26 Junho 2023
“Por sua escala demográfica, seu centralismo político, seu poder de independência e, por conseguinte, de desenvolvimento, a China se desligou da lógica imperial ocidental dos últimos séculos”, escreve Jorge Majfud, escritor uruguaio e professor da Jacksonville University, em artigo publicado pela Página/12, 22-06-2023. A tradução é do Cepat.
Nos últimos anos, como não poderia ser diferente, os meios de comunicação e a classe empresarial e política dos Estados Unidos inventaram seu novo inimigo. Dessa vez, sem os disfarces raciais, religiosos e ideológicos do passado. Agora, o grande inimigo, a China, é mau só porque é concorrente, e a mentalidade dos grandes negócios busca desesperadamente eliminar a concorrência, se é possível, em nome da livre concorrência.
A paranoia anglo-saxônica nunca aceitou que o mundo pudesse ser compartilhado por outras potências ou por outras formas de ser, fazer e pensar. Nunca deixou de planejar a supressão da concorrência usando os velhos métodos da Guerra Fria. Algo que, como analisamos antes, foi revelado recentemente com (1) a saída apressada do Afeganistão, (2) a doação de milhões de dólares em equipamentos militares aos pseudoinimigos, os talibãs, (3) como força de reserva contra o Irã; (4) com o deslocamento de recursos para uma “Guerra de hegemonias”, na Ucrânia, que foi prevista e acelerada com a estratégia de culpar o inimigo; e (5) com a reativação da velha reivindicação da China sobre Taiwan, retomada por Washington antes do que por Pequim. Tem um detalhe: essa guerra só acelerou o tão temido recâmbio. Outro fiasco histórico de Inteligência.
A velha obsessão segue todos os padrões do imperialismo anglo-saxão: não aceitamos concorrentes; não aceitamos que não nos obedeçam; cresceremos com base em submissões midiáticas, militares, políticas e econômicas. Nada de diálogos e negociações. O mundo é um negócio privado e o mais forte se reserva o direito de se impor. Só nós podemos vencer, mesmo que para isso tenhamos que descarregar mil toneladas de bombas sobre algum povoado ou sobre um país inteiro. Só existe um modelo de sucesso. O mundo é uma propriedade privada e se não fosse nosso, poderia ser de outro etc.
Desde o extermínio indígena, todos esses interesses centrais foram justificados pelo “direito de nos defender” contra nossos invadidos; pela “luta em prol da liberdade” que nossos escravos e colônias não entendiam; e pela democracia e os direitos humanos que “o sacrificado homem branco” (Rudyard Kipling) precisou levar para o resto do mundo.
No entanto, a história dos últimos séculos mostra que quase todos os impérios brutais que deixaram centenas de milhões de mortos foram orgulhosas democracias que, como se não bastasse, dedicaram-se a implantar ditaduras satélites, quando não promoveram ditaduras resistentes e anticolonialistas.
Durante a última investida do neoliberalismo, o assédio dos bancos internacionais sob a égide de Washington, como o FMI e o Banco Mundial, impuseram planos agressivos de privatização aos países devedores sem capacidade de pressão para expandir a pilhagem das corporações às ex-colônias do Sul global. Todas essas experiências fracassaram dolorosamente, não para as corporações, os bancos e os Estados Unidos, mas para as ex-colônias, da privatização da água, na Bolívia, até o México, África e qualquer outro exemplo que se considere.
Mesmo nos Estados Unidos, os custos dos serviços básicos como saúde e educação dispararam até se tornarem impagáveis para a classe trabalhadora, devido à ganância natural das grandes empresas privadas que fizeram, fazem e continuarão a fazer tudo o que for possível para maximizar seus objetivos centrais: os lucros, não os serviços. A imposição, não democracia.
Quando a ditadura chinesa investiu seu superávit na África e na América Latina, foi acusada de imperialismo. Não obstante, seus investimentos não produziram uma carestia dos serviços para a população, muito pelo contrário. Os antecedentes históricos da China também não são tão ruins. No momento de seu auge econômico, ainda que tenha sido a maior superpotência do mundo antes de sua destruição pelo Império Britânico, por séculos, as invasões na Ásia foram muito menores em comparação com as provocadas pelo Ocidente. De fato, as duas mais importantes, de um país a outro, em um período de três séculos pré-ocidentais, foram por causa da intervenção do Japão.
O Ocidente agiu de modo contrário. Desde antes do nascimento do capitalismo, sua maior energia se concentrou no fanatismo religioso, das Cruzadas à Inquisição. Então, o capitalismo anglo-saxão surgiu no século XVII por força de deslocamentos internos forçados (enclosure) e continuou com imposições, pilhagens, matanças e guerras sobre o Sul global.
Essa obsessão de dominar o outro, de crescer e prevalecer pela força do canhão e da religião, foi continuada pelos Estados Unidos que, desde o primeiro momento de sua criação, fundou-se na escravidão e no roubo permanente e violento de terras de seus vizinhos, sejam nações indígenas, mexicanas ou colônias tropicais, para, então, seguir com uma irrefreável loucura por invadir, impor governos fantoches pela força de capitais, complôs secretos, bombardeios e pregações midiáticas.
O Renascimento chinês foi consequência de dois grandes fatores. Em primeiro lugar, o fator geoeconômico. A lógica de expansão do capitalismo anglo-saxão quando, a partir dos anos 1990, precisou explorar uma incomensurável mão de obra barata nos países pobres para aumentar a margem de lucro das corporações ocidentais e pressionar ainda mais contra os direitos trabalhistas e redistributivos de sua própria população.
Isso funcionou por um tempo, mas acabou explodindo na cara da paranoia mercantilista anglo-saxônica e da própria necessidade de controle das elites capitalistas que entenderam que eram bem-vindas na China, mas não podiam ditar sobre o governo comunista, como sempre fizeram com os governos ocidentais.
A fácil manipulação das colônias fragmentadas, dos países pobres produtores de matérias-primas, como na África, aos microestados enriquecidos, mas dependentes do império financeiro, como Singapura e Hong Kong, encontrou uma notável exceção na China. Por sua escala demográfica, seu centralismo político, seu poder de independência e, por conseguinte, de desenvolvimento, desligou-se da lógica imperial ocidental dos últimos séculos.
Em segundo lugar, podemos observar um poderoso fator geopolítico. O vertiginoso ressurgimento da China, nos últimos quarenta anos, não se baseou em invasões, conquistas, imposições, mudanças de regimes em outros países, mas em dois elementos fundamentais: (1) créditos e compra estratégica de ágio sobre outros países e (2) capitalização da quase universal resistência à história imperialista do Ocidente, em particular a última, a dos Estados Unidos.
Claro, se alguém observa esses pecados capitais das seitas financeiras que sempre manipularam a opinião pública ocidental, resulta que se trata de algum herege buscando destruir seu próprio país e não, ao contrário, fazendo um favor aos seres humanos reais que vivem nele. Chega a esse ponto o fanatismo que conseguiu se impor como razoável, sensato, necessário, belo e divino.
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O singular paradoxo do renascimento chinês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU