02 Setembro 2023
"Não existe uma casta pura em nosso meio, mas o projeto do Reino é inclusivo, puros e impuros (todos nós), somos chamados a ceiar nesse banquete de amor que nos leva a conversão do coração", escreve Frei Vitor Vinicios da Silva, ofm, graduado em Filosofia pelo Instituto Santo Tomás de Aquino, em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia e especialista em Ensino Religioso pelo Instituto Pedagógico de Minas Gerais, IPEMIG.
“[...] essa mulher está transformando um jantar no Café Anglais numa espécie de caso de amor... um caso de amor de categoria nobre e romântica onde não se faz mais distinção entre o apetite e a saciedade do corpo e do espírito!”
O filme “A festa de Babette”, de 1987, é um filme dinamarquês que busca ser uma adaptação do conto (A festa de Babette) que foi publicado originalmente no Ladies’ Home Journal em 1950 e, em 1958, no livro Anedotes of Destiny de Karen Blixen que usa o pseudônimo de Isak Dinesen. O enredo histórico se centra na personagem principal, Babette, que é uma cristã católica que por motivos sociais de conflito, isto é, a Guerra Civil francesa em 1871 e a perda do filho e do esposo, foi acolhida em um vilarejo por duas senhoras de meia idade, Philippa e Martine que viveram desde sempre nesse lugar ao lado do pai. Após a morte do pai que era um pastor luterano e líder comunitário, elas dão seguimento a vida de forma simples e religiosa. Em breves palavras, a vida no vilarejo é talhada de forma sacrificial onde todos os desejos são sacrificados em nome da fé. Já Babette tem seu destino marcado pelo silêncio e sacrifício, trabalhando por 14 anos para essas duas irmãs em troca de comida e abrigo. No fim, sua rotina é quebrada quando recebe a notícia de que é destinatária de uma pequena fortuna de 10.000 francos que coincide com o a pretensão das irmãs de celebrarem a morte centenária do pai.
Nessa atmosfera, Babette faz um pedido de preparar uma refeição no intuito de celebrar esse momento. A princípio, é visto de maneira temerosa, pois poderia aguçar os prazeres terrenos. Porém, elas acabaram concordando e Babette prepara um banquete permeado de taças, vinhos, champanhes e as melhores comidas e bebidas. Dentre os convidados, nenhum dos pobres aldeões ousou tecer elogios, mas um convidado inesperado, um oficial da cavalaria, foi incansável nos elogios. Além do mais, se recorda que certa vez em um jantar em Paris, ouviu falar de um prato chamado Caules em Sarcophage.
[...] inventado pelo chef-de-cuisine do restaurante em que estavam jantando, uma pessoa conhecida em toda a Paris como o maior gênio culinário da época e que era... surpreendentemente... uma mulher! E, na verdade, dissera o coronel Galliffet —, essa mulher está transformando um jantar no Café Anglais numa espécie de caso de amor... um caso de amor de categoria nobre e romântica onde não se faz mais distinção entre o apetite e a saciedade do corpo e do espírito! (DINESEN, 1958).
No fim, esse banquete onde foi gasto toda a pequena fortuna de Babette, se tornou uma refeição transformadora permeada de um halo de amor e perdão que vivido levou a uma grande cerimônia de comunhão, amor, confissão e perdão.
Nesse sentido, o filme se torna o locus da reflexão e, consequentemente, uma abertura a catarse humana. Ao pensarmos a relação entre cinema e sagrado, apontamos as duas vias possíveis para se atingir o sagrado, segundo Filho, a transcendência e a encarnação. A transcendência é a apresentação de sinais ou podemos chamar de aparências que sinalizam uma realidade sobrenatural e a encarnação seria o movimento de atingir o sagrado por meio da encarnação, ou seja, a transcendência se torna carnal e entra no cotidiano do mundo, um enraizamento na banalidade do cotidiano. Dessa forma, apontamos o filme, A festa de Babette, como uma via da transcendência no sentido de nos apontar algo para além do cotidiano camponês daquela aldeia e da própria existência de Babette.
Por outro lado, o filme é permeado de estratégias, que como um sistema, nos leva a algo para além do cotidiano, a mobilidade das câmeras, a diversidade de planos, ritmos, sons e iluminação nos impeli na busca pela transcendência. É de fato uma liturgia, no sentido de existir uma harmonia de elementos que nos faz tocar a transcendência.
Dado isso, sinalizamos o filme como uma grande alegoria do Reino de Deus. Nessa grande narrativa podemos ter diversas impressões teológicas de que nos possibilitam grandes reflexões. Dentre elas, ressaltamos o elemento do sagrado e do profano que permeia as nossas relações religiosas (Deus e o outro). Por vezes, tendemos a separar esses dois elementos de tal forma que não se tocam em momento algum, algo como o puro e o impuro. Essa visão está reverberada nas relações com o outro quando acreditamos que existe uma separação dessas duas categorias, mas a grande realidade é que esses dois elementos não são como água e óleo, mas se misturam a tal ponto de não podermos separá-las. Em outras palavras, o ser humano é a expressão dessas duas categorias e, por vezes, aquilo que é estigmatizado como profano, à primeira vista, é a porta de entrada para a experiência com o sagrado.
O filme nos leva a essa reflexão quando o banquete é visto, em um primeiro momento, como uma festa pecaminosa. Na perspectiva dos aldeões a refeição era algo pecaminoso, um banquete que instigaria os prazeres carnais que eram condenados pela pequena comunidade luterana. Estava presente a ideia de pureza espiritual que é contraposta pela própria festa, ou seja, a festa pecaminosa se torna um banquete de comunhão. O irmão que era enganado nos negócios é perdoado, as mulheres que estavam brigadas há dez anos voltaram a conversar e, dentre tantos elementos, há uma ideia de sacramento eucarístico.
O elemento escolhido nessa breve análise pessoal é algo que me leva a pensar na temática trabalhada pelo evangelista Mateus no final do seu evangelho. A narrativa da morte de Jesus, mais especificamente no capítulo 27, 51, temos uma série de fenômenos que é desencadeado no momento da morte de Jesus. Assim, temos o véu do Templo se rasgando que carrega a ideia de que o acesso ao Pai é de todos e não apenas para uma parcela seletiva. Enfim, a reflexão vem a calhar no sentido de que não existe uma casta pura em nosso meio, mas o projeto do Reino é inclusivo, puros e impuros (todos nós), somos chamados a ceiar nesse banquete de amor que nos leva a conversão do coração. Em síntese, existem outros diversos pontos a serem trabalhados no filme, mas o que mais me chamou a atenção foi esse aspecto que me leva a pensar A Festa de Babette como uma grande alegoria do Reino dos Céus.
DINESEN, Isak (BLIXEN, Karen). A Festa de Babette e outras anedotas do destino. In: Anedotas do Destino. Dinamarca: 1958. Tradução disponível aqui. Acesso em 03 de junho de 2023.
FILHO, Arnaldo Lemos. Cinema e Sagrado. Comunicarte, Campinas, v. 7/8, n. 13/14, p. 6-20.1989/1990.