01 Julho 2023
Por ocasião da realização do Salão Internacional de Aeronáutica e Espaço de Bourget, que acontece em Paris, o Reporterre entrevistou o astrônomo Frédéric Boone. Ele convida a questionar a responsabilidade ecológica da astrofísica e o propósito da conquista do espaço.
A entrevista é de Vincent Lucchese, publicada por Reporterre, 19-06-2023. A tradução é do Cepat.
Quais são as ligações entre a exploração espacial e a crise ecológica? Qual é a responsabilidade da ciência do cosmos com a Terra? Por ocasião do início do Salão de Bourget (de 19 a 25 de junho), entrevistamos o astrônomo Frédéric Boone, membro do Instituto de Pesquisa em Astrofísica e Planetologia (Irap).
O Salão Internacional de Aeronáutica e Espaço – seu verdadeiro nome – deve, entre outras coisas, servir de vitrine para a miríade de empresas voltadas para a exploração e o aproveitamento do espaço. Envio de astronautas à Lua, implantação de constelações de dezenas de milhares de satélites comerciais, descobertas científicas feitas por instrumentos de última geração… O setor está em um momento bem dinâmico.
Como você vê o setor aeroespacial e o entusiasmo gerado pelas promessas de exploração e conquista do espaço?
Acredito que é urgente desconstruir esse mito da conquista. A visão dominante, inclusive entre muitos astrofísicos, continua sendo a de uma Terra percebida como o “berço” da humanidade e da qual estaríamos destinados a nos emancipar. O ápice desse delírio é personificado por Elon Musk, quando tuita que a humanidade deve se tornar uma espécie multiplanetária e interestelar. Estamos mergulhados em uma imaginação colonialista que faz de todos os territórios, inclusive os extraterrestres, áreas a serem exploradas. Mas é uma fantasia imaginar que podemos explorar Marte ou os asteroides, e a realidade acabará por se impor. Este é um discurso que não vai aguentar muito mais tempo...
A emergência ecológica representa uma ameaça existencial e sem precedentes para a humanidade, que muda nossa visão de mundo. Qual pode ser o papel da pesquisa astronômica em tal contexto?
Como astrônomo, não posso mais fazer pesquisas como antes. Passei a me questionar muito sobre minha disciplina e sua finalidade. Afirmamos fazer pesquisa em ciência fundamental, explorar o universo e reivindicar uma busca não utilitária de conhecimento, justificando a falta de aplicações de nossas descobertas pelo fato de estarmos vendendo sonhos ao público em geral. Mas, exatamente, qual é o sonho que estamos vendendo?
Em nossa cultura, a ciência monopolizou a narrativa sobre o mundo e suas origens. A cosmologia é o nome da disciplina científica que conta a história do universo. Ela substituiu o papel anteriormente ocupado pelos mitos ou pelas narrativas teológicas. Paradoxalmente, recorremos à física para responder a questões metafísicas. No entanto, a ciência não está em condições de dizer nada sobre como seria o mundo em sua completude: simplesmente porque nunca observou o universo como um todo. É vertiginoso perceber isso. Nem as teorias nem as observações dão acesso à totalidade do universo.
Dizemos, por exemplo, que o universo está em expansão e que isso remonta à sua origem, o Big Bang. Mas apenas a parte observável do universo está se expandindo, e não podemos nos pronunciar sobre o que está além ou sobre a possibilidade de um “antes” do Big Bang. Mesmo as equações de Einstein não dão acesso a uma totalidade do universo. Acreditar nisso, ou extrapolar sobre o que o universo é além de nossas observações, é, novamente, metafísica...
E essa pretensão metafísica da física desempenhou um papel importante na trajetória que nossa civilização tomou.
A física é apenas modelos matemáticos confrontados com observações. É extremamente eficaz para descrever o mundo, é uma inflexão que podemos fazer remontar a Galileu. Mas isso definiu uma estrutura de pensamento que não conseguimos ultrapassar. E isso deu à ciência uma húbris que moldou nossos comportamentos, que alimenta nossa ideia de onipotência e que se reflete, por exemplo, recentemente nas ambições da geoengenharia [a tecnologia como resposta à crise climática]. Nós precisamos reaprender a modéstia.
O filósofo Michel Bitbol fala de “ponto cego” da ciência: tentamos varrer para debaixo do tapete a existência do observador, como se o cientista estivesse fora do mundo e pudesse englobá-lo em sua totalidade, ao passo que um conhecimento é sempre local e situado. Estamos na Terra e não há razão para considerar nosso ponto de vista como sendo universal ou mesmo extrauniversal; estamos presos em uma espécie de confinamento epistemológico dentro de nossos horizontes. Não podemos nos livrar de nossa condição terrestre e não podemos saber tudo...
A ciência também é uma aliada na nossa tomada de consciência das questões ecológicas. Ela não pode nos ajudar a “aterrar”, como propôs o filósofo Bruno Latour?
O que me parece mais importante e urgente é tomar consciência da nossa cultura cientificista. Consideramos a ciência como uma religião capaz de responder a todas as questões metafísicas e de resolver todos os nossos problemas. No entanto, se olharmos para os resultados da ciência contemporânea, eles, muitas vezes, vão contra este imaginário. Tomemos, por exemplo, a hipótese Gaïa [Particularmente, a ideia de que a vida é um todo que molda ela própria as condições de habitabilidade do seu planeta, e que tudo o que se encontra na fina camada de algumas dezenas de quilômetros de espessura na superfície da Terra está presa em uma teia de interdependências.].
Curiosamente, essa ideia foi formulada na década de 1970 por James Lovelock, que era engenheiro da NASA, e pela bióloga Lynn Margulis. Foi a comparação com Marte que os fez perceber que éramos parte integrante desse tecido de interdependência nessa fina camada que Bruno Latour propôs chamar de zona crítica. Para colonizar um outro mundo e encontrar ali condições favoráveis para a humanidade, teríamos que levar toda Gaia conosco: ou seja, ficar na Terra. É uma revolução galileana ao contrário: não somos desencarnados, somos fundamentalmente condenados a permanecer confinados ao nosso planeta, como disse Bruno Latour.
Esta revolução galileana e suas reflexões sobre a necessidade de uma nova cosmologia poderiam implicar uma reorientação dos objetivos da astronomia, uma revisão das nossas prioridades na aquisição de conhecimento?
Falta algo em nossa cosmologia que nos conecte com a Terra, que nos arranque dessa ilusão de seres extrauniversais. A astronomia pode nos ajudar a tomar consciência da nossa finitude. Mas também devemos questionar o fato de gastarmos tanto tempo e energia explorando o cosmos distante. Que sentido tem acumular conhecimento sem fim? De qualquer forma, devemos reconhecer que isso não nos permitirá conhecer melhor o universo. Porque se for infinito, olhar sempre mais longe só nos permitirá ver uma porção infinitamente pequena de todo o universo...
O conhecimento pelo conhecimento certamente é fascinante, mas perde o sentido se ninguém mais puder se fascinar por esse conhecimento porque não haverá mais humanos na superfície da Terra. Portanto, devemos também nos interessar por nossa condição e nossas interdependências. Isso implica concentrar nossos esforços na Terra e talvez também em nossa interioridade, nossas percepções, nossos sentimentos, para fazer a experiência da experiência como diria Michel Bitbol. E aceitar colocar outra coisa no relato do mundo ao lado da ciência, nossas experiências subjetivas, sensoriais, e manter as questões metafísicas abertas à exploração de cada pessoa.
Não se trata de restringir este ou aquele campo de pesquisa, mas de mudar de perspectiva. Agindo assim, podemos ter menos interesse na busca frenética pelo conhecimento como é conduzida hoje. Isso pode chocar. É até incompreensível, porque a ciência está culturalmente associada ao Iluminismo, ao declínio do obscurantismo. Nós temos esse reflexo bem binário de pensar que relaxar um pouco em certas pesquisas seria um retorno ao fanatismo. Temos que matizar novamente algumas coisas. O espírito de exploração e de conquista não é inerente ao ser humano; existem outras culturas que não desenvolveram isso, ou desenvolveram de outras formas. Recuperá-las permitiria a todos recuperar essas questões metafísicas, para as quais agora contamos com os cientistas.
Em sua própria prática, a astronomia e a indústria aeroespacial têm consequências ecológicas significativas. Isso ajuda a questionar a legitimidade e a finalidade de algumas de suas ambições?
Meu colega Jürgen Knödlseder analisou a pegada de carbono das infraestruturas de pesquisa em astronomia. Ele chegou à cifra de 36 toneladas de CO2 por ano e por astrônomo. Quando sabemos que seria necessário reduzir para 2 toneladas por pessoa, se não zerar... Alguns pesquisadores caíram em si, isso chama a atenção. Precisamos mesmo enviar tantos satélites para o espaço? Com todos os dados acumulados nas últimas décadas pelos telescópios seja em solo ou no espaço, temos dados suficientes para trabalhar durante muito tempo. Não há urgência nisso.
Dito isto, são enviados ao espaço muito mais satélites militares do que com finalidades científicas. Sem mencionar os satélites comerciais e os projetos de constelação de satélites enviados aos milhares, como o Starlink de Elon Musk. Mas a astronomia também deve pensar em ser mais sóbria, em desenvolver uma infraestrutura menos gigantesca e poluente. Uma astronomia ecológica passa por essas duas questões: refletir sobre o seu funcionamento e sobre o discurso que ela produz.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“É urgente desconstruir o mito da conquista do espaço”. Entrevista com Frédéric Boone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU