E se essas obras cinematográficas puderem nos acompanhar no tempo de deserto e de conversão, desses 40 dias anteriores à Páscoa? Nós escolhemos 12 filmes, para uma quaresma tanto cinéfila quanto espiritual.
O artigo é de Anne-Laure Filhol, François Huguenin e Fredéric Theobald, publicado por La Vie, 24-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Certo, o gênero cinematográfico “filme de quaresma” não é um repertório formal, como poderia ser, por exemplo, “filmes de Natal”. Portanto...
Não seria durante esse período anual de 40 dias dedicado para os cristãos à conversão pessoal e à preparação da festa de Páscoa, um tempo propício para aproveitar certas obras cinematográficas e se deixar levar para a meditação sobre o perdão, o mal, a tentação, a passagem da morte à vida? Os tempos de “deserto” para se preparar à celebração da ressurreição de Cristo não poderiam ser acompanhados de longas-metragens de alcance espiritual?
Nós escolhemos 12 obras, algumas explicitamente cristãs, outras profanas; desde clássicos a filmes contemporâneos. Deixe-se guiar, como um retiro em frente a uma tela interposta.
Marxista, ateu, homossexual, o escritor e cineasta italiano Pasolini não foi feito para o cinema edificante. Portanto sua adaptação escrupulosa do evangelho de Mateus é de uma grande verdade espiritual. A escolha de Mateus, assimilado ao velho coletor de impostos Lévi, não é inofensiva: esse é o texto evangélico mais exacerbado contra os ricos e poderosos.
Estrelado por atores não profissionais, o Evangelho segundo São Mateus não tenta reconstituir a Palestina da época, nem de propor um Jesus icônico ou ultrarrealista. Como nos fabliaux da Idade Média na praça das catedrais, sabemos que estamos diante de pessoas que apenas dão uma representação da vida de Jesus.
Mas este é realmente verdadeiro. Ele recusa todos os efeitos espetaculares. Ainda o sermão da montanha se concentrar sobre a visão de Cristo, mostrando quão importante é a Palavra. E a Crucificação evita todo o pathos, sendo filmado de longe. Como no texto do Evangelho, o autor não se prolongo. O importante não é o que podemos ver, mas o que ele diz da morte e da vida.
Em Quebec, um homem vestido com uma batina assassina um advogado por dinheiro e confessa seu crime a um padre interpretado por Montgomery Clift. Aos poucos, o padre Logan vê os olhos pousarem sobre ele. Ele é suspeito de ter assassinado o advogado porque ele supostamente o chantageou devido a um caso com uma mulher. Optando por não revelar o segredo da confissão, o padre Logan não denuncia o culpado.
Absolvido por falta de provas, Logan encara um tribunal bem mais formidável: uma multidão raivosa que deseja o linchar. Tentado pela violência (pressionado pela multidão que quebra o vidro do carro que alugou), sem nenhum recurso humano perante a onda do Mal, o padre vive um caminho-da-cruz que encena radicalmente a questão da escolha do bem contra o mal, um tema subterrâneo irrigando toda a obra do mestre do suspense abordada pelos jesuítas...
Três horas da vida do pastor luterano Thomas Ericsson, atormentado por uma crise de fé, no coração do inverno sueco. Enquanto Martha, a prefeita da cidade o procura por um amor não correspondido, Thomas é interpelado por um paroquiano, Jonas, em grande depressão e em plena dúvida. Mas Thomas não pode enviar a Jonas para além da própria vida espiritual. Ao final de discussão, Jonas se suicida.
De um minimalismo radical, Luz de Inverno (Nattvardsgästerna, no original, em sueco) é sem dúvidas um dos maiores sucessos de Bergman. A cena da carta de Martha à Thomas (filmada por um longo foco sobre Martha durante a leitura) é um destaque.
No final, quando o sacristão, Algot, humildemente entrega sua palavra ao pastor oprimido pela acídia, é de rara densidade espiritual. Ao comentar a Paixão como um sofrimento certamente físico, mas também psíquico e sobretudo espiritual (“Meu Deus, por que me abandonaste?”), Algot mostra que o simples sabe mais do que o clérigo. Ele entendeu que sem amor, a fé como a vida humana é impossível, até infernal.
Nas extensões congeladas e cobertas de neve de uma ilha russa, vive um monge vítima de seus demônios internos por um erro terrível cometido anos atrás, e que aflige sua alma. Sussurrando a oração do coração o dia todo, implorando a Deus e sua misericórdia, esse homem certa vez confidenciou a seu superior: “Meus pecados me queimam”.
Mal compreendido, jocoso, com ciúmes de seus irmãos ortodoxos, este tolo em Cristo é reputado por seus dons de cura e pregação do futuro, lê almas, detecta e afasta espíritos malignos, acalma corações. O mundo exterior vai até este monge, livre, radical, com palavras duras. Na sua comunidade, só o superior adivinhará a santidade deste homem cuja existência terrena foi um longo purgatório. Uma luta espiritual permanente. Uma Via Crucis lúcida e humilde, inteiramente voltada para Cristo.
“Há dois caminhos na vida, o da natureza e o da graça”. Dos primeiros minutos do filme-prodígio de Terrence Malick (Palma de Ouro 2011, em Cannes), a voz silenciada pressagia a continuação.
Mas antes do desdobramento narrativo dessa questão crucial, a do pecado original, o espectador testemunha – fascinado ou cansado – uma superposição de imagens da criação do mundo; cosmos em turbulência, arrancado do nada, nesta violência inerente a cada nascimento. A narração continua, com palavras bíblicas devidamente escolhidas.
Em seguida, vem a história humana, aquela que encarnará perfeitamente a história da humanidade, tão banal quanto única, tão trivial quanto espiritual. Nos vemos no Texas dos anos 1960, imersos nas alegrias e nos dramas da família O'Brien. Entre o pai (Brad Pitt), uma figura autoritária e brutal embora amorosa, a mãe (Jessica Chastain), gentil e sensível, e um dos três filhos em particular, é toda a temática da satisfação por parte da devastadora violência que espreita em cada ser humano ou abertura para a salvação, graça que é exposta.
“Escolha a vida” (Dt 30,19), parece calar a voz dos personagens, todos admiravelmente interpretados. Neste tempo de Quaresma, “A Árvore da Vida” convida-nos a usar incessantemente a nossa liberdade, sede da nossa dignidade, a recusar o mal e a escolher a porta estreita que conduz ao Reino... à imagem da cena final, avassaladora.
[Nota: O IHU promoverá uma discussão sobre este filme, com o Prof. Dr. Faustino Teixeira e o Prof. Dr. Angelo Atalla. A atividade será transmitida pelo canal do IHU no Youtube. Acesse este link e ative o lembrete para a atividade].
Christopher McCandless sonhou que estava morto. Sua história verdadeira levada ao cinema depois de ter um emocionante livro escrito por Jon Krauker. Estudante brilhante, diplomado, Christopher fez uma doação dos seus 24 mil dólares guardado para uma ONG e optou por uma vida vagando.
Ele se rebatiza como “Supertramp”, em referência aos mendigos jogados pelas ruas da miséria mas também ao vagabundo celeste de Kerouac a fim de uma aventura espiritual. Ele, jovem idealista, aspira a liberdade, muitos empregos e amigos, mas recusa todo afeto. Ele quer uma natureza virgem e selvagem onde vive em eremitério, como Thoreau e os heróis de Jack London. Em abril de 1992, vai para o coração do Alaska. Sua aventura extrema torna-se um renascimento. Essa será uma agonia lenta.
Sean Penn eleva Chris ao nível de mito. Mas a odisseia não se resume aos grandes espaços e a uma orgulhosa fuga do mundo. O filme aposta nos reencontros e partilhas, que dizem das relações humanas fraternas e autênticas, libertas de todo cálculo materialista. E a história, finalmente, encontra uma razão de ser nas linhas traçadas por Chris antes de sua morte: “a felicidade não existe se não compartilhada”.
Esse é sem dúvidas um dos mais assistidos e um dos mais discutidos. Duas horas de tortura e súplica. Mostrando as últimas doze horas da vida de Jesus na terra, do Monte das Oliveiras ao Gólgota, a Paixão de Cristo não economiza em nenhum detalhe da agonia do Filho de Deus. O espectador embarca com Ele, entre as sequências de flagelação, câmera sobre corpos lacerados, e abusos. Insuportável: pelo tratamento hiper-realista, Mel Gibson quis dar consciência a cada um pelo o que o Cristo sofreu.
Edificante e perturbador para alguns, hiperviolento para outros, este filme, proibido para menores de 12 anos, gerou um acalorado debate na época de seu lançamento.
A Conferência dos Bispos da França havia levantado vários limites: “A escolha de isolar a Paixão da vida e da pregação de Cristo, por um lado, e das histórias sobre o Ressuscitado, por outro, encurta a mensagem de forma problemática. Os poucos flashbacks, alusivos, não levam em conta os motivos complexos que aos poucos despertaram o apoio das multidões a Jesus, e a polêmica sobre sua pessoa, suas intenções, seu mistério (…) Se o filme evoca de forma crua a atrocidade das torturas sofridas e da morte na cruz, o faz com uma complacência chocante no espetáculo da violência. Esta violência, que oprime o espectador, acaba por obscurecer o sentido da Paixão e mais amplamente, o essencial da pessoa e da mensagem de Cristo: o amor aperfeiçoado no consentimento da doação”.
Olivier (Olivier Ogurmet) é professor de carpintaria em um centro de reinserção social. Ele recebe para estágio um jovem homem que foi preso pela morte de seus filhos. Com a Câmera no ombro, os irmãos Dardenne seguem Olivier sempre, mas mantendo certa distância.
Por que seguir o jovem em todos os lugares – nas instalações, na cidade, na floresta? Para se explicar? Ter vingança? Perdoar? Ninguém sabe nada sobre isso, Olivier primeiro. O filme mostra corpos em movimento, trabalhando com a matéria, no caso a madeira. O que está acontecendo não é cerebral nem psicológico, mas da ordem do vital.
Mesmo se os Dardenne deixassem uma total liberdade de apreciação aos espectadores, poderíamos ler esse filme como uma redenção para o perdão. Em meios aos planos, o filme transforma-se em um thriller metafísico na cena da perseguição nos bosques e cumes. Como ateus, os Dardenne levam o assunto a sério; como cineastas, eles sabem que você só pode filmar corpos. Mas da forma que o indizível e o invisível apareçam na tela; em uma palavra, graça.
Na epígrafe do filme, Rossellini escolhe extrair do capítulo 65 de Isaías: “Eu me apresentei para aqueles que não perguntavam por mim; deixei que me encontrassem aqueles que não me procuravam”. Karen, refugiada lituana interpretada por Ingrid Bergman, é internada em um campo porque é a amante de uma autoridade alemã durante a guerra.
Ela se casa com um pescador da Ilha de Stromboli para sair do acampamento, mas só quer sair da ilha. Para fazer isso, ela deve acessar uma aldeia costeira através do terrível vulcão. Perdendo-se durante a noite, ela implora a Deus por sua ajuda após uma longa escalada ao Calvário.
Ao filmar uma heroína que não é uma figura mística e cujo vazio interior se torna cada vez mais abismal à medida que o filme avança, Rossellini despoja Ingrid Bergman de toda a psicologia para encontrar uma alma nua onde a graça pode finalmente passar, já que nada está no caminho. Para Éric Rohmer, Stromboli é o filme da “miséria do homem sem Deus”.
Em uma pequena vila dinamarquesa, duas irmãs celibatárias de coração puro recebem como servente de Babette Hersant (Stéphane Audran), uma francesa que fugiu da Comuna de Paris.
Durante 15 anos, ela serve as duas mulheres austeras com quem se refugiou, até o dia em que descobre ter ganho 10 mil francos na loteria. Ela então se propõe a organizar uma grande refeição para doze convidados, durante a qual abrirá não só os paladares, mas também os corações e as almas.
Nem tudo foi dito e escrito sobre esta obra-prima, adaptada de um conto de Karen Blixen. Cume da profundidade humana e espiritual? Filme sobre perdão? Evocação sutil da Eucaristia? Não há, entretanto, nenhuma mensagem explicitamente cristã no filme, mas Babette aparece tanto como uma figura de Cristo que muitos crentes não se enganam.
É também um dos filmes favoritos do Papa Francisco, que o escreve na exortação apostólica Amoris Laetitia (primeiro caso de um filme referenciado em um documento magisterial): “As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: ‘Como deliciarás os anjos!’”.
Essa é uma história de amor. De um amor por um país, de um amor pelos homens. Uma história contada desde uma vida monástica, se poderia dizer. Mais que uma visão do cotidiano dessa comunidade de Tibhirine, na Argélia, formada por novo religiosos. As músicas, os estudos, o ritmo de trabalho das cenas.
Antes que o caos do mundo abale este mosteiro no Atlas, antes que a violência surja, Xavier Beauvois aproveita para mergulhar o espectador em uma realidade que é bela e comum: a harmonia que reina entre monges e aldeões, entre cristãos e muçulmanos.
Então, quando a ameaça se torna mais clara, dúvidas e medo aparecem enquanto os homens se perguntam sobre seu compromisso e o significado de sua possível morte. Evidenciado por esta sequência sublime de sua última refeição, abalada pelo comovente Lago dos Cisnes de Tchaikovsky.
Cena da Última Ceia, onde a câmera, parando em cada rosto, revela um tempo suspenso ao sabor da eternidade, onde cada olhar traz consigo lágrimas de perfeita alegria. Alegria do coração em paz, que se entrega até ao fim, a exemplo do Filho de Deus.
Johannes é o segundo filho de Morten Borgen, camponês de Jutland. Afetado por uma forma de loucura mística, ele fala como Jesus (O título original, em dinamarquês, Ordet, significa Palavra). Em um mundo menos luterano que outras épocas (o irmão mais velho de Mikkel é ateu), ele é um ser a parte, pregando sozinho pelas magníficas paisagens do mar dinamarquês ampliadas pelo preto e branco de Dreyer.
A morte de Inger, esposa de Mikkel, no parto de sua filha, dá a Dreyer a oportunidade de filmar uma das cenas mais marcantes da história do cinema. A pequena Meren, filha do falecido, pega o tio pela mão e o leva até o leito da morte.
Lá, Johannes pronuncia estas palavras de Cristo: “Dê-me a Palavra... Inger, em nome de Jesus Cristo, levanta-te”. Inger encontra a vida e seu marido a fé. Quem estava louco acabou por ser o mais sábio. Só ele cria no poder da Palavra. Como João (o Batista), ele chorou no deserto. Como João, o discípulo amado, ele acreditou no poder da Palavra. E manifestou que a vida só depende desta Palavra que é Vida em plenitude.
Em fevereiro de 1951, Robert Bresson adaptou para o cinema o romance de George Bernanos, 15 anos depois de seu lançamento. Seu terceiro longa-metragem marca a confirmação do estilo do cineasta: recusa toda a expressão dramática ou psicológica, prioriza em absoluto os corpos, e especialmente os rostos, para dizer o invisível, da alma, da permanência do ser e seu segredo existencial.