17 Agosto 2023
Indígenas e ribeirinhos enfrentam insegurança no território enquanto aguardam a punição dos culpados por perseguições, torturas e assassinatos. Além da punição, falta reparação às vítimas e apoio psicológico. Organizações de direitos humanos destacam que o caso é emblemático para tentar mudar o cenário de violência institucional contra comunidades na Amazônia.
A reportagem é de Wérica Lima, publicada por Amazônia Real, 16-08-2023.
Os últimos três anos foram de longa espera para as vítimas e familiares do massacre do Abacaxis, como é conhecido o crime contra indígenas e ribeirinhos em torno do rio de mesmo nome, no Amazonas. A violência, a tortura e os assassinatos ainda estão nítidos na memória dos indígenas Munduruku, Maraguá e dos ribeirinhos que vivem na Terra Indígena Kwatá Laranjal, ao longo rio Abacaxis e Mari-Mari, entre os municípios de Borba e Nova Olinda do Norte (a 126 quilômetros de Manaus).
Mapa do Rio Abacaxis e Rio Mari-Mari. (Arte: IHU)
“Passaram-se três anos e até hoje não temos nenhuma solução por parte do poder competente que atua nesse caso. Perdemos vidas, perdemos as nossas aldeias, perdemos nossa paz, nossa liberdade e autonomia. Não matamos ninguém, não roubamos ninguém, não fizemos nada, mas estamos pagando pelos incompetentes e irresponsáveis que fizeram tudo isso”, desabafa uma liderança Maraguá que não será identificada por motivos de segurança.
Para cobrar justiça, foi realizado entre os dias 2 e 4 de agosto o evento “Três anos do massacre do rio Abacaxis: haverá justiça e reparação?”, que contou com a participação de sete vítimas e de organizações não governamentais como o Coletivo pelos Povos do Abacaxis, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e representantes do Ministério da Justiça e da Polícia Federal.
“A nossa intenção através do coletivo é de não deixar que esse massacre se torne um caso comum ou vire apenas estatística como qualquer outro massacre que eventualmente ocorre em todo o país”, afirma Dione Torquato, secretário geral do Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).
O evento e um manifesto lançado em maio deste ano cobram celeridade nos processos para punir os acusados. Até o momento, houve o indiciamento dos coronéis Louismar Bonates, ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas, e Ayrton Norte, ex-comandante da Polícia Militar do Amazonas, em abril deste ano. Além deles, mais de 150 pessoas podem ser indiciadas, de acordo com o delegado Jonathas Simas, da Polícia Federal.
A defesa de Louismar Bonates e Ayrton Norte afirma que eles não cometeram os crimes e estão à disposição das autoridades policiais e da Justiça.
Em maio de 2022, o governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), condecorou os dois coronéis indiciados “como prova do reconhecimento das suas qualidades e valores”. Eles receberam medalhas comemorativas no aniversário da Polícia Militar do Amazonas junto com outros 12 oficiais.
Ayrton Norte e Louismar Bonates na inauguração da nova sede do Batalhão Ambiental, em Manaus. (Lucas Silva | Secom)
“O caso do Abacaxis é sem dúvida uma das maiores violações de direitos que acompanhamos nas últimas décadas no Amazonas, o que comoveu a sociedade e principalmente os órgãos que atuam na defesa dos direitos humanos das populações”, ressalta Dione, que acompanha desde o início o andamento das investigações e integra o Coletivo pelos Povos do Abacaxis.
Josimar Moraes Lopes, 26, cujo corpo foi encontrado no igarapé Bem Assim, na região de Borba (AM); seu irmão Josivan, 18, à dir., continua desaparecido. (Foto: Arquivo Pessoal)
Em julho de 2020, o então secretário-executivo do Fundo de Promoção Social estadual, Saulo Moysés Rezende Costa, afirmou ter sido baleado enquanto fazia prática ilegal de pesca esportiva no rio Abacaxis. No dia 3 de agosto, policiais militares do Amazonas, sem fardamento e com os rostos cobertos, entraram nas comunidades para deflagrar uma operação supostamente para combater o tráfico de drogas na região. Neste dia, dois PMs foram mortos por não indígenas que estariam envolvidos com o tráfico.
Depois disso, a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas enviou 50 policiais para a área. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, a sucessão de acontecimentos levou à execução de seis pessoas e o desaparecimento de duas nas comunidades ao longo do rio Abacaxis, em uma violação de direitos humanos que teria sido cometida por agentes a serviço do Estado. Além disso, há diversos relatos de torturas e violações de direitos humanos.
A chacina resultou nas mortes dos irmãos indígenas do povo Munduruku, Josimar e Josivan, da Aldeia Laguinho, que viajavam a Nova Olinda do Norte para receber pagamento, e de mais quatro ribeirinhos, sendo um menor de idade. Segundo a PF, até hoje não existe laudo provando que Saulo Moysés Rezende Costa foi baleado.
Evento na Ufam que marcou os três anos do massacre, organizado pelo laboratório Dabukuri. (Foto: Steffanie Schmidt | Cimi Regional Norte I)
As organizações que acompanham o caso cobram do Ministério Público Federal (MPF) a denúncia à Justiça Federal contra os dois indiciados pela PF. Os dois são ex-integrantes da alta cúpula da Segurança do Amazonas e foram indiciados pelos crimes de homicídio, tortura, associação criminosa, cárcere privado e obstrução.
“Agora a pressão é para que o MPF denuncie os dois, que já tiveram os inquéritos terminados. Só falta agora a ação do Ministério Público Federal de denunciar essas pessoas para que aconteça o processo” explica uma das advogadas do Coletivo pelos Povos do Abacaxis, que prefere não se identificar por receber ameaças de morte ao prestar apoio às vítimas.
“O que poderia provocar um mandado de prisão seria a comprovação de que eles estariam ameaçando pessoas, testemunhas ou outras razões. E por que não foi pedido nenhum tipo de prisão para eles? Isso tudo porque são gente grande mesmo e em regra porque se responde a processo em liberdade. Essa é a regra, mas os pobres geralmente respondem presos, os ricos e poderosos respondem soltos e quase nunca vão presos”, afirma a advogada ouvida pela Amazônia Real.
A morosidade leva as populações e organizações à sensação de que estão abandonadas pelo poder público, em uma repetição de massacres e perseguições na Amazônia.
“Até o momento neste caso o que a gente nota é uma morosidade por parte do Estado e não temos dúvidas de que há influências políticas por trás disso. O que nós esperamos, por meio do processo que vem ocorrendo, é que o Ministério Público Federal ofereça a denúncia ao juiz e que o juiz responsável tome as devidas providências cabíveis, que haja o julgamento dessas pessoas”, diz Dione.
Atualmente, o Ministério Público Federal de Brasília é quem está responsável pelo caso, mas o delegado Jonathas Simas afirmou que há a possibilidade de pedir transferência para o Amazonas, com o objetivo de acelerar o processo. Simas afirma que “é uma tarefa difícil” resolver a situação e que há um grande esforço da Polícia Federal nesse sentido.
“Fico frustrado quando não encontro uma autoria ou então uma materialidade de um um caso onde acredito piamente que houve um crime, mas não consigo provar”, disse o policial. Ele destacou que é necessário cumprir o processo penal, as garantias constitucionais. “Nós precisamos ter as provas concretas, precisamos fazer passar por todo o périplo processual”.
Simas afirmou desconhecer a influência de possíveis forças políticas atuando para atrapalhar o andamento. “A gente não tem contato com o Estado do Amazonas, a gente responde ao presidente da República, ao ministro da Justiça, ao delegado geral (da Polícia Federal). Então a força política eu não percebo, ingerência de fora, não. Não posso falar pelos outros colegas, mas acredito que não e cada um vai tentar fazer da melhor maneira possível e responder pelos seus atos”.
Em resposta à Amazônia Real, o MPF disse que o caso segue tramitando em sigilo e por isso não é possível divulgar informações. As perguntas enviadas pela reportagem questionavam sobre o andamento do caso e quais são as contribuições do órgão para o avanço do processo, o que não foi respondido
Evento na Ufam que marcou os três anos do massacre, organizado pelo laboratório Dabukuri. (Foto: Steffanie Schmidt | Cimi Regional Norte I)
Não há uma nota, um reconhecimento das infrações e nem mesmo um pedido de desculpas da Secretaria de Segurança Pública (SSP-AM) às vítimas. Ao ser procurada pela Amazônia Real, o órgão informou que “tem colaborado com a investigação e confia no trabalho da Justiça”. A SSP não respondeu a outras perguntas enviadas, que questionam sobre o posicionamento em relação ao caso, se reconhece as arbitrariedades, se houve retratação às populações e se houve algum tipo de ação para reparação dos danos causados, bem como para assegurar a qualidade de vida e integridade das vítimas.
“O governo do Amazonas autorizou esse massacre no rio Abacaxis e hoje estamos sofrendo as consequências da irresponsabilidade. Quantos juízes já se passaram nesse caso? Quantos delegados já passaram nesse caso? Quem teve coragem ou competência para dizer que o governo é culpado disso? Nós sabemos que o governo é culpado. Por que que esse juiz, esse delegado, não culpam o governo?”, pergunta uma liderança Maraguá.
Uma parente de um dos assassinados até agora não obteve respostas sobre o que aconteceu com o corpo, que está desaparecido. Ela não teve o direito de despedida e sente o drama de conviver com o sentimento de ainda aguardar o retorno do familiar para casa. Ele voltava do trabalho quando foi assassinado.
“O que fizeram? Onde ele está? Onde jogaram? Ele também era um ser humano”, lembra. “Então eu peço justiça, muita justiça. Minha mãe está sofrendo com meu pai dentro de um quarto sem comer, sem beber às vezes. E é muito triste, eu não conseguia nem dormir quando eu fui ver essa situação, eu andava da sala para cozinha, da cozinha para sala desesperada, chorando”, relata. “Aqui se encontram vários pais e mães querendo justiça pelos seus filhos que nunca mais vão ver. Nunca mais eu vou ver meu irmão. Nunca mais vou poder dar um abraço. E é muito triste, é muita dor. Tem que pagar quem fez isso, tem que ter justiça”, desabafou durante o encontro de familiares e organizações.
Força Nacional na Amazônia. (Foto: Acervo MJSP)
A população da região enfrenta também as consequências da grilagem, do tráfico de drogas, do garimpo ilegal e de ameaças de caçadores e pescadores ilegais. Conforme relatos, esse cenário de criminalidade ficou ainda mais intenso nas comunidades.
Segundo uma liderança ouvida pela reportagem, o rio Abacaxis segue sendo saqueado. “Quando a Polícia Federal saiu do rio Abacaxis, eles prometeram que iam construir uma base para que se controlasse o tráfico, as invasões, mas até hoje foi só uma promessa”, ressalta.
Um exemplo dessa situação foi a ameaça sofrida por um indígena Maraguá após registrar boletim de ocorrência contra o tráfico de drogas. Um traficante o procurou logo em seguida para tirar satisfação, o que o deixou inseguro em relação aos órgãos públicos que deveriam protegê-lo.
Um questionamento frequente é o motivo de a Força Nacional, enviada pelo Ministério da Justiça para proteger os moradores, ter ficado na cidade de Nova Olinda do Norte e não na área ameaçada, onde aconteceu o massacre.
De acordo com Daniela Reis, coordenadora geral de Prevenção de Conflitos no Campo e na Cidade do Ministério da Justiça, a presença da Força Nacional não supre a demanda por proteção nos conflitos. Para ela, é preciso ir além da presença policial, incluindo estruturas políticas comunitárias e ações sociais que garantam proteção duradoura.
“A Força Nacional tem um caráter tão excepcional que não supre essa demanda de proteção complexa que a gente tem em diversos conflitos”, disse.
Os indígenas não ficaram satisfeitos com a resposta. Para eles, o mínimo seria uma ronda da Força Nacional para que eles se sintam mais seguros e retomem suas práticas culturais, que foram interrompidas após o massacre.
Indígenas Maraguá na aldeia Terra Preta. (Foto: Cimi)
Pescar, deixar as crianças tomar banho no rio ou até mesmo caçar e plantar já não são ações corriqueiras ao longo do rio Abacaxis. Há o medo da violência, o temor de ser vítima de torturas, perseguições e assassinatos.
“Você pode ter uma ideia do que é ficar preso dentro da sua própria casa, dentro do seu território, sem poder sair para pescar sozinho, sem poder sair para caçar sozinho porque não tem a segurança de dizer: eu vou ali e vou voltar?”, questiona uma das lideranças da Aldeia Terra Preta. “Nós estamos vivendo os piores momentos da história do povo Maraguá. Eu acredito que a guerra da Cabanagem foi ruim para todos os povos. Mas o massacre do rio Abacaxis também está deixando consequências terríveis dentro do nosso território”.
Indígenas e ribeirinhos relatam que cotidianamente aparecem drones nas comunidades, monitorando tudo o que acontece. Durante o evento que marcou os três anos do massacre, a Polícia Federal afirmou que os equipamentos não pertencem à corporação.
“Eu não me sinto bem em sair da minha casa. Fico até pensando porque tem pessoas que ficam me olhando de um jeito que eu não gosto, porque estou traumatizada, qualquer coisa pode fazer eu ficar pensando besteira. Aí já prefiro não sair mais com minha própria família, depois do que aconteceu eu não me sinto mais confortável”, relata uma indígena Munduruku.
Tiago Maiká. (Foto: Alberto César Araújo | Amazônia Real).
“A gente vive uma certa esperança de que as coisas comecem a caminhar”, afirma Tiago Maiká, que trabalha com conflitos territoriais e é professor na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Para ele, que faz parte do Coletivo pelos Povos do Abacaxis, é esperado que nas próximas semanas a Polícia Federal tenha mais coisas a apresentar sobre as investigações e que o coletivo passe a ter conhecimento sobre quem são os demais criminosos.
Outras reivindicações são a construção da base móvel da Polícia Federal, a indenização às vítimas e acompanhamento psicológico. “Acho fundamental um acompanhamento psicológico dessas pessoas que sofreram torturas. É importante sempre frisar que não foram somente os mortos, mas torturas que ocorreram contra comunidades inteiras, sem excluir qualquer pessoa, desde bebês, crianças, até idosos, o que requer um apoio psicológico para que essas pessoas possam superar esses traumas vividos”, explica.
Segundo Maiká, a luta do Abacaxis não deve ser isolada por se tratar de violações cometidas por órgãos públicos, que fazem da polícia um fator de insegurança. “Esse caso é um divisor de águas. Se a gente consegue dar uma resposta e afastar pessoas que têm utilizado a instituição pública para o cometimento de crime, a gente consegue dar um salto de qualidade no serviço de segurança que é oferecido no Estado do Amazonas”, ressalta.
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Massacre no Abacaxis: três anos sem justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU