03 Julho 2023
Lúcido, cordial e direto, Maurizio Lazzarato (Meduna di Livenza, Vêneto, 1955) é um pensador heterodoxo, cujas reflexões sobre o funcionamento econômico do mundo servem para entender a origem das guerras. Sobre a guerra, disse à queima-roupa: “Desafiar a hegemonia do dólar é declarar guerra aos EUA”.
Sociólogo e filósofo, Lazzarato é um dos pais do movimento Autonomia Operaia, que Toni Negri ajudou a criar, consciência crítica da esquerda clássica italiana na década de 1970. Por este motivo, exilado em Paris na década de 1980, Lazzarato não desistiu de seus esforços para disseminar a consciência social, ora dirigindo projetos de pesquisa sobre o capitalismo financeiro na Universidade de Paris, ora escrevendo ensaios como Guerras e capital (Ubu, 2021) ou o mais recente El imperialismo del dólar (O imperialismo do dólar), onde analisa o mercado internacional como o fator decisivo que os estadunidenses utilizam para dominar o mundo e liberar sua força bruta quando surgem contrapesos.
A China é o alvo de sua fulminante estratégia imperial. Com pesar, Lazzarato antecipa que “a Europa está sendo a grande perdedora nesta batalha. No momento, a guerra na Ucrânia já conseguiu quebrar o eixo franco-alemão, bem como transferi-lo para a Polônia, país dirigido por um dos governos mais reacionários do continente, reforçando assim as posições mais atlantistas”, conclui.
A entrevista é de Gorka Castillo, publicada por Ctxt, 30-06-2023. A tradução é do Cepat.
A hegemonia global do dólar começa a ser questionada por vários lados. Você acha que o declínio da moeda americana é irreversível?
Dizer que o dólar começou a perder sua hegemonia de forma definitiva é um pouco exagerado. O que estamos presenciando é um relativo declínio dos Estados Unidos em relação à posição que ocupavam desde a Segunda Guerra Mundial, quando passaram a representar metade da produção mundial e organizaram a economia do planeta em torno da supremacia de sua própria moeda.
Não há dúvida de que hoje perdeu posições porque outras regiões do mundo, como a Europa e alguns países do Sul global, cresceram muito. Esse ocaso, evidentemente, ficou exposto após a crise financeira de 2008 e fez com que países como a China ou mesmo a Rússia, embora não seja bem um país do Sul global, queiram se desvincular do dólar como moeda de intercâmbio, após entenderem que funciona como um mecanismo global de captação de riquezas. No entanto, não será fácil para eles continuar com essa ruptura porque, caso a fizessem, soaria como uma declaração de guerra contra os Estados Unidos.
Lula propôs aos países do Mercosul a criação de uma moeda própria, a China negocia a compra de petróleo em yuans e a Rússia exige a cobrança de seu gás em rublos. Você considera essas propostas inviáveis?
A dificuldade é que, através da dolarização do sistema cambial, os Estados Unidos financiam seu próprio déficit, que é enorme. Se esses países e regiões conseguirem se libertar de seu domínio, os estadunidenses perderão o dinheiro de que precisam para equilibrar a balança econômica que lhes permite manter seu padrão de vida, o American way of life.
Até 2008 parecia que não havia problemas, porque operávamos sob um sistema internacional baseado nas relações entre os Estados Unidos e a China. Os chineses produziam mercadorias baratas e os americanos as compravam. Este intercâmbio permitiu à China acumular grandes quantias de dólares, apesar de ser uma moeda que não lhe servisse muito por estar desvinculada do ouro.
A saída que encontraram foi adquirir dívida americana, mas veio 2008 e tudo mudou. Os chineses decidiram iniciar um processo de desdolarização para se desvincularem, na medida do possível, da enorme capacidade que os estadunidenses têm de criar crises, uma atrás da outra. A guerra na Ucrânia, por exemplo, não é propriamente um confronto entre democracia e autocracia, como querem que vejamos, mas uma guerra pela hegemonia do dólar. Claro assim.
Por isso, não tenho muitas esperanças de sucesso para esses movimentos de Lula e da China. Do ponto de vista econômico, será difícil para eles conseguirem isso a curto e médio prazo, mas houve uma grande e indiscutível novidade em tudo isso, o fato de que surgiram países dispostos a desafiar a hegemonia dos Estados Unidos do ponto de vista político.
Você defende que as condições que levaram à guerra na Ucrânia foram forjadas, em grande parte, após a crise de 2008. Por quê?
Porque a guerra é uma ‘lei’ inerente ao capitalismo. A tendência natural deste sistema econômico é dominar o mercado mundial, embora nunca o tenha conseguido, porque carece de uma estrutura estatal em nível global e há nações reativas à sua expansão natural. A única maneira de o capitalismo quebrar qualquer resistência que encontre em seu caminho é a guerra. Penso que o que estou dizendo é bem fácil de entender. Se você estudar cuidadosamente as causas que levaram à Primeira Guerra Mundial, encontrará muitas semelhanças com a situação em que vivemos hoje.
Em sua opinião, qual a maior semelhança?
O desejo de dominar o mercado mundial. Antes da Primeira Guerra Mundial, havia dois impérios coloniais estabelecidos, o francês e o britânico, e uma potência emergente como a Alemanha que queria sua parte nos despojos. O conflito entre essas três potências coloniais europeias surgiu quando se tratava de determinar quem estava no comando ou quem controlava o mercado mundial.
Agora, os atores mudaram, mas a essência do problema é a mesma. Temos um Sul global que deixou de ser objeto de disputa política e passou a ser um sujeito político e econômico que reclama sua posição no mercado mundial. Esta é outra grande novidade da tensão atual. A divisão que se estabeleceu no mundo durante quatro séculos, entre um Norte que se desenvolveu explorando o Sul, começou a ser definitivamente questionada porque esses países se rebelaram contra a subordinação.
A China, evidentemente, é a principal representante desse desejo de emancipação. De fato, o alvo da guerra na Ucrânia são os chineses e não a Rússia, uma potência militar, mas muito fraca economicamente. Acho que ninguém duvida de que hoje eles são o verdadeiro concorrente dos Estados Unidos.
A China é, então, um país imperialista?
Depende. É difícil garantir. Se olharmos para a sua capacidade de exportar capital, sim. Embora não no sentido clássico porque, ao contrário dos Estados Unidos, não ocupa territórios nem tem aspirações militares, além das conhecidas, longe de suas fronteiras. No entanto, é o maior parceiro comercial de quase todos os países latino-americanos e tem grande presença na África através de uma série de intercâmbios comerciais que visam obter grandes benefícios próprios. É preciso observar como essas coisas se desenrolam.
Acredita que as diferentes crises atuais estão acabando com a globalização, tal como se configurou há 30 anos?
Na realidade, a globalização continua funcionando, mas de uma forma diferente. As cadeias de valor se reorganizaram com base em países considerados aliados políticos. Por exemplo, o Ocidente tenta excluir a China de determinados processos de inovação tecnológica, impedindo-a inclusive de ter contatos com algumas empresas europeias. Portanto, estamos imersos em um processo de reorganização, porque a globalização que conhecemos nos últimos 30 anos acabou. Daí as constantes tentativas dos Estados Unidos de repatriar as empresas que se deslocaram para a China ou a Europa, ainda que seja difícil ter sucesso.
Que papel desempenha a Europa nesta luta?
A Europa está sendo a primeira derrotada nesta guerra. O conflito na Ucrânia abriga muitas guerras e uma das mais importantes é a guerra travada pelos Estados Unidos para controlar a Europa. Por enquanto, já conseguiu romper o eixo franco-alemão e o transferiu para a Polônia e outros países vizinhos, com o objetivo de agravar a crise na Alemanha, que hoje atravessa graves dificuldades, com a maior recessão econômica do continente.
Não se pode esquecer que ao longo de décadas os alemães desfrutam de uma política própria em relação ao Oriente, a ‘Ostpolitik’, o processo político de relações que teve com a Rússia e também com a China, algo que os americanos não suportariam na situação atual, e decidiram destruir o Nord Stream 2 e forçar o resto da União Europeia a se posicionar com as posições atlantistas que mais os favorecem.
Na minha opinião, este é o segundo suicídio cometido pela Europa em um século, após a Primeira Guerra Mundial. Cedeu completamente aos Estados Unidos e agora só lhe resta assumir as consequências, ou seja, a ascensão dos nacionalismos, que nada mais são do que novas formas de fascismo e de extrema direita. É o caso da Polônia, o país que os americanos colocaram no centro, sendo um dos Estados mais reacionários da União Europeia. O governo fascista italiano já iniciou relações diretas com eles e outros países com claras tendências de extrema direita. Não tenho dúvidas de que a partir de agora veremos a virada à direita aumentar em toda a Europa.
Você acha que o desenlace da guerra na Ucrânia pode acelerar o totalitarismo europeu?
As condições que provocaram a guerra na Ucrânia não terminam com a cessação dos confrontos armados porque, insisto, o problema que existe é entre o Ocidente e o Sul global. A China não conseguirá ocupar o lugar dos Estados Unidos e os americanos não conseguirão derrotar a China e o Sul. Minha impressão é que entraremos num período de grande instabilidade política e num certo caos que levará a situações imprevisíveis.
A Europa e os Estados Unidos estão armando a extrema direita na Ucrânia e ajudando os países do Leste europeu politicamente reacionários a construir exércitos muito poderosos. Embora não possamos saber como terminará esta história de armar a extrema direita no leste da Europa, será mais um elemento de instabilidade que terá consequências para o resto do continente. Mas quero enfatizar que um problema muito semelhante ocorreu há não muitos anos. Os Estados Unidos armaram os islâmicos e depois tiveram que declarar guerra para desarmá-los.
Onde ficam os movimentos transformadores, como o feminismo, nessa batalha pela hegemonia mundial e na ascensão dos nacionalismos fascistas?
Não acredito que o feminismo tenha a capacidade de reverter a ascensão dos fascismos na Europa. Na minha opinião, é um movimento de emancipação muito importante, mas não é revolucionário em termos clássicos. Sua grande contribuição é ter introduzido o sexismo sobre o qual esta sociedade foi construída, mas não responde a uma problemática mais ampla.
No Chile, por exemplo, todos pudemos ver que o movimento feminista foi um dos motores do enfrentamento social contra um Estado patriarcal e privado, mas quando se chegou a um certo nível de conflito surgiram questões que vão além da injustiça intrínseca do poder patriarcal. O movimento feminista também foi muito importante nas ‘Primaveras árabes’, mas não conseguimos encontrar a estratégia que nos levasse à vitória.
Os Estados Unidos, por exemplo, acompanharam atentamente a dinâmica da explosão social que se viveu no Chile em 2019. Portanto, as lutas do feminismo, do indigenismo ou do ecologismo são muito importantes, mas não são suficientes, porque o conflito contra o poder é muito mais profundo. Falo de um poder geral, de um poder internacional que nos obriga a pensar em um nível mais amplo de enfrentamento.
O que acontece com a esquerda?
A esquerda não entendeu a transformação sofrida na composição de classe. Ela segue sem entender que mudou consideravelmente. E quando você coloca um confronto com o poder, apenas duas coisas podem acontecer: ou você vence ou recua. O exemplo chileno é muito instrutivo. Eles desafiaram o poder, mas não conseguiram derrotá-lo e agora estão recuando, como vimos com a Constituição pinochetista.
Você não é um pouco pessimista?
Não, não sou pessimista, mas realista. Estamos entrando em um novo momento político que está provocando transformações sociais muito rapidamente. Prestemos atenção na história. Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, em 1914, a esquerda tinha praticamente desaparecido, e a que existia estava completamente alinhada com o nacionalismo e seus exércitos. A social-democracia alemã votou a favor dos créditos de guerra. Logo depois, Lenin fez a revolução.
Não estamos na mesma situação, mas a guerra introduz um tempo imprevisível que exige que as forças políticas assumam esta nova temporalidade embora, no final, seja sempre a necessidade, inserida no confronto, que consiga fazer emergir uma reação. É o que diz a história, e esse é o meu desejo.
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“Minha impressão é que entraremos num período de grande instabilidade política e num certo caos que levará a situações imprevisíveis”. Entrevista com Maurizio Lazzarato - Instituto Humanitas Unisinos - IHU