16 Agosto 2023
"Uma sociedade que se quer democrática não pode aceitar nenhum absoluto e deve estar disposta a discutir criticamente a sua medicina que, sendo política, não é única, e sim o resultado de uma opção política entre várias outras. Assim, há um amplo espectro de medicinas, que vão desde aquelas monstruosas de Wagner e Sackler, até outras bem diferentes, que pretendem, por exemplo, tratar não os efeitos, mas as causas de doenças psíquicas como a depressão em uma sociedade organizada com base na competição, no isolamento e no individualismo".
O artigo é de Andityas Soares de Moura Costa Matos, doutor em Direito e Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil), pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universitat de Barcelona (Catalunya), doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra (Portugal), professor Associado de Filosofia do Direito e disciplinas afins na UFMG, professor Visitante na Universitat de Barcelona (2015-2016) e na Universidad de Córdoba (Espanha, 2021-2022) e pesquisador Residente no IEAT entre 2017 e 2018.
A nova minissérie de Netflix em seis episódios, com o título ao mesmo tempo irônico e macabro Painkiller, conta por meio de vários pontos de vista o surgimento e a expansão da chamada epidemia de opioides nos EUA. Acompanhamos a narrativa a partir da criação do OxyContin por Richard Sackler, médico e bilionário americano presidente da Purdue Pharma, que posteriormente será conhecido como “o mais perverso traficante da história”.
O OxyContin é um poderoso opioide que promete acabar com a dor crônica e, graças a uma intensa campanha publicitária e de cooptação dos médicos, se tornou uma das drogas mais populares nos EUA no final dos anos 90, usada como se fosse uma simples aspirina não apenas para doenças graves, como câncer, mas em praticamente qualquer situação que envolva o mínimo desconforto físico. Todavia, apesar de funcionar bem no início, o OxyContin é altamente viciante, possuindo propriedades e estrutura molecular muito próximas da heroína.
A série demonstra que Sackler e sua família-empresa – que já lidava há décadas com o mercado da dor – sabiam muito bem acerca desses efeitos e não só não se importaram com isso, mas exploraram o OxyContin para criar um mercado literalmente cativo de clientes que pouco se diferenciam de viciados que fazem de tudo para conseguir a sua dose. O resultado é o que chamamos hoje de epidemia de opioides nos EUA.
Segundo dados do CDC (Center for Disease Control and Prevention) e da NIDA (National Institute on Drug Abuse), entre 1999 e 2020, algo em torno de 841.000 estadunidenses morreram de overdose de opioides – comprados com receita ou não –, sendo que no período de um ano, entre janeiro de 2022 e 2023, ocorreram 109.600 mortes, uma média de 300 por dia. No que se relaciona ao uso “recreativo” de opioides por adolescentes, sabe-se que já ultrapassa, em termos quantitativos, o uso combinado de cocaína, heroína e metanfetamina. As consequências dramáticas desse quadro são mostradas na minissérie por meio do trabalho da investigadora Edie Flowers, que vai juntando as peças do quebra-cabeças, e da rotina de Glen Kryger, um usuário legal de OxyContin que, antes perfeitamente saudável e funcional, se torna praticamente um morto-vivo.
Ainda que bem dirigida e produzida, a minissérie apenas sugere, sem aprofundar, um problema atual que, apesar de estar ligado à epidemia de opioides, é algo muito mais amplo, tendo a ver com a sacralização do médico, da medicina e, em última instância, da ciência. Na minissérie se percebe que o uso do “Oxy” só pôde se popularizar com a velocidade e a intensidade que vemos porque a comunidade médica americana foi cooptada pelas farmacêuticas, que passaram a investir mais em propaganda do que em pesquisa, transformando a saúde em um verdadeiro e lucrativo negócio.
No início do segundo episódio, uma das representantes da Purdue Pharma treina a sua “discípula”, dizendo-lhe que o sucesso das vendas depende de convencer os médicos a receitar OxyContin para seus pacientes, pois o médico – e não o padre ou o político – é o único em quem as pessoas confiam cegamente. De fato, nos nossos dias a medicina se tornou uma espécie de saber inquestionável e o médico assumiu uma função quase sacerdotal. Muitos estudiosos leem esse fenômeno como um exemplo daquilo que o filósofo francês Michel Foucault chamou de biopolítica, ou seja, uma política que age diretamente sobre a vida, seja para protegê-la e fazê-la crescer, seja para negá-la, no caso de classes e raças “indesejadas”, com o que acaba se transformando em tanatopolítica.
Em um livro que escrevi com o filósofo catalão Francis García Collado intitulado Para além da biopolítica (São Paulo: sobinfluencia, 2021), lançamos a hipótese de que o poder médico pode ser lido não simplesmente como biopolítica, e sim como aquilo que chamamos de bioarztquia, expressão que contém os termos gregos bios (vida) e arquia (poder) e, incrustado neste último, a palavra alemã Arzt, que significa “médico”. O uso do alemão serve para lembrar a fala de Gerhard Wagner, médico-chefe dos nazistas que, durante o III Reich, prometera que o médico voltaria a ser o que foram os médicos do passado, ou seja, sacerdotes.
A bioarztquia, contudo, não é exclusiva do nazismo, tendo se tornado uma prática comum em nossas sociedades e que indica um duplo processo: a politização da medicina e a medicalização da política. Sem dúvida, é inevitável que a medicina seja política. O problema é que médicos, autoridades e a população em geral não reconheçam esse seu caráter e a tomem como um saber inquestionável e sagrado. Tal só é possível por meio de uma visão acrítica que trata a medicina e a ciência como campos neutros e objetivos que estão em uma espécie de competição com a ignorância e o embuste. É esta, por exemplo, a orientação do livro Que bobagem!, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, que condena a psicanálise, a acupuntura e a homeopatia por não serem “científicas”.
Todavia, uma sociedade que se quer democrática não pode aceitar nenhum absoluto e deve estar disposta a discutir criticamente a sua medicina que, sendo política, não é única, e sim o resultado de uma opção política entre várias outras. Assim, há um amplo espectro de medicinas, que vão desde aquelas monstruosas de Wagner e Sackler, até outras bem diferentes, que pretendem, por exemplo, tratar não os efeitos, mas as causas de doenças psíquicas como a depressão em uma sociedade organizada com base na competição, no isolamento e no individualismo. Um outro exemplo seria uma medicina capaz de entender o sentido social da dor, do mal-estar psíquico e da diferença ao invés de se propor a mascarar indefinidamente seus efeitos.
Em resumo, o que a epidemia de opioides nos ensina é que a medicina não é um campo neutro, médicos não são santos laicos e que a ideia de ciência precisa ser discutida e reconstruída não apenas por especialistas, mas pela sociedade que ela afeta.
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Painkiller e os riscos da sacralização da medicina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU