A luta feminista por emancipação, liberdade, direito de voto e autonomia vem historiada em 32 páginas numa “Linha de Tempo Feminina” elaborada pela escritora lajeadense Laura Peixoto. Ela constrói um romance-histórico abordando a trajetória da professora estadual Julia Malvina Hailliot Tavares numa minúscula escola em São Gabriel de Lajeado, que trocou de nome em 1939 para Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari. “Malvina” dá nome ao livro.
A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.
Malvina foi uma professora revolucionária, inovadora, que introduziu novos olhares na pedagogia de então, fazendo incursões ao ar livre para estudar biologia, geografia, física, matemática, analisando a natureza. Ela eliminou da sala de aula o castigo, a palmatória, porque, entendia, o aprendizado não se dá com tortura física.
“Malvina” é uma bem construída narrativa romantizada. O livro é recheado de dados históricos, contendo nomes de ruas, picadas, pessoas que viveram nas duas margens do Rio Taquari, em São Gabriel de Estela e em São Gabriel do Lajeado. A obra retrata a vida na colônia, os rituais, a importância da igreja para colonos que tiveram que passar por disputas políticas e revoluções.
Capa do livro "Malvina" de Laura Peixoto (2023). (Foto: Divulgação)
Na leitura da “Linha do Tempo Feminina” toma-se conhecimento, por exemplo, da luta das mulheres por direitos. Apenas em 1879, pouco antes da Proclamação da República, “as mulheres conquistam o direito de cursar o Ensino Superior no Brasil, desde que matriculadas por seus pais ou maridos”! Não era comum meninos estudarem na mesma classe com meninas. Em 1830, Maria Josefa Barreto Pereira Pinto cria a primeira escola mista de Porto Alegre, com aulas de latim, geografia e filosofia.
O censo de 1872, o primeiro do país, mostrou que dos quase 10 milhões de habitantes, 23,4% dos homens eram alfabetizados e apenas 13,4% das mulheres!
Mulheres operárias eram criticadas por irem trabalhar e deixar filhos ao Deus dará. Em 1899, o jornal “A Gazetinha”, da capital gaúcha, dizia, em editorial, que as mulheres não tinham “vocação natural para o trabalho”, submetendo-se a ambientes “onde homens podem ofendê-las ou desonrá-las”!
Na “Guerra dos Braços Cruzados”, uma greve geral disparada em 1917, as mulheres conquistaram o limite de oito horas de trabalho diário, o fim do trabalho infantil, a aposentadoria, a licença-maternidade, o direito à assistência médica e a indenização no caso de acidente de trabalho.
Malvina e José Joaquim. (Foto: cedida pela autora)
Laura Peixoto não esquece, na “Linha de Tempo Feminina”, de registrar introduções na moda: em 1880 “saem as crinolinas e entram as anquinhas, que armavam apenas a parte traseira das saias e vestidos”. Nove anos depois, na França, Herminie Cadolle “divide o espartilho em duas partes: uma para cobrir os seios e outra para modelar a cintura, e patenteia a criação do primeiro sutiã”. Em 1922, num baile, é escolhida a Mais Bela Estrelense, mas com a proibição de dançar o ritmo fox-trot.
A autora, jornalista formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), não esquece de anotar melhorias instaladas tanto em São Gabriel de Estrela quanto em São Gabriel de Lajeado. Em 1914, os lampiões são substituídos em Estrela por rede elétrica, a primeira no Vale do Taquari. Em 1920, chegou a vez de Lajeado, onde 50 lampiões de querosene foram substituídos por 80 lâmpadas elétricas, “para alegria das 1.400 pessoas que vivem no meio urbano”. Seis anos depois, a cidade tinha três “auto-caminhões” de passageiros e 200 telefones.
Se os dados arrolados pela autora na Linha do Tempo motivam o interesse, o romance histórico aguça ainda mais a curiosidade do leitor e da leitora, de se embrenhar naquele tempo colonial e acompanhar as aulas da professora Malvina.
Provocada, a autora contou como tomou conhecimento de uma professora, mestra numa minúscula escola da localidade de São Gabriel do Lajeado, hoje Cruzeiro do Sul, designada pelo presidente do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, para assumir uma turma de 5ª série, aula mista.
- Como eu desconhecia esse fato? Como, há 60 anos vivendo nessa cidade (Lajeado), nunca ouvi falar? Logo eu, carente de figuras femininas para admirar, para me inspirar? Quem revelou esse tema inusitado foi o meu vizinho, Aristides Tavares, um bisneto de Malvina. O bisneto comentou: “Pesquisa no Wikipédia. Uma anarquista e ninguém sabe nada dela!”
Malvina. (Foto: cedido pela autora)
- Pensei, justamente por isso, o seu apagamento, a invisibilidade. A história sempre tem dois lados: a dos vencedores, e a dos derrotados; de quem a viveu intimamente e de quem a pesquisou. E por que não uma terceira perspectiva? A de quem se apropria, ficcionalmente. Descobrir uma voz feminina e diferenciada, em pleno século XIX, nessa região predominantemente conservadora, me deixou comovida e orgulhosa. Eu precisava contar pra todo mundo!
E Laura se pôs a trabalhar:
- Em 2018 começaram as pesquisas, as entrevistas, leituras sobre anarquismo, sobre Proudhon; li a pesquisa “Uma história de vida e trabalho: a educadora Júlia Malvina Hailliot Tavares”, de Dóris Bittencourt Almeida, realizada em 1996; procurei o livro “Os anarquistas no RS”, de João Batista Marçal, edição de 1995. Busquei referências literárias, fílmicas, musicais e entrevistas. Identifiquei-me total com uma frase que encontrei: “...reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente”, da Linda Hutcheon, em “Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção”.
Curiosamente, em Cruzeiro do Sul, Laura não descobriu quase nada, através de mães e avós, sobre o trabalho de Malvina na localidade. “Mas ela existiu e está enterrada no cemitério municipal com o marido dela e um filho”, foi uma dica local.
- Com tão poucas informações, não ousei escrever uma biografia. Comecei a rabiscar uma narrativa, porque nas entrevistas surgiram várias histórias de vida familiar. Em paralelo, fui delineando uma linha do tempo para entender o contexto histórico que Malvina viveu. Mesmo assim, com certeza, o destino da Malvina seria a gaveta.
Mas eis que surge um edital do Pró-Cultura RS – FAC - Fundo de Apoio à Cultura. A autora e a Editora Libélula, de Lajeado, participaram do edital e foram contempladas.
Casa do Morro Cruzeiro. (Foto: cedido pela autora)
- Foi um grande cutuque! Acabar com o silenciamento de sua trajetória. Em cinco anos, o livro construído com base em fotos e cartas obtidas junto a uma descendente, no diário de Malvina analisado com lupa, no diário de um ex-combatente da Revolução Federalista, ganhou mais capítulos. Realizo homenagens aos antigos moradores de São Gabriel do Lajeado, quando uso alguns nomes próprios e fatos históricos de conhecimento geral, o que chamam de microhistória. Para a ficção, os causos, o como poderia ter sido, as concepções políticas e filosóficas, são importantes para o imaginário.
- Escrevi Malvina porque a identificação foi grande. Do contrário, seria muito difícil dar uma continuidade à ficção. Malvina revela muito do que penso. Embora eu me sinta mais anarquista do que ela. Sou inconformada com a exploração humana, com as desigualdades, os privilégios das castas políticas e judiciárias, e contra o militarismo, e muitos outros “ismos”.
- Sim, a gente escreve sobre o que nos toca. Quando damos por acabado – na verdade, nunca acaba dentro da gente - saímos transformados por essa experiência de pesquisar, escrever, corrigir, reescrever, limpar, reescrever, corrigir. E ao finalizar, um oceano de ansiedade.
PEIXOTO, Laura. Malvina. Lajeado, Libélula Editorial, 2023.