14 Agosto 2023
“Caro Mário, as estrelas daquele pensamento crítico que sempre lhe serviu de inspiração já não brilham mais nesta pobre Itália aniquilada por um pensamento único que arrasou com toda criticidade. Fomos derrotados, mas não foi por isso que você e nós nos rendemos ou, pior ainda, passamos para o lado do inimigo”. Mario Tronti e a Itália hoje. A palavra a Massimo Cacciari.
A entrevista é de Umberto De Giovannangeli, publicada por l'Unità, 10-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mario Tronti, o seu pensamento, a sua práxis e a Itália hoje. O que sobrou, professor Cacciari?
É outro mundo. É muito difícil estabelecer relações. Faltam todas aquelas referências.
Navegamos sob outro céu. Não há mais as estrelas que havia no passado. Mario sabia muito bem que a rota não podia mais ser aquela, que não se tratava simplesmente de navegadores inexperientes, mas que se tratava de navegar sob outro céu. Não havia mais as estrelas polares de então.
Aquelas referências sociais, aqueles sujeitos, no sentido literal do termo, aquelas forças que sustentavam a sua ação, a sua práxis, desapareceram. Não é possível estabelecer comparações.
O que uniu vocês foi um percurso de pesquisa política e cultural que deixou um marco na esquerda.
Hoje francamente não sei, mas com certeza foi uma experiência, uma aventura coletiva inesquecível para aqueles que a viveram. Estou pensando nos anos entre o final dos anos 1970 e o início da década de 1980, quando com Mario foram tentados experimentos como o Laboratório Político e O Centauro, nos quais trabalhavam todos os intelectuais que, para o bem ou para o mal, fizeram a história cultural italiana nos últimos trinta anos. Trabalhava-se em torno da percepção de que estavam mudando as constelações, no céu e na terra, tanto as referências ideais como os sujeitos práticos, organizados, políticos. Iniciar uma nova rota, definir novas formas de organização, identificar novos sujeitos. Esse foi o esforço daqueles anos.
Não é que tenha faltando a percepção, muito menos em Mario. Quando se passa do discurso operário clássico, entre os anos 1960 e 70, ao tema da autonomia do político. Há um evidente salto aí. Entende-se que aquele sujeito a que se fazia referência na década de 1960 desapareceu. E desapareceu por dois fatores principais...
Quais, professor Cacciari?
A incapacidade do então chamado movimento operário de organizar um resultado político para as lutas desenvolvidas entre os anos 1960 e 70, o outono quente. A total
inadequação, sobre a qual o Laboratório Político insistiu muito, do compromisso histórico, que foi uma grande iniciativa política, mas totalmente inadequada para dar uma resposta aos conteúdos daquelas lutas, por um lado. E pelo outro, a contrarrevolução capitalista global, representada pelos Reagans, pelas Thatchers, pela crise das socialdemocracias e dos socialismos na Europa.
Lembro-me de um longo e perspicaz ensaio de Umberto Coldagelli sobre a crise da esquerda francesa. Não é que faltou análise, conscientização. Há uma classe intelectual, de Mario, por um lado, mas também de De Giovanni pelo outro, de Asor, ou dos mais jovens, como Marramao, eu, Giorgio Agamben, Roberto Esposito, que tinha conscientização. Mas não conseguimos. Foi uma derrota.
Uma derrota da qual Mario está dolorosamente ciente em todos os anos subsequentes. Sem por isso se render. Quando você é derrotado não tem que se render e muito menos passar para o lado do inimigo. Também nos acompanhou um certo desencanto, que talvez tenha sido uma lição de vida. Dolorosa, mas educativa.
Em que sentido?
Nunca ficamos encantados ou iludidos sobre as nossas capacidades e sobre a situação em que nos encontrávamos. Essa é a história. A história de duas gerações, aquela de Mario, de Asor, por um lado muito distante, mas ainda assim análogo a Toni Negri, e aqueles mais jovens. Aqueles da geração sucessiva pertencem a outra era glacial.
Pode existir uma esquerda sem um pensamento forte...
Certamente não pode existir uma esquerda sem pensamento crítico. Isso é certo. Antes mesmo que se possa falar de esquerda, de direita, é toda a origem iluminista e pré-iluminista de tudo o que poderia ser vagamente dito de esquerda que nasce do pensamento crítico. É um pensamento crítico. Um pensamento que não se ajusta à situação por nenhum ponto de vista. Se faltar ironia e paradoxalidade, que eram os grandes talentos de Mario, não pode haver esquerda.
Esquerda pode ser o que você quiser, mas não pode não ser pensamento crítico. É um ponto de vista, uma atitude cultural, intelectual, de radical e constante insatisfação com o estado de coisas existente. Se faltar essa energia, se tudo se resolver em adaptação e compromisso, pode haver qualquer coisa, menos uma esquerda. Depois disso fica claro que tem que se passar para os conteúdos, os programas, os projetos e tudo tem que ser realista, não pode haver utopia, muito bem. É a lição que sempre tentamos combinar entre o melhor Marx e os Max Weber, os Schumpeter etc. Isso deve ser reivindicado para crédito desta "escola".
Nenhuma ideologia, nada de gostar de todo mundo, nenhum irenismo. Nada a ver com essa mistura edulcorada que se tornou a chamada esquerda, sejamos claros.
O Pensamento Crítico pode ser a escola de Frankfurt, pode ser o que você quiser, mas antes de tudo é uma atitude perante a realidade que caracteriza uma cultura de esquerda.
Você fala de uma esquerda "edulcorada"...
Houve um desmoronamento de toda a esquerda, até sindical, da capacidade de representar aquela que é historicamente a sua base social. Basta olhar para a geografia do voto nas últimas eleições. Se tivessem votado aqueles acima dos 65 anos, o Pd teria 28%, se só tivessem votado aqueles abaixo dos 25 anos, o Pd teria 12, se tivessem votado aqueles com renda médio-alta, o Pd seria o primeiro partido, se tivessem votado os mais pobres seria o último.
Estes pensaram que como não havia mais a centralidade da fábrica, da classe trabalhadora, havíamos chegado ao ponto da famosa sociedade líquida, onde os partidos se tornam simplesmente movimentos de opinião sem mais diferenças, e perderam completamente de vista o fato de que a sociedade é composta por muitos setores muito diferenciados e as desigualdades aumentam. Os partidos de esquerda não perceberam isso e deixaram de representar essas desigualdades numa situação em que as diferenças se multiplicam.
Questões cruciais, aliás abordadas com a habitual paixão cívica e lucidez intelectual por Mario Tronti em sua última entrevista concedida ao l'Unità. E aqui voltamos ao pensamento crítico: um pensamento não pode deixar de referir-se a um tema crucial, de atualidade dramática tal como é aquele da guerra.
É evidente. Nada de irenismo pacifista. Enquanto houver homens, haverá inimigos, citação de Petrarca.
Dito isso, compreender realisticamente as causas dos conflitos, saber que no mundo contemporâneo o conflito é produtivo, ao contrário do idiotismo que diz que as guerras são apenas destruição, são apenas desgraças, loucuras, esse irenismo pacifista não leva a lugar nenhum. Entender que as guerras são grandes e trágicos momentos constituintes.
Constituintes de classes políticas, de classes dirigentes, de direitos... Compreender as suas causas, e atualizar esse entendimento. Não poderemos mais ficar satisfeitos com as velhas explicações marxistas, do tipo que as guerras são simplesmente o resultado de contradições intercapitalistas e imperialistas. Esforço crítico contínuo de atualização sem nenhum irenismo e com a firme vontade de chegar à eliminação da guerra como guerra entre povos, como guerra entre nações, e ao invés disso a positividade do conflito interno. Esse é o ponto fundamental. O conflito interno. O conflito entre interesses, o conflito entre ideias, o conflito entre estratégias, é a alma do espírito europeu. Portanto, positividade do conflito e de todo esforço para eliminar a guerra entre os Estados, que representa a combinação virtuosa no pensamento de Mário.
Uma ideia de conflito que gera reconhecimento mútuo.
Essa ideia de um conflito que cria reconhecimento é a ideia fundamental para entender como a relação e a gênese das identidades e das diferenças são um processo, uma dinâmica e não podem ser reduzidas a uma série de definições a priori imutáveis e válidas a todo momento e a todo lugar.
Você usou o termo conflito, antigamente se diria luta de classes.
Claro que sim.
Mas por que se tem tanto medo, mesmo só de evocar a luta de classes?
Porque venceram aqueles que fizeram acreditar que existe o povo, que existem as pessoas. Já passou essa extraordinária ideologia, ideologia no sentido crítico e marxista do termo, segundo a qual, justamente, somos "um só povo", "somos pessoas", e todas as diferenças internas ao conceito de povo desaparecem, totalmente apagadas. Diferenças internas ao povo que também estavam presentes nos tempos da Roma antiga. Povo é um conceito político, não é todo o povo. O povo é aquela parte de Roma que era organizada nos seus comícios, que tem o seu valor político próprio, a sua representação política autônoma e entra em conflito, um conceito este de "cunfliggere" em que também vale o "cun", não só a luta, com o Senado.
Porém passou uma ideologia totalmente funcional ao poder dominante, segundo a qual somos um povo e dentro desse povo não há conflito, ou não deve haver conflito. Típico do pensamento não crítico.
Crítico significa "crise", significa divisão, significa distinção, significa discernimento, tudo isso significa crítico.
O pensamento não crítico é o pensamento que tende sempre, por sua própria natureza, a ser um pensamento único. O pensamento único é literalmente o oposto do pensamento crítico. O pensamento crítico é pensamento que se sabe que é parcial, que se sabe que está em conflito, o que não significa que aquilo com o qual entra em conflito seja o seu "Inimigo" absoluto.
Essa é uma simplificação "schmittiana", entre amigo e inimigo existem infinitos intermediários. Mas certamente não há o "povo".
É uma invenção do pensamento dominante, ou seja, do pensamento único. Contra o qual Mario sempre lutou.
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“O céu mudou: a classe virou pessoas...”. Entrevista com Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU