWF (World Wide Fund for Nature) escrito por seis autores liderados por Eva Gladek. Nesse relatório, lê-se que “garantir apenas um nível suficiente de produção de alimentos não resolverá os problemas mais arraigados e os desequilíbrios humanitários existentes dentro do sistema alimentar”. “Todas as falhas sistêmicas aí existentes apresentam oportunidades para uma transição do sistema alimentar em uma direção em que ele atenda plenamente às necessidades das pessoas, sem infringir os principais limites. (…) É possível produzir alimentos suficientes, mesmo para uma população muito maior, desde que sejam feitas mudanças estruturais na forma como se trata a produção e o consumo.”
Embora não apresente propostas concretas para atingir tais objetivos, o relatório detalha quatro desafios principais para uma transição segura para um sistema alimentar sustentável e resiliente. São eles:
(i) A capacidade adaptativa e a resiliência devem ser incorporadas tanto nos aspectos biofísicos do sistema (através da preservação da biodiversidade, manutenção de sistemas de solos saudáveis, manutenção da capacidade de tamponamento dos corpos d’água etc.) quanto nos aspectos socioeconômicos do sistema (transferência de conhecimento, desenvolvimento ou capacidade organizacional, eliminação do ciclo de pobreza etc.).
(ii) Nutrição adequada para a população mundial, incluindo a redução do desperdício de alimentos; mudança para fontes de alimentos de menor impacto e menos intensivas em recursos; priorizar a produção de alimentos em detrimento dos usos não alimentares; melhorar o acesso econômico aos alimentos; e melhorar a produtividade dos agricultores no mundo em desenvolvimento.
(iii) Permanecer dentro dos limites planetários em todas as principais áreas de impacto biofísico ao longo de todo o ciclo de vida da produção, consumo e descarte de alimentos, incluindo o investimento no desenvolvimento de novas técnicas agrícolas sustentáveis.
(iv) Apoiar estruturalmente os meios de subsistência e o bem-estar das pessoas que nela trabalham. Elas precisam se alimentar e se sustentar plenamente, ganhando um salário razoável em troca de horas médias de trabalho no sistema alimentar.
Esses objetivos dignos podem ser alcançados sob o capitalismo? Podem, mesmo tendo sido os alimentos, a água e as outras necessidades da vida transformados em mercadorias, as quais são compradas e vendidas pelos maiores valores possíveis, independentemente do impacto social ou ambiental? É certo que devemos tentar, mas é mais do que razoável questionar se isso é possível dentro do atual regime econômico mundial.
Já escrevi isso inúmeras vezes, mas não posso deixar de enfatizar novamente que os mercados capitalistas, atualmente, são apenas o resultado dos interesses agregados dos maiores e mais poderosos financistas e industriais. Os mercados capitalistas não são entidades impassíveis que estão sentadas nas nuvens, distinguindo e separando desapaixonadamente os vencedores dos perdedores. Não.
Note-se, em adição, que esses poderosos financistas e industriais podem invocar o imenso poder dos governos nacionais mais poderosos, assim como as instituições multilaterais, incluindo, mas não apenas o Banco Mundial e o FMI. E eles todos podem impor esses interesses com uma força inaudita sobre as populações. Também são capazes de se valerem das estruturas do capitalismo global, as quais impõem e intensificam as desigualdades de renda e riqueza. Não se deve, pois, esperar resultados diferentes dos que se tem agora. Quantas vidas precisam ser ainda perdidas para que o lucro continue prosperando?
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Nota sobre alimentação. Artigo de Pete Dolack - Instituto Humanitas Unisinos - IHU